Assim que o casario pastel de Porto Novo fica para trás, Santo Antão regressa à crueza e altivez dos seus primórdios geológicos, dos milhões de anos passados em convulsão e erosão.
Na quase ausência de marcas humanas, sobressai o esplendor do vulcanismo que a fez erguer das profundezas do oceano. Todo este tempo vencido, o Atlântico renova, momento a momento, a sua relação íntima com as montanhas ferrosas da ilha.
A primeira visão que nos arrebata é a de um conjunto de cumes comedidos que a luz solar faz resplandecer e que um manto de bruma seca, bem seca e bem branca, se esforça, em vão, por abraçar.
A via litorânea destoa por completo da Estrada da Corda. Ziguezagueia para nordeste. Cruza uma série de ribeiras em que, por alturas do meio do ano, só corriam pó e areias.
Atravessada a de André Col, o asfalto revela-nos o cone quase perfeito do Morro de Tubarão.
Com meros 325m, bem abaixo dos 1585m do Pico da Cruz sobranceiro destas partes, este legado estriado da erupção-mãe da ilha deixa-nos boquiabertos, ávidos do que se seguiria.
Transpomos o leito árido da Ribeira Brava e a linha imaginária que separa os concelhos de Porto Novo e de Paul. Vinte minutos depois, confrontamo-nos com a Ponta de Tumba.
Ponta de Tumba e o Velho Farol de Fontes Pereira de Melo
Damos ainda com a torre branca, octogonal, suja e arruinada de um farol. Sobre uma estrutura enferrujada, a sua velha campânula tem vários vidros partidos.
Logo acima, o sol, já mais alto, incide numa baía recortada e profunda.
De cada vez que a bruma seca o liberta, reforça o verde-aquoso, quase esmeralda, do mar batido pelo vento.
De onde estávamos, só conseguíamos vislumbrar a linha de costa noroeste de Santo Antão.
Interessados em desvendá-la, intrigados pela resistência estóica do farol, decidimos subir o trilho murado, pejado de cardos e de cactos, e investigá-lo.
Uma placa tão gasta como o resto da estrutura, identificava o “Pharol António Maria de Fontes Pereira de Melo” erguido em 1886, no reinado de Dom Luís “o Popular”.
Manteve-se activo até 2006. Pouco depois da nossa visita, foi recuperado. Voltou a contribuir para a segurança da navegação, traiçoeira naquelas paragens do Atlântico, que os Alísios embalam e agitam sem misericórdia.
Ao chegarmos à sua base, o velho farol serve-nos de ponto de observação.
O seu promontório desvela-nos os caprichos da costa e uma série de enseadas sulcadas pela continuação da estrada que há muito nos acolhia.
Pontinha de Janela: mais uma Inusitada Aldeia de Santo Antão
Ao fim de mais de uma hora sem quase vermos construções, o farol sugere-nos uma península afiada que se prolongava oceano adentro, coberta de casario e de socalcos agrícolas até o mar o desautorizar.
Sem razões para complicar, o lugar era tratado por Pontinha. Menos óbvia, seria a razão para, do nada, aquele retalho quase anfíbio acolher tanta gente.
À medida que dele nos aproximamos, percebemos o quão abrupto e inóspito era o norte de Santo Antão.
Compreendemos como, de acordo, mesmo mais exposta ao vento e às vagas, uma faixa de terra quase plana com acesso fácil ao mar, fora habitada em jeito de bênção divina, com o esforço e o mérito com que os cabo-verdianos se habituaram a sobreviver.
Não obstante o aperto, há lugar para um campo de futebol que dá sentido ao clube União Desportiva da Janela, outro motivo de empenho e de orgulho da aldeia.
Uma baía até então oculta, surpreende-nos com vários dos contrastes orgânicos de que a ilha é pródiga.
A espuma marinha alva desfaz-se sobre um limiar de seixos e calhaus basálticos.
Algumas dezenas de metros para o interior, os calhaus e seixos dão lugar a uma areia áspera a condizer, duas balizas de pau nela plantadas, em jeito de desespero futebolístico.
Ainda mais acima, já do lado de lá da estrada elevada, despontam coqueiros e palmeiras de uma plantação agrícola diminuta mas viçosa.
