Sempre fiel para com os seus postos em Surabaya e zelosa com aquela missão em particular, a dupla de oficiais do Ministério do Turismo indonésio Widarto e Bambang afiança-nos que o despertar tem que ser às três da madrugada.
Franzimos os sobrolhos mas, somos meros forasteiros naquelas terras distantes de Bromo Tengger Semeru.
Mesmo renitentes, acatamos a indicação e regressamos ao quarto conformados com a certeza de que, uma vez mais, pouco ou nada iríamos dormir.
À hora em ponto, batem-nos à porta. Já enfiado no seu semi-uniforme verde-azeitona, Mr. Bambang certifica-se do nosso despertar com um sorriso estampado que nos sabe a sadismo. “Estão prontos? Esperamos por vocês dentro do jipe.” Saíamos preparados para tudo menos para a temperatura exterior.
Há meses que viajávamos. Por certo a roçar os 4 ou 5 graus, aquele era o único frio digno desse nome com que o Sudeste Asiático nos brindava. Metemo-nos no jipe.
Esgotadas algumas palavras de cerimónia, o condutor local acende as luzes e, devagar devagarinho, fá-lo sulcar o breu de quase lua-cheia sobre o solo arenoso da caldeira de 50km2 que nos admitira.
A Subida Nocturna ao Monte Penanjakan
Mais jipes surgem do nada. Alguns ultrapassam-nos.
Outros, mantêm-se na rectaguarda. Esta dança motorizada termina numa caravana de seis ou sete veículos que logo se fazem ao caminho íngreme e pior que de cabras que nos levaria ao cimo de um tal de monte Penanjakan.
Quando atingimos os 2770 metros do seu cume, mesmo sem grande vento, a frigidez intensifica-se, estimamos que a roçar os 0 graus. Um batalhão de vendedores residentes lucra do sofrimento dos visitantes mais incautos.
Minuto após minuto, alugam casacões, vendem luvas, gorros e cachecóis e servem chás, cafés e chocolates quentes a preços inflacionados de acordo com a hora precoce e a necessidade imperiosa dos seus serviços.
As luzes que iluminam a operação tornam mais difícil reconhecer a configuração da paisagem que nos cerca. Em simultâneo, sarapintam o negrume focos de distintos espectros gerados pelas lanternas e frontais de caminhantes nos seus percursos através do Mar de Areia nas profundezas.
Podíamos estar às escuras quanto à paisagem mas uma coisa sabíamos: dentro em pouco, aquela secção do cume ficaria repleta de gente e, assim nos tinham contado Sílvia e Rafael, um casal espanhol de viajantes, seria feroz a disputa pela contemplação ideal da alvorada a devolver as cores ao céu e à reputada constelação de vulcões do Parque Nacional Bromo Tengger Semeru.
A Visão Resplandecente dos Grandes Vulcões de Java
Inauguramos uma volta de reconhecimento. Fazemos os nossos estudos. Inquirimos o suficiente para não incorrermos em erros danosos.
Na sequência do processo, mesmo ainda sem concorrência, montamos o tripé na extremidade de uma laje de cimento virada para onde havíamos concluído estarem os vulcões, em detrimento da direcção de que surgiria a aurora.
Durante meia-hora, suportamos o frio praticamente sós.
Logo, mais e maiores caravanas compostas noutros hotéis e pousadas intersectam-se junto à base da montanha e completam a sua ascensão.
Aos poucos, a claridade aumenta. Os passageiros recém-chegados depressa formam a multidão e a animosidade que nos haviam sido auguradas.
O sol re-emerge detrás de montanhas opostas. Boa parte do público prefere acompanhá-lo. Nós, apreciamos a evolução de tons do conjunto vulcânico por diante: o monte Batok logo abaixo. Atrás, ligeiramente à esquerda, cinzento em vez de ocre, com as suas vertentes também listadas, o fumegante vulcão Bromo.
Por último, na aparente projecção do monte Batok mas a grande distância para sul e bem mais elevada, a montanha superior da ilha de Java, o vulcão Semeru, com os seus majestosos 3.676 metros, bastante acima da cratera venenosa do Ijen onde tínhamos recentemente estado.
Semeru: um Gigante do Anel de Fogo
O grande astro revela-se em todo o seu esplendor e amorna a atmosfera acima da caldeira. Por essa altura, dá-se a primeira erupção iluminada – e visível – do Semeru que as gera com intervalos regulares.
Atordoada pelo espectáculo do cone invertido esvoaçante de cinzas e gazes, a multidão corre do lado virado à aurora para o orientado para os vulcões e disputa cada recanto vago.
Com a luminosidade mais forte, aquele excêntrico sortido vulcânico revelava-nos as suas formas e linhas ao pormenor. Informados de que as mini-erupções do Semeru se repetiam a cada vinte minutos, esperámos por três mais.
Todas se provaram espectaculares. Todas tiveram as suas nuvens ardentes arrastadas para oeste pelo vento que soprava constante naquela direcção.
Sumida a derradeira nuvem, por volta das sete da manhã, regressamos ao jipe, descemos para a planura borbulhenta do Mar de Areia de Tengger, o único ecossistema protegido com visual algo desértico de Java.
O complexo de Tengger é tão excêntrico quanto possível. Produto da actividade vulcânica incessante característica do Anel de Fogo, cinco vulcões partilham o interior das paredes de 200 a 600 metros da sua caldeira.
São eles o Batok e o Bromo, o Kursi (2.581 m), o Watangan (2.661 m) e o Widodaren (2.650 m). Do quinteto, o Batok é o único inactivo.
