Passava pouco das oito e meia de uma manhã de quarta-feira.
O autocarro avançava pelas vias ainda desertas de trânsito.
Pouco depois do feriado nipónico que louva a saúde e o desporto, também não víamos vivalma naqueles arredores campestres de Quioto.
Ocorreu-nos que boa parte da população se tinha deixado dormir a recuperar do exercício comunal de há uns dias.
Uma voz feminina automatizada anunciou Kinugasa-ko-mae. Apesar do inevitável tom estridente e infantil, reconhecemos o nosso destino. Saímos.
Por diante, erguia-se uma encosta com vegetação alternada entre o verdejante e o outonal.
Preferíamos que estivesse toda ou, vá lá, quase toda, com os tons deslumbrantes que antecedem a queda. O Monte Kinugasa e as suas vertentes nunca se vergaram a caprichos.
Já Uda, o 59º imperador do Japão, exigiu ver a bela paisagem, nevada, no pino do Verão. Para o satisfazerem, os súbditos da região deram-se ao trabalho de envolver a área em seda branca.
O nome do monte traduz esse inesperado evento.
E se, desde então, muito mais acontecimentos dignos de registo se passaram nestas paragens, um enredo em particular comoveu o Japão como não acontecia desde a aniquilação nuclear de Hiroxima e Nagasaki.
E a capitulação consequente na 2ª Guerra Mundial.
A História Real e Romance de Yukio Mishima “O Templo Dourado”
Tornou-se de tal forma notório que foi reconstituído mais que uma vez como filme e, enquanto romance “O Templo Dourado”, pelo controverso Yukio Mishima. A abundância de reconstituições artísticas acabou por diluir a realidade na ficção.
Sabe-se que Hayashi Yoken era originário duma aldeia costeira do norte do Japão, um filho feio de um sacerdote budista que, determinada altura, o levou a admirar e a louvar a beleza de Kinkaku-ji.
Kinkaku-ji, por sua vez, era a antiga villa de Yoshimitsu (um xógum), transformado em templo budista pelo seu filho segundo os desejos do pai.
Segundo narraram tanto Mishima como o realizador Kon Ichikawa, após a morte do seu pai, com a 2ª Guerra Mundial em pleno, Hayashi Yoken (Mizoguchi no livro e no filme) mudou-se para Quioto. Tornou-se um dos três acólitos do templo Kinkaku-ji que o seu pai idolatrava.
No primeiro aniversário da morte do pai, a mãe de Hayashi Yoken visitou-o.
Hayashi Yoken (Mizogushi) e a Sua Personalidade Pungente
Insensível aos danos na personalidade provocados pela gaguez e feieza do filho – fraquezas exploradas por colegas e outros jovens para o humilharem – impingiu-lhe o seu anseio de que deveria suceder ao líder da comunidade religiosa.
Por essa altura, como o deixou transparecer Mishima, o imaginário do templo reduzido a escombros pelas bombas dos americanos já fascinava Hayashi.
Mas o Secretário de Guerra dos E.U.A. Henri Stimson – que havia passado a lua-de-mel em Quioto – considerou que a cidade tinha demasiada importância cultural.
Removeu-a de forma repetida e teimosa da lista de alvos a fornecer a Força Aérea dos Estados Unidos.
Tanto Quioto como o Templo Dourado sobreviveram à guerra mas, na mente esquizofrénica de Mizoguchi, a visão da destruição do templo e o desejo de o possuir e controlar continuavam a debater-se.
A notícia da capitulação japonesa devastou-o. De noite, subiu a um monte em redor da cidade e lá decretou uma maldição: ”Que a escuridão do meu coração seja a da penumbra que envolve essas luzes sem fim”.
Vários desvios relacionais e sentimentais têm então lugar com diversas novas personagens.
À medida que a sua doença psíquica se intensifica, agrava-se a antipatia para com o sacerdote-mor do templo que, em 1949, Mizoguchi vê com uma gueixa, mais um comportamento indigno daquele religioso tutor que era suposto admirar.
Ao mesmo tempo, o facto de o Pavilhão Dourado se ter tornado numa atracção turística visitada e trespassada também pelos ocupantes ianques sem que o impotente Mizoguchi o pudesse evitar, avivou a urgência de o destruir.