À Pontinha da Janela, segue-se a Janela.
Ao percorremos a extensão da povoação, composta de casas umas alvas, umas coloridas, outras do cinzento característico dos blocos de cimento por pintar, brotam mais algumas palmeiras e coqueiros agraciados com a humidade ali largada pelos Alísios.
Em termos paisagísticos, destaca-se o penhasco perfurado que enquadra o oceano do lado de lá e que inspirou o nome do povoado.
No que diz respeito à História e às suas controvérsias, uma pequena rocha rabiscada concentra as atenções.
A Pedra de Letreiro e a Teoria Desprezada de Gavin Menzies
Em 2002, Gavin Menzies, um oficial reformado da Marinha Britânica publicou “1421 – O Ano em que a China Descobriu o Mundo”.
Na obra, explana o que consideram provas de exploração marítima do mundo anterior à europeia, entre 1421 e 1423, por parte de navegadores chineses, entre as quais, a dobragem do Cabo da Boa Esperança, o Estreito de Magalhães e a chegada à Austrália.
Menzies substanciou as suas teorias durante viagens suas por 120 países e quase mil museus, bibliotecas e portos medievais de boa parte do Mundo.
Ora, neste rodo de informação por ele estudada, constava a tal rocha de Janela, a Pedra de Letreiro que os moradores chamam de Pedra Scrivida.
À imagem de outros autores, Menzies afiança que preserva inscrições feitas por visitantes de Santo Antão anteriores aos supostamente pioneiros europeus.
Uma aliança de historiadores conceituados fustigou Menzies. Em três tempos e sem pejo.
Confrontaram-no com a sua fanfarronice teórica, na realidade, assente numa total ausência de metodologia e de seriedade científica.
A par de inabilidade em questionar e interpretar dados históricos que afiançam reduzir a um nada a deambulação investigativa de Menzies pelo Mundo.
A polémica intriga-nos. Comprometemo-nos a investigar o livro, tarefa que continua numa lista aturada decorrente das nossas próprias divagações.
Apressamo-nos a retomar, a de Santo Antão, pela beira-mar cada vez mais abrupta da costa norte.
Por Terras de Paul e da Vila (agora cidade) das Pombas
À Pontinha de Janela, segue-se a zona de Paul que dá o nome ao concelho em que andávamos.
Denomina uma área de encosta irrigada por três ribeiras que fluem das terras mais altas (incluindo o Pico da Cruz), a de Paul, a de Janela e a de Penedo, responsáveis por um solo muito mais encharcado e verdejante do que é normal em Santo Antão.
De tal maneira fértil que permite várias colheitas de cana-de-açúcar, de banana, de mandioca e até de café.
Em Paul, o carro em que circulávamos avaria. Aproveitamos a espera pela sua substituição, para calcorrear as ruelas, sobretudo as marginais, mais arejadas.
Rendemo-nos ao calor e a algum cansaço. Instalamo-nos num restaurante a almoçar peixe recém-pescado ao largo, com outros petiscos cabo-verdianos.
No entretanto, um funcionário do rent-a-car chega com a pick-up substituta. De novo motorizados, descobrimos pontos de observação sobre a Vila das Pombas, hoje, promovida à cidade principal do concelho do Paul.
Pombas estende-se por uma fajã comparável à Pontinha, se bem que lateralizada.
De onde a admirávamos, uma sebe de coqueiros erguia-se acima de uma beira-mar.
Para não variar, feita de grandes seixos rolantes em que, mesmo num equilíbrio precoce, dois rapazes enfrentavam a rebentação vigorosa, entregues a um banho marinho refrescante.
Seguia-se o cemitério local.
E, para norte, o casario marginal, uma vez mais de blocos por pintar, com algumas excepções, de tons pastel, num ou outro caso, de cores garridas destoantes.
Prosseguimos marginal fora, atentos às modas, usos e costumes pitorescos destas partes.
Uma senhora tinha transformado parte da sua casa numa mercearia. Apostada em que os clientes lá encontrassem um pouco de tudo, baptizou-a de Google.
À falta de fregueses, mantinha-se à janela, com uma filha a que o parapeito chegava ao nariz, a tentar perceber quem eram, afinal, os forasteiros com quem a mãe tagarelava.
O