Várias outras montanhas acima dos 2000 metros surgem em volta da caldeira de Tengger. O vulcão Semeru, que nos tinha mantido ocupados toda a madrugada, – também tratado por Mahameru (A Grande Montanha) – polariza o seu próprio complexo.
Naquele momento, era o Bromo que nos interessava. É para lá que apontamos.
À Conquista do Sagrado Bromo
De tanta reverência pelo Semeru, quando chegamos à base do Bromo, já o fluxo de visitantes vinha encosta abaixo, a caminho dos veículos. Alguns desciam a pé, outros faziam-no a cavalo.
Dezenas de indígenas da aldeia de Cemoro Lawang e de outras paragens, tinham tratado de lhes alugar os seus pequenos equídeos e de assim poupar os forasteiros mais indolentes ou impreparados à maçada da ascensão.
Subimos pela longa escadaria de madeira. Já sobre a aresta do cume, contemplamos as entranhas fumarentas e sulfurosas do vulcão. Por norma, o Bromo limita-se a expelir gases. De tempos a tempos, torna-se caprichoso e entra em erupção.
Em 2004, duas pessoas sucumbiram a rochas projectadas por uma sua explosão. Em 2010 e 2011, a perspectiva prolongada de uma erupção realmente catastrófica preocupou mais que nunca as autoridades e as gentes.
O estabelecimento de uma zona de exclusão que oscilou entre dois e três quilómetros arruinou o turismo.
Erupções que libertaram enormes quantidades de cinza a grandes altitudes obrigaram ao cancelamento de dezenas de voos para Bali, Lombok e outros destinos com rotas próximas.
As autoridades alertaram ainda os nativos para o risco de colapso dos telhados das suas casas devido à acumulação de cinzas, de tempos a tempos molhadas pela chuva.
O Legado de Hinduísmo Balinês do Império Majapahit
Mas as ameaças dos vulcões não são novidade para este povo que habita povoações das montanhas de Tengger desde o século XVI. Crê-se que os Tengger têm origem no Império hinduísta Majapahit (1293 – 1500) que, no seu auge, conquistou ou submeteu boa parte do Sudeste Asiático.
No século XVI, num contexto em que já os navegadores e conquistadores portugueses tinham o seu papel com base na recém-tomada Malaca, o Sultanato muçulmano de Demak conseguiu supremacia político-militar na ilha de Java. Derrotou os descendentes do Império Majapahit que guerreavam entre si,
De fé hindu, estes, viram-se obrigados a procurar refúgio. Cortesãos, artesãos, sacerdotes e membros da realeza mudaram-se para Bali onde a sua linhagem e religião são, hoje, predominantes.
Com o reforço do domínio muçulmano em Java, os reinos Hindus cederam onde antes ainda lá resistiam. Só os refúgios de Bali, Lombok e das cordilheiras do leste de Java os salvou de uma mais que provável aniquilação.
Os Tengger, hoje agricultores e criadores de gado, incluindo dos cavalos que carregam os visitantes, “guardiães” vulneráveis aos caprichos do Bromo e restantes vulcões mas crentes na sua clemência e na dos deuses, vêm desses tempos conflituosos.
Com o posterior sobrepovoamento da ilha de Madura, os seus poderosos muçulmanos começaram a instalara-se em terras férteis e sagradas dos Tengger. Muitos Tengger acabaram por se converter ao Islão.
Esta cedência desgostou os seus líderes. Estes, recorreram aos Hindus Balineses para que os ajudassem a reformar a sua cultura e a aproximá-la do Hinduísmo mais puro de Bali.
O Reduto Divinal e agora Protegido de Bromo-Tengger-Semeru
Em anos bem mais recentes, as autoridades da Indonésia optaram por respeitar as exigências dos Tengger. Declararam as “suas” montanhas e vulcões reserva natural e cultural. Proibiram várias das máculas anteriores.
Do cimo do Bromo, enquanto Widarto e Bambang esperam e desesperam no parque de estacionamento, detectamos a silhueta rectangular do templo Luhur Poten.
Este templo materializa a fé dos Tengger na bênção e clemência de Ida Sang Hyang Widi Wasa e do deus de Mahameru (do vulcão Semeru). Mas, o templo, só por si, não parece satisfazer alguns deles.
No décimo quarto dia do festival Yadnya Kasada, após se reunirem e rezarem, os Tengger de uma povoação chamada Prolinggo sobem ao cume do Bromo.
Sobre a borda estreita do vulcão, com vista para o abismo efervescente e para uma morte certa, centenas de fiéis atiram fruta, arroz, vegetais, flores e gado de pequeno porte para o interior da cratera, em jeito de oferendas ou de sacrifícios.
A cerimónia terá sido concebida com a dignidade e elegância tão próprias do Hinduísmo Balinês. E, no entanto, com o tempo, essa própria dupla característica contribuiu para admitir que vários nativos necessitados passassem a arriscar as vidas munidos de redes e outros utensílios mais abaixo, preparados para recolherem o máximo possível do que fosse atirado para perto de si.
Alguns creem que, mais do que víveres preciosos, as oferendas lhes trarão boa sorte. Verdade seja dita que ainda está para vir o dia em que os vulcões expulsam ou destroem os Tengger.
Até lá, este povo em tempos marginalizado, continuará a prosperar da fertilidade e exuberância geológica das suas montanhas de fogo.
Mais informações sobre o PN Bromo-Tengger-Semeru na página respectiva da UNESCO.