É sábado à tarde. Chegamos de Kemi e de uma curta, mas memorável viagem no seu reputado quebra-gelo “Sampo”.
Nem sequer muito tarde, excepto para o grande astro que, nestas latitudes extremas da nação suomi, sem sinal da Primavera, se prepara para sair de cena.
Pelas quatro da tarde, o mercado municipal e histórico de Oulu está prestes a fechar.
Do outro lado da rua gelada, dois adolescentes aconchegados em parkas, aproveitam uma das raras ladeiras da cidade.
Repetem descidas de sku que os deixam a meio da praça em frente, a salvo do trânsito que por ali não passa ou, se passa, é velocípede e contido.
O Polícia e outras Estátuas de Bronze de Oulu
Nas imediações, destaca-se “Toripolliisi” um pitoresco polícia anafado de bronze, erguido por Kaarlo Mikkonen, em 1987, como homenagem das gentes de Oulu à patrulha policial que, de 1934 a 1979, manteve a ordem na Praça do Mercado circundante.
Oulu desenvolveu uma admiração particular por estátuas de bronze que, como tal, abundam.
Enquanto deambulamos pelo parque Maria Silfvan, deparamo-nos com uma outra: “Passagem do Tempo”.
Nesta, trinta e duas personagens semi-afundadas em neve e em fila sobre um pedestal de granito, simbolizam, como indica o nome da obra, a história e a evolução civilizacional de Oulu.
No extremo frontal, a seguir a um executivo de telemóvel no ouvido, detectamos uma criança sentada sobre o limiar do pedestal, pernas para baixo.
À boa maneira de Oulu, os moradores preocupam-se com a sua exposição ao Inverno frígido.
Alguém tricotou e lhe vestiu miniaturas de um gorro cinzento e de uma camisola de malha tradicional, vermelha e branca.
Com o passar do tempo, fruto da aspereza do clima, as gentes de Oulu tornaram-se hipercriativas e sérias apreciadoras de arte.
De que outra forma se explicaria que Oulu organiza, Agosto após Agosto, o mais notório campeonato mundial de Air Guitar à face da Terra?
Temperaturas Negativas, Gelo e Muito Ciclismo
As temperaturas negativas e o ocasional vento de que os moradores protegeram a criança de bronze até podem alisar e, aqui e ali, tornar o solo de Oulu escorregadio.
Estão longe de demover os milhares de ciclistas residentes de pedalar.
Andar de bicicleta advém, aliás, de uma já longa tradição local de simplicidade, modéstia e de contacto directo com a Natureza que envolve e, amiúde, intimida a cidade.
Oulu, a Cidade Fundada sobre a Foz do Rio Oulu
Situada onde o rio homónimo desagua no Golfo de Bótnia, o baptismo de Oulu terá tido inspiração no termo Sami que definia as águas fartas e rápidas que se seguiam ao degelo da Lapónia e que galgavam as margens vezes sem conta.
Oulu, a urbe, preserva, hoje, o fluxo do rio bem mais controlado, mas mantém-se plana. Tem o seu ponto sobranceiro em Yliliiminki, a meros 135 metros de altitude.
A maior parte do seu casario secular assenta uns poucos metros acima do caudal (então) semi-solidificado do rio, a torre da catedral luterana amarelo-torrada e a do centro de ciência Tietomaa, bem acima de qualquer outro telhado.
Uma série de ilhas servem de obstáculo ao caudal no seu caminho rumo ao Golfo de Bótnia. Contam-se, entre outras, Linnansaari e Lammassaari, Kuusisaari e Pikisaari.
Estas quatro, são complementos incontornáveis da Oulu continental. Ligam-nas pontes-estradas ou pontes simplificadas pensadas para o fluxo exclusivo de peões e suas bicicletas.
Ao cirandarmos pela orla da cidade, damos com uma bomba de combustível elementar, colocada no limiar de uma margem, de forma a abastecer, não carros, mas as embarcações que, na época apropriada, por ali navegam.
Nessa altura enrregelante, todos os barcos estavam guardados e protegidos em doca seca.
Todos, menos um veleiro esquecido, dignitário imobilizado da excepção.
A temporalidade do gelo e do degelo de Oulu vem de há muito.
Não obstou a que a cidade se tornasse um dos polos comerciais fulcrais destas paragens, a quinta mais populosa da Finlândia e, ainda mais notório, com os seus 214 mil habitantes, a quarta maior cidade do Mundo na latitude a que se situa, ultrapassada apenas por três urbes russas, a começar pela inusitada Murmansk.
O delta do rio Oulu era há muito habitado e frequentado pelos povos Sami da Lapónia quando, em 1605, o rei Carlos IX da Suécia ditou que ali devia ser erguido um entreposto comercial, sob a proteção de um forte que defendia a ilha de Linnansaari.