A determinada altura, Mizoguchi ouviu dois passageiros de um comboio conversarem sobre o templo: “a receita anual livre de imposto do Pavilhão Dourado tem que exceder 5 milhões de ienes enquanto os custos de operação não podem ultrapassar 200 mil.” afirmava um deles.
“Então e que aconteceu ao saldo?” questionou o outro. “O Superior alimenta os acólitos de arroz frio enquanto sai todas as noites e gasta o dinheiro com as gueixas de Gion.”
O Fogo-Posto que Consumou a Desilusão e Obsessão de Mizoguchi
O desgosto do acólito aumentava a olhos vistos. Para o Japão, o Pavilhão Dourado tinha-se tornado um símbolo histórico. Para ele, não passava de um monumento inebriante à decadência e à comercialização do Budismo.
A 2 de Julho de 1949, Mizoguchi entrou no Pavilhão Dourado. Espalhou medas de palha pelo chão de madeira. Vencida alguma hesitação, incendiou o edifício. Tentou subir ao terceiro piso mas a porta estava fechada.
Ao sentir o logro no plano da sua morte gloriosa, abandonou o templo, semi-intoxicado, a correr.
Um incêndio recente do templo Todai-ji de Nara causado por um cobertor eléctrico de um dos restauradores a trabalhar numa grande pintura levara as autoridades nipónicas a instaurem sistemas de alarme avançados para a época.
O do Pavilhão Dourado também soou mas a logística combustiva instalada por Mizoguchi garantiu uma rápida propagação do fogo.
Mesmo assim, o incendiário conseguiu ascender a uma colina. A tempo de, em jeito de jovem Nero nipónico, entre o delírio e arrependimento, contemplar as derradeiras labaredas.
O Kinkaku Ji Restaurado e Resplandecente dos Nossos Dias
Retomemos os nossos próprios passos contemporâneos.
Quanto entramos, o complexo ajardinado estava quase vazio.
Caminhamos na natureza até que damos com um lago amplo repleto de nenúfares. Uma corda que delimitava o acesso à secção mais próxima da margem detém-nos.
Dali, maravilhamo-nos com a visão reflectida na água escura do Pavilhão Dourado reconstruído e agora banhado a folha de ouro.
Parecia-nos flutuar para lá das dez pequenas ilhas do lago Kyoko-chi (Lago Espelho), aquém de uma floresta verdejante de grandes pinheiros japoneses com ramos retorcidos e copas a roçarem o céu azulão do Outono.
Uma fénix também dourada e de asas abertas exibia-se sobre o coruchéu do terceiro andar de estilo zen, a sua Cúpula do Fundamento.
Abaixo, o segundo andar incluía um Salão de Buda e um santuário à deusa da misericórdia.
Foi chamado A Torre do Som das Ondas e construído no estilo dos aristocratas guerreiros. Na base, reluzia a Câmara das Águas Dharma, inspirada no estilo dos domicílios da aristocracia imperial Heian, do século XI.
Durante momentos, observados por algumas carpas e kois ansiosas pelo alimento atirado de quando em quando pelos visitantes, deixamo-nos deslumbrar pela beleza que obcecara tanto Hayashi como Mizoguchi.
Meio Século depois, as Mesmas Excursões Turísticas que Revoltavam Mizoguchi
Pouco depois, assola-nos parte da mácula que os fizera desesperar.
Os primeiros autopullmans tinham chegado. Centenas de turistas surgiam atrás dos seus guias de bandeirinhas garridas ao alto. Invadiram e disputaram com grande alarido o espaço exíguo à beira-lago, até então só nosso.
Num ápice, corromperam a paz espiritual que se fazia sentir.
Sem grande alternativa, fugimos para o jardim em estilo período medieval Muromachi que nos cercava. Lá nos deleitámos com a inesperada atmosfera harmoniosa zen.
Por pouco tempo. A horda de visitantes, na sua maioria chineses, não tardou a também ali nos seguir.
Cercados, decidimo-nos a abandonar o complexo de vez.
Por alguns dias, prolongamos a descoberta da Quioto milenar e sumptuosa em que havia deambulado o acólito Mizoguchi.
E que tanto o desiludira.