Saksun até estava bem arrumada num recanto do noroeste da ilha principal das Faroé, Streymoy, numa espécie de antípoda da capital Torshavn.
A povoação surge para o interior, abrigada entre dois lagos. Na iminência de uma praia de areia negra e do braço do Atlântico do Norte que a banha.
A aldeia surgiu pela primeira vez em escritos, em 1400. Registaram a tragédia de a Peste Negra ter vitimado boa parte, se não todos os seus habitantes.
Passaram dois séculos. As sucessivas tormentas atrozes que agitam o oceano gélido ao largo, arrastaram tanta areia para a costa e o interior do fiorde que bloquearam a sua saída para o mar. O que era antes um porto natural providencial, tornou-se uma lagoa salobra, apenas utilizável durante a maré alta e por pequenos barcos.
Sem poderem usar embarcações mais seguras, e sem uma igreja e padre na sua aldeia, os moradores viram-se forçados a cruzar as montanhas e a usarem a de Tjornuvík, já quase no extremo norte de Streymoy.
Assim foi até Junho de 1858, data de inauguração da igreja que as gentes de Saksun decidiram desmontar em Tjornuvík, carregar em porções e voltar a montar em Saksun, com diversas alterações estruturais e decorativas.
Daí em diante, os moradores puderam viver na paz ainda mais sagrada de Deus.
A Via Asfaltada e um Fluxo Crescente de Visitantes Forasteiros
Essa paz, prolongou-se até à chegada às Ilhas Faroé do fenómeno do turismo. A estrada número 53 que a tornou acessível a partir de Hvalvik e do meio do grande fiorde de Sundini, revelou-se, ao mesmo tempo, uma bênção e uma segunda praga.
Deslumbrados com a beleza grandiosa e excêntrica do arquipélago, os estrangeiros pioneiros começaram a passar palavra. Verão após Verão, mais chegaram, quase todos, como nós, ao volante de carros alugados e apostados em desvendarem as principais ilhas, de lado a lado, de cima a baixo.
A partir dos anos 80 do século passado, também Saksun se viu afectada por essa febre.
A aldeia não constava do programa inicial que as autoridades de turismo faroesas nos entregaram.
Depois de termos constatado a importância que guias de viagem convencionais e online lhe atribuíam, estranhámos essa ausência. Decidimos por lá passar.
Viajamos directos de Tórshavn. Primeiro até Signabour. Em seguida, costa leste da ilha de Streymoy acima, sempre com vista para a ilha irmã de Eysturoy.
Passada Hvalvík, por fim, tomamos a tal estrada 53. Flectimos para o vale do rio Storá (o Grande Rio).
A estrada segue os meandros do rio.
E o rio nasce à entrada de Saksun. Nem que fosse porque a 53 era a única e muito estreita via, não tínhamos como nos enganar.
A Visão Recompensadora de Saksun
Decorrida quase meia hora de paisagem ervada, amarelada, musgosa e ensopada, colonizada por gansos, patos e outras aves migratórias, ainda antes do povoado, damos com um parque de estacionamento obrigatório.
Lá deixamos o carro, satisfeitos por regressarmos ao modo pedestre.
Percebemos que, no seu término, o vale se arredondava em volta do tal lago assoreado de Pollurin. Que uma queda d’água sulcava a sua encosta leste, num fluxo de branco quase diagonal. Ainda antes, uma cascata vizinha cumpria o seu próprio trajecto.
De onde a víamos, parecia sumir-se entre as casinhas de telhado de erva no âmago do lugarejo.
Na realidade, corria-lhes ao lado, por um leito talhado pelo relvado predominante, que a levava até uma outra entrada no lago.
Andamos neste feitiço da simplicidade bucólica de Saksun, quando, um rebanho diminuto de ovelhas surge do nada, a percorrer o L de asfalto que atravessa o casario desse núcleo de Dúvugardar (Quinta do Rei).
Erguido no século XVII mas activo, lugar de criação e reprodução de cerca de trezentas ovelhas.
À falta de moradores, achamos que os ovinos serviriam na perfeição de escala para a povoação.
Aceleramos o passo, apostados em seguirmos os dos animais.
No entusiasmo fotográfico, não reparamos sequer numa fita amarela, a meros vinte ou trinta centímetros de altura.
Sem termos consciência de que o fazíamos, avançamos um ou dois metros para cima do ervado, de onde nos parecia mais adequado continuarmos a fotografar as ovelhas e a igreja alva que abençoa Saksun.
Logo à saída do parque de estacionamento, quase nos tinha atropelado uma velha carrinha vermelha amolgada, sem o vidro traseiro e a tampa do combustível quebrada.
E a Aparição Fulminante e Furiosa de Johán Jógvansson
No instante, resolvemos considerar a velocidade disparatada a que surgiu um mero azar. Sem que o esperássemos, o mesmo condutor reaparece.
Começa a descompor-nos, exaltado, até mesmo algo tresloucado: “quem é que vocês pensam que são? Não viram o aviso no poste? A próxima vez que passem a linha, chamo a polícia! Isto não é a Disneylândia, não vos queremos cá!”
O homem estendeu mais e mais a sua ira. De início, limitámo-nos a escutá-lo e a tentar compreender de onde vinha tudo aquilo.
Quando por fim o sentimos dar de si, interpelamo-lo: “Oiça, não sabemos sequer quem é mas não vimos aviso nenhum e esta fita é uma coisa ínfima. Com o entusiasmo de seguirmos as ovelhas, não demos conta.
Mas mais importante que isso: é bom que tenha consciência de que, se reage assim de cada vez que algum visitante pisa a erva, está condenado a ter um ataque cardíaco. Já viu quantos andam a explorar a aldeia.
Acha que os consegue controlar a todos? Por muita razão que tenha, deve começar por se controlar a si e resolver o resto de outra maneira. Assim, não vai durar muito.”
Sincero, o alerta deixa o interlocutor algo comovido, ainda mais apreensivo. “Ok, eu percebo que não fizeram de propósito e agradeço o aviso.
Acredito no que me estão a dizer e a verdade é que isso me atormenta. Tenho filhos, sabem?
Mas é que, assim que chega ao fim a Primavera, temos que levar com este tormento.
Nós não ganhamos nada com a aldeia invadida. Nem pedimos ou autorizámos que isto fosse assim.”
Saksun e a Aversão de Johán Jógvansson ao Turismo
O homem era Johán Jógvansson. Fora classificado pelo jornal “Local – News from the Faroese” como o grande agricultor de Saksun, há muito conhecido pelo seu acolhimento irascível dos visitantes.
Era também o autor da mensagem “this is not Disneyland. Tourists, go Home!” pintada, em Abril de 2018, numa caravana estacionada em Saksun. No mês seguinte, dois visitantes queixaram-se de que teria ameaçado abater o cão que com eles seguia.
Há muito que Johán mantinha uma guerra com as autoridades de turismo das Faroé. Acusava-as de promoverem Saksun e de assim aniquilarem a tranquilidade e genuinidade da vida dos seus. Tinha sido Johán o motivo porque Saksun não contara sequer para o nosso itinerário.
Acentuamos o tom de tranquilidade e pacificação. Prometemos-lhe não voltar a cruzar a tal fita. Johán, por sua vez, desculpa-se pelo descontrole. Continua a justificar-se.
Sabemos que, pouco depois, membros da organização Visit Faroe, se encontraram com os representantes da kommuna de Sunda (de que faz parte Saksun), com o objectivo de chegar a estratégias de melhorar o turismo na aldeia e na região.
Durante o longo desvario, Johán deixou-nos bem claro o seu desprezo pelo turismo em geral, razão porque continuámos cépticos quanto ao sucesso da embaixada.
À margem do complicado apaziguamento de Johán e família, a população de Saksun diminuiu.
Recentemente, de catorze para onze, em dias de chuva ou degelo, menos que as quedas d’água em volta da povoação.
Moradores em Extinção, Turistas em Permanente Invasão
Parte dos falecidos de Saksun estão sepultados no cemitério murado na parte detrás da igreja, feito de lápides de pedra e cruzes de madeira.
Os turistas, esses, aumentam de ano para ano. Vemo-los na encosta acima de Dúvugardar, deslumbrados com os panoramas e a magia bucólica do lugar, entregues a fotos sem fim.
Sem que o já esperássemos, avistamos dois moradores de Saksun que não Johán.
Quando neles reparamos, à distância, identificamos uma jovem vestida de negro, a empurrar um carrinho de bebé.
Guia-a um cão de pastoreio, um Border Collie, apressado, mas, ainda assim, entretido a verificar a legitimidade das ovelhas que pastavam de ambos os lados do caminho.
O trio subia para uma quinta a meia encosta, instalada sobre uma faixa de terreno alisado.
Johán nunca se preocupou em dizer onde habitava. Sendo o grande proprietário rural de Saksun, concluímos que deveria ser ali mesmo e, aquela caminhante, a sua esposa.
Apurámos, mais tarde, que Johán tinha instalado recentemente uma portagem automática no acesso à famosa praia de Saksun. O portão aceitava pagamento com cartão de crédito.
O acesso custava 75 coroas dinamarquesas (cerca de 10€), tanto a nacionais como a estrangeiros. A multa para quem contornar o portão ficou estabelecida em 1000 coroas DKK, em redor de 135€.
A medida suscitou polémica. Johán fundamentou-a com o ser injusto que as agências de turismo e guias ganhassem dinheiro a revelarem aos turistas terras em que ele gastou e continua a gastar largas somas.
A sua vontade foi, em parte, feita.
Saksun nunca será uma Disneylândia. A comparação de Johán serviu o propósito de dramatizar e facilitar os seus objectivos.
Se alguma vez se tornar uma Disneylândia, será, pelo menos, uma Disneylândia faroesa paga.