Do Reino da Suécia à Independência de 1917
À época, o reino da Suécia tinha como principal rival o da Rússia. Ora, Carlos IX só deliberou pela fundação de Oulu após um tratado de paz lhe ter assegurado que, pelo menos tão cedo, os Russos não usariam o rio Oulu como via de ataque ao território sueco.
Durante mais de dois séculos, Oulu esteve a salvo dos Russos. Isto, se tivermos em conta que, malgrado o tal tratado de paz com a Suécia, os Russos submeteram a Finlândia a um Grande Ducado, no papel, autónomo, na prática, submisso à Coroa Russa.
Enquanto cidade desse Grande Ducado, Oulu veio a soçobrar face a outros riscos e ameaças.
Em 1822, numa altura em que quase todos os edifícios eram feitos de madeira e alcatrão, devastou-a um incêndio descontrolado.
A meio do século XIX, ainda a cidade sofria a renovação da sua grelha, voltou a ser destruída.
Desta feita, pela poderosa e já movida a vapor Armada Britânica que, no contexto da Guerra da Crimeia, a atacou e a várias outras cidades-porto finlandesas que então acolhiam a maioria da marinha-mercante russa.
Dos escombros do incêndio de 1822, aos poucos, Oulu tinha-se reerguido como grande exportadora de alcatrão vegetal.
Ora, durante o seu ataque à cidade, além das embarcações russas, os Britânicos arrasaram ainda as estruturas produtoras desse alcatrão, porque poluentes, concentradas na ilha de Pikisaari (ilha do Alcatrão), tal como várias outras indústrias e os estaleiros da cidade.
A devastação às mãos dos Britânicos votou Oulu a nova demorada recuperação. Nada que a determinação e espírito solidário da aventurosa nação suomi, não resolvessem.
Como veio a resolver, no contexto da conturbada Revolução Bolchevique de Outubro de 1917, a libertação do jugo russo e a sua independência.
Dupla Reconstrução e a Recente Modernização Exemplar
Uma vez mais, aos poucos, Oulu reconstruiu as serrações, os moinhos de celulose e de cereais, os estaleiros, armazéns de pesca, curtumes e fundições que lhe garantiam grandes lucros e a modernizavam.
Como acontece amiúde, na Finlândia, em tempos mais modernos, esse estímulo industrial multifacetado deu azo a um forte investimento em educação, ciência, nas novas tecnologias da informação.
Muitos dos jovens e menos jovens ciclistas com que nos cruzamos nas ruas e passadiços-ponte da cidade são alunos, professores, formadores, cientistas, especialistas em TIs e afins.
Entre os maiores empregadores de Oulu estão a universidade local, a Nokia Networks e o Nokia Group, por si só, sustento de mais de sete mil habitantes.
A sinergia destas empresas e grupos com a Universidade de Oulu é uma das razões mais óbvias para, a partir de 1980, a população local ter praticamente dobrado.
E isto, não será demais voltar a recordá-lo, às portas do Ártico, com temperaturas médias, em Janeiro e Fevereiro, de -12ºC mas que, a qualquer momento, podem descer aos trinta e muitos negativos.
E que, quando frentes polares realmente poderosas invadem o sul, mergulham para próximo do recorde absoluto de Oulu de -41.5º.
Uma Relação Íntima com o Inverno Gelado e com a Natureza
As gentes de Oulu dificilmente se intimidam.
Em vez, mantêm-se fiéis às suas incontáveis voltas de bicicleta, ao jogging, aos treinos de esqui nórdico, à natação de Inverno, aos convívios nas saunas aconchegantes, intercalados com o frio dos avantos (buracos em lagos, rios, mar gelados à superfície) que as complementam.
Pouco mais de 50km ao largo mas ainda dentro da região de Oulu, a grande ilha de Hailuoto proporciona uma deliciosa evasão para uma Finlândia rural e ainda mais natural, imensa e com meros mil habitantes. Também por lá passamos.
Pikisaari: um Reduto Histórico e Insular de Oulu
Verdade seja dita que nem sempre os Ouluenses sentem a necessidade de sair para tão longe.
A umas centenas de metros do cerne histórico da Capital do Norte, Pikisaari há muito que deixou para trás o seu passado industrial e poluente.
Os seus velhos armazéns abrigam, hoje, alguns dos restaurantes sofisticados da cidade.
É lá que almoçamos com Karoliina Pirhonen, anfitriã com visual de pequena boneca barbie, loira, como tantos outros finlandeses.
Karoliina confessa-nos que está com vontade de sair uns tempos para o Mediterrâneo, onde possa ir à praia e fazer umas compras diferentes do que está habituada.
Mesmo viajada, seria coisa de férias. Nascida e criada em Oulu, mais frio, menos frio, a privilegiada Oulu dá-lhe sempre vontade de regressar.
Estávamos a cinco meses do próximo campeonato de Air Guitar.
E em completa sintonia.
COMO IR
Reserve o voo Lisboa – Helsínquia, Finlândia com a TAP: flytap.com por a partir de 550€.
De Helsínquia, poderá cumprir a ligação aérea para Oulu, com a Finnair.