À medida que o barco se afasta da ponta sul de África, Baía da Mesa adentro, o oceano agita-se um pouco.
Nada digno de um monstro Adamastor, ou que chegasse a inquietar os marinheiros lusos que desbravaram estes confins do Mundo.
Aos poucos, a Montanha da Mesa afasta-se. Define-se contra um céu de um azulão predominante. A distância faz o pico Lion Head submeter-se-lhe e revela um capricho deslumbrante da meteorologia, um manto denso de nuvens que cobre a Mesa, mas não o casario da Cidade do Cabo que se senta ao seu pé.
É este o cenário majestoso que vemos amplificar-se a sul. A norte, vislumbramos uma mera linha ténue acima do plano marinho, uma faixa de terra que desde há muito se cruza com a da história da África do Sul.
Bartolomeu Dias foi o primeiro europeu a avistá-la, em 1488, durante a sua expedição pioneira e exitosa em torno do então conhecido como Cabo das Tormentas.
O barco em que seguíamos continua a acercar-se. A mácula no azul-Atlântico transforma-se num manto crescente de verde, feito de arbustos e árvores baixas, de que se eleva a torre branca e vermelha dum farol.
O leste da ilha desvela um casario térreo imposto à vegetação.
À determinada altura, ficamos com a ilha e parte do seu casario entre nós e a montanha da Mesa.
O barco contorna um molhe feito de grandes blocos quase-prismáticos de cimento, colonizado por centenas de corvos-marinhos.
Ilha Robben: ancoragem nas Agruras da História Sul-Africana
Do lado de lá, entramos em águas isoladas das tempestades e no destino final da travessia, a doca da Ilha-Prisão de Robben.
Um mural fotográfico resume o mote da visita que estávamos prestes a iniciar: “A Liberdade não Pode ser Algemada – Repressão, Libertação, Ressurreição”.
Foram vários os homens aprisionados e libertados em Robben Island, quase todos africanos, indianos, de etnias não brancas.
Três deles, viriam, mais tarde, a ser eleitos para Presidente da África do Sul.
Nelson Mandela e a Resistência contra o Apartheid
Nelson Rolihlahla Mandela, o primeiro, destacou-se como nenhum outro, ao ponto de ainda ser idolatrado como o Pai da Nação Sul-Africana e um dos grandes sofredores e lutadores pela liberdade e justiça racial de todos os tempos.
Durante o Inverno de 1964, em pleno Apartheid imposto pelos sucessivos governos “brancos” da África do Sul, Mandela foi capturado e enviado para cumprir pena na Robben Island.
Viu-se forçado a cruzar o mesmo portal que, entretanto, cruzámos, sob uma inscrição sarcástica de acolhimento “Welcome (to Robbene Island) – We serve with pride”.
Desde os seus tempos de estudante que Mandela se envolvia na política de nacionalismo africano e anti-colonial.
Exercia já advocacia, em Joanesburgo, quando, em 1943, aderiu ao partido ANC (African National Congress) e ajudou a fundar a sua Youth League.
Cinco anos mais tarde, o Partido Nacionalista, de filosofia racista e de supremacia branca, instituiu o Apartheid, um regime de segregação e discriminação racial que relegava todas as etnias não brancas da África do Sul a um estatuto subalterno face à população branca.
Confrontados com o maléfico Apartheid, Mandela e tantos outros membros do ANC assumiram como objectivo primordial, desmantelá-lo.
À medida que Mandela subia na hierarquia do partido, intensificou o seu protagonismo na luta contra o Apartheid, abriu excepções nos seus princípios pacifistas para sucessivas acções de sabotagem contra o estado sul-africano.
Como consequência, foi feito prisioneiro, em 1962. Pouco depois, sentenciado a prisão perpétua.
Tal como sugeria o portal, Mandela serviu a pena com orgulho.
Com orgulho de si e da sua intenção e do ANC de derrubar o Apartheid. De tornar a África do Sul, uma nação multirracial democrática e tolerante.
Cruzamos o portal. Do lado de lá, embarcamos num autocarro.
A bordo, um cicerone guia-nos pelo vasto recinto prisional. Por um campo de râguebi e futebol, ladeado de torres de vigia, selado por vedações, as exteriores, coroadas de arame farpado.
A bandeira sul-africana ondula acima de uma secção fulcral, a que congrega as celas e o pátio de recreio.
Um outro guia, ex-prisioneiro, leva-nos à ala das celas. Lá nos exibe um cartão que emula os registos dos prisioneiros. Conduz-nos à cela de Mandela.
Lá vemos subsistirem uma chávena e um pires de metal, um balde de lixo e um monte de cobertores.
Fazia frio, sobretudo nos meses invernais do limiar sul de África.
Os prisioneiros sofriam a dobrar nos primeiros tempos, quando tinham que quebrar pedra na pedreira local e, apanhar algas nas águas gélidas do Atlântico do Sul, mais tarde, vendidas aos japoneses que as usavam como fertilizante.
Robben Island: a Ilha-prisão em que Nelson Mandela também se Destacou
Passamos ao pátio. Resplandece um exemplo também vegetal do tratamento especial que, devido à sua auto-estima e disciplina, Nelson Mandela fez por merecer.
Todo um recanto do muro de cimento que isolava os prisioneiros, surge plantado e ajardinado, com cactos e até uma pequena vinha trepadeira que busca o desafogo do firmamento.
A elevação que Nelson Mandela mostrava no seu trato para com outros prisioneiros e autoridades fez com que os guardas lhe permitissem este e outros caprichos.
Pouco depois de ter entrado em Robben Island, Mandela entregou-se ao repto de aprender Afrikaans, na prática, a língua dos seus captores e que fez questão de saber falar com os guardas.
Um de inúmeros outros exemplos da sua dignidade e esperança de vir a unir a nação sul-africana, deu-se aquando da visita do Ministro sul-africano da Justiça e Prisões, Jimmy Kruger.
Kruger perguntou a Mandela se havia algo que pudesse fazer. Ao que Nelson respondeu “bom, pode sempre libertar-me”.
Findo o momento de humor, Mandela aproveitou para deixar claro que não tinha nada contra a etnia bóer enquanto povo: “Olhe, as colectâneas de Opperman, um poeta afrikaaner, não estão na nossa biblioteca. Podia arranjar forma de as colocar lá.
Aprecio-o muito.” Pouco depois, o editor da obra de Opperman, ofereceu-as à prisão. Mandela escreveu-lhe a agradecer.
O nosso périplo pela Ilha de Robben passa ainda pelo cemitério, a que, como a pedreira, Mandela resistiu.
A Ilha Robben nos Primeiros Tempos Coloniais
Segue até ao limiar norte da ilha, batido por um mar repleto do tal kelp frígido, habitado por colónias de pinguins intrigados pela súbita atenção que lhes é dedicada.
Os pinguins são uma das poucas espécies que, por altura do seu desembarque na ilha, em 1652, os holandeses encontraram. Os outros animais foram as focas.
Inspiraram o baptismo de Robben (foca) Island.
Foram também os holandeses que, durante o século XVI, inauguraram o longo uso da ilha enquanto prisão, onde chegaram a manter reclusas as famílias reais de Ternate e Tidore, antigos reinos situados nas ilhas Molucas.
No extremo norte de Robben, uma moldura identificada e dotada de coordenadas GPS, enquadra a distante Montanha da Mesa e a Cidade do Cabo, a civilização à vista com que os prisioneiros sonhavam.
Enquanto as autoridades os mantinham alienados de tudo o que acontecia na África do Sul e no Mundo.
Nos dezoito anos de captividade de Mandela na prisão de Robben Island, o Mundo evoluiu.
Em 1982, Mandela deixou a “ilha acorrentada” para a Prisão de Pollsmoor, na Cidade do Cabo, onde cumpriu mais seis anos de pena, dramatizada por ter contraído tuberculose.
No final de 1988, foi mudado para a prisão Victor Verster onde cumpriu os derradeiros dois anos a que tinha sido sentenciado. O Muro de Berlim caiu.
Na senda da abertura do seu predecessor P.W. Botha, Frederick de Klerk, o sétimo presidente da África do Sul concluiu que o Apartheid não poderia continuar.
Ilha Robben: de Ilha-Prisão a Ilha-Museu da Cidade do Cabo
Libertou Mandela e vários outros líderes e ex-líderes do ANC. Sem a função que lhe havia dado sentido, a prisão de Robben Island foi desactivada e transformada num museu-vivo.
Ao contrário do que antes acontecia, o museu está aberto a visitas durante o ano inteiro, excepto dias de intempérie que o ferry que a serve não pode enfrentar.
Não tarda, regressamos à Victoria & Alfred Waterfront da Cidade do Cabo, pela baía da Mesa já mais ventosa e agitada.
Mandela perdeu dezoito anos da sua vida em liberdade na “ilha acorrentada” de Robben. Ao visitá-la, desvendamos como o destino o condenou a liderar e a unir os sul-africanos.
E a inspirar o respeito pela democracia e igualdade racial em redor da Terra.