À chegada madrugadora ao terminal de autocarro de Rangum, engasgamo-nos com a inesperada tabela dos bilhetes.
Já andávamos pelo Myanmar há vários dias. Nunca a diferença do que pagavam os birmaneses para o preço de “Foreigner” nos irritara como ali. Barafustamos o possível. Mais que o aconselhável.
Até que um jovem de ar frágil, incomodado com a nossa indignação, se presta a esclarecer: “não vale a pena desesperarem dessa maneira. Todos os mochileiros vêm com o dinheiro contado para as suas longas viagens.
E todos se frustram com essa exploração. Mas vocês têm que compreender que são ordens do governo. Todas as empresas as devem seguir. Caso contrário, se forem descobertos, fecham-nas para sempre.”
A intervenção do rapaz nunca iria resolver o dano que aquela discrepância e que os 15.000 kyats adicionais nos causariam. Ainda assim, teve o dom de nos tranquilizar e fazer resignar. Pegamos nas mochilas. Instalamo-nos nos assentos apertados do autocarro, entre jovens monges budistas e camponeses de olho nas cabras e galinhas que seguiam no tejadilho.
Por volta, das 10 da manhã, por fim, partimos.
Viagem Calorenta entre Rangum e o vilarejo de Kin Pun
Tranquilizados pelo vento quente que nos massajava as cabeças, deixamo-nos levar pelo embalo, pelos solavancos e pelas vendas relâmpago tentadas por sucessivos vendedores itinerantes, de cada vez que o autocarro se detinha o suficiente para os deixar entrar.
Durante as primeiras dezenas de quilómetros, a estrada segue os meandros do rio Rangum. Logo, entramos na chamada auto-estrada Rangum-Mandalay, a estrada número um do Myanmar. Seguimos apontados a Bago e lá fazemos uma curta escala. Uma meia-hora adicional para norte, atingimos Hpa Yar Gyi e entramos na estrada 8 que corta para o extremo sudeste da Birmânia.
À partida, poderíamos ter cumprido um itinerário bem mais curto e recto rumo a oriente. Todo aquele arco a que nos vimos obrigados devia-se ao espraiar de outro rio primordial do Myanmar: o Sittang.
À laia do desaguar bangladeshi do Ganges, o último estertor do Sittang gerava um delta imenso de pântano e prado ensopado que o oceano Índico invadia na forma do Golfo de Martaban.
De acordo, as cheias avassaladoras geradas pela monção das chuvas destas paragens, forçavam a via a cruzar o rio junto a Taung Tha Pyay Kan, já bem acima do delta.
Aquela travessia era de tal forma providencial que tinha direito a uma portagem. Mais que uma mera ponte, estávamos a cruzar a fronteira fluvial entre a região de Bago e o místico Mon State, o estado em que se situava o destino final da viagem.
Kin Pun: o Transbordo Sobrelotado para a Rocha Dourada de Kyaiktiyo
Por volta das três da tarde, quase cinco horas de sauna rodoviária depois, damos entrada em Kin Pun. Ali, juntamo-nos a uma pequena multidão apertada que aguardava o transporte para uma encosta intermédia que os forasteiros tratavam, em inglês, por Upper Level.
Um camião de caixa aberta aparece do nada. Aos poucos, o condutor e um auxiliar fazem sentar os passageiros, mais que apertados, comprimidos uns contra os outros sobre tábuas a fazer de bancos. Nem tudo era mau.
Seguimos ao ar livre. Durante meia-hora, subimos por uma estrada de montanha cercada de vegetação tropical sulcada por quedas d´água mais longas que volumosas.
Um ou outro ponto teria dado fotografias enriquecedoras. Isto, caso conseguíssemos mexer os braços o suficiente para destacarmos as câmaras acima dos passageiros que nos apertavam.
Uma sucessão de bancas de recordações e relicário religioso, de restaurantes, casas de chá e outras repletas de essências, substâncias e produtos aconselhados pela medicina tradicional birmanesa confirmam-nos Upper Level.
Malgrado o nome do lugar, a epopeia não se ficaria por ali.
Os Serviços Pesados mas Providenciais dos Carregadores do monte Kyaiktiyo
O Golden Rock hotel esperava-nos mais acima. Esse acima era de tal maneira íngreme que dava trabalho a uma tropa de carregadores. A maior parte dos passageiros confia-lhes a bagagem. Estes sherpas do Mon State colocam-na em cestos amplos e às costas.
Recompostos de um inevitável descair, suam as estopinhas e fazem ranger ossos para cumprir as entregas à porta dos hotéis dos visitantes.
Os carregadores transportam mais que apenas bagagem. Quando chegam à base da montanha devotos idosos, incapacitados, demasiado obesos ou fracos para se poderem fazer à rampa, cabe aos carregadores levá-los até ao topo em macas feitas de bambu.
Cumprimos o registo no hotel. Demoramo-nos o suficiente para largarmos as mochilas grandes de que não iríamos já precisar. Àquelas latitudes, o ocaso não tardaria. Agarramos nas do equipamento. Saímos disparados rampa acima.
Passamos entre as estátuas espelhadas de dois grandes leões dourados. Logo após, na entrada da Golden Rock, um novo desvio de fundos em modo “Foreigner” multiplicado, mancha a espiritualidade que pensávamos imaculada do lugar. Deparamo-nos não só com uma Foreigner Entrance Fee, mas também com uma Foreigner Camera Fee.
Sem tempo para nos frustrarmos, tiramos e arrumamos o calçado. Assim mesmo, de pé descalço budista, sobre a pedra dura e quente, entre monges que supomos devotos, investigamos o complexo.
A Hora Mágica em que a Rocha Dourada mais Brilha
De um varandim privilegiado, assistimos ao lapso em que o sol alaranjou a orla de uma frente de nuvens, acima das montanhas. Essas nuvens altas, anularam a exuberância cromática que se esperava do pôr-do-sol. De acordo, concentramo-nos na subtileza crepuscular que se seguia.
Com o esvair da luz, o azul do firmamento intensifica-se. E rutila o ouro que envolvia a grande rocha, já da sua posição, inusitada.
Mesmo quase redonda, a uns 1.100 metros de altitude ventosos, a Golden Rock teima em resistir sobre a ponta de uma laje polida que se destaca de uma tal de crista Paung-Laung das montanhas de Eastern Yoma.
Estamos na iminência da fronteira com a Tailândia de Mae Sot. Do lado de lá, o budismo em pouco difere do birmanês.
Coroa a Golden Rock o pequeno pagode de Kyaiktiyo (7.3 metros), também ele dourado. Em Bagan, mais a norte no Myanmar, os crentes endinheirados mandam erguer grandes templos e estupas.
Já os que visitam Kyaiktiyo em peregrinação ajudam a manter o revestimento do conjunto ao desenrolarem e colarem na face daquele calhau espiritual pequenas folhas de ouro que compram na ladeira que precede a entrada.
Parte dessas folhas, cai sobre a laje. Fica a oscilar para cá e para lá, ao vento.
Algumas, permanecem coladas aos pés nus dos crentes, enquanto estes expressam a sua fé a sentirem e a abraçarem a superfície lustrosa da pedra, enquanto outros deixam oferendas de alimentos, de fruta e de incenso.
De onde admiramos os seus movimentos e o cair da noite, temos a sensação de que, pressionada pelos fiéis, a pedra poderia cair a qualquer momento. De acordo com a lenda, o que impede a gravidade de cumprir o seu papel é uma fina meda do cabelo de Buda.
A Lenda Budista que Há Muito Sustenta a Rocha Dourada
Como a Golden Rock ali foi parar tem explicação numa lenda intrincada. Narra que, em pleno século XI, o ascetismo puro de Taik Tha, um sacerdote eremita budista terá maravilhado Buda. Em jeito de recompensa, Buda ofereceu-lhe a tal meda de cabelo.
Ora, o eremita, por sua vez, ofereceu-a ao seu rei de então, Tissa, na condição que o consagrasse num pagode dedicado que deveria incluir uma pedra com a forma da cabeça de Taik Tha. O rei Tissa tentou por todos os meios.
Falhou na missão de encontrar uma pedra com o perfil adequado. Desesperado, implorou a ajuda de Thagyamin, o rei do céu da cosmologia budista.
Thagyamin tinha poderes sobrenaturais herdados do seu pai Zawgyi, um alquimista prodigioso, e da mãe, uma princesa Naga, que é como quem diz, um ser semi-divino, meio-humano, meio serpente que habita o submundo.
Thagyamin recorreu à sua força descomunal. Arrancou a pedra que Tissa buscava do fundo do oceano e empurrou-a sobre um barco, mar fora. Já em terra, colocou a pedra no lugar em que subsiste e a admirávamos.
De maneira a finalizar o seu trabalho sagrado, construiu o pequeno pagode no cimo da rocha em jeito de santuário do cabelo de Buda e para todo o sempre.
O termo mon kyaiktiyo por que é conhecido o santuário traduz-se, aliás, como pagode na cabeça de um eremita.
Com o tempo, esta cabeça de rocha tornou-se o terceiro lugar de peregrinação mais importante do Myanmar. Antecedem-no apenas o pagode de Shwedagon, em Rangum, e o de Mahamuni, situado a sudoeste de Mandalay, a segunda cidade do país.
Mulheres Não Entram: uma Inusitada Determinação Budista
Por determinação secular do budismo, é proibida a entrada de mulheres no complexo. Esta interdição advém de outra. Segundo os preceitos de Buda, as mulheres não podem tocar nos monges, já que vivem sob voto de castidade.
Tendo em conta que a própria pedra emula a cabeça de um monge-eremita, estão de igual maneira proibidas de se aproximarem ou de tocarem na Golden Rock.
Ainda assim, as mulheres mais devotas cumprem a sua própria peregrinação ao lugar. Em vez de lhe tocarem, louvam a Golden Rock de alguma distância.
Vemo-las sentadas no exterior do derradeiro muro-vedação que isola a rocha. Rezam e acendem velas atrás de velas.
A determinada altura, constatamos que o dourado dos seus muitos pequenos fogos rivaliza com o do calhau santuário ainda que, com a metamorfose do crepúsculo para a noite, os focos que nele incidem o dourem a dobrar.
Naquela noite, os crentes que adoravam a Golden Rock pouco mais eram que umas dezenas.
Todos os anos, durante o dia de Lua Cheia de Tabaung que calha em Março, são acesas em redor de 90.000 velas. Iluminada pelas 90.000 chamas correspondentes, a rocha brilha mais que nunca.
Nesse dia, acorrem ao Monte Kyaiktiyo várias centenas, até uns poucos milhares de fiéis budistas. O seu acesso à base da Golden Rock obedece a um controlo rigoroso. Mesmo assim, o ansiado contacto com o calhau de Buda é disputado até ao derradeiro centímetro.
Reza a lenda que os crentes budistas que completem os 13km da peregrinação a partir de Kinpun pelo menos três vezes num ano se veem prendados com prosperidade e reconhecimento da comunidade.
As possibilidades de agradarem a Buda não se ficam por aí. A mesma lenda que até então nos tinha ilustrado e justificado a razão de ser budista e equilibrista da Golden Rock, explica que, à chegada ao Monte Kyaiktiyo, o barco usado pelo rei celestial Thagyami se tornou pedra.
Os crentes budistas aproveitam para louvarem também essa pedra, situada a meros 300 metros da Golden Rock e baptizada de estupa de Kyaukthanban.
Por volta das seis da tarde, a Golden Rock começar a ceder ao breu nocturno. Só uns poucos fiéis mais resilientes prolongavam a adoração da pedra dourada.
A longa peregrinação desde Rangum começava a impor-nos o devido cansaço. Nestes assuntos das energias mundanas, Buda pouco nos ajudaria. Recolhemos ao hotel. Tratamos de nos reavivar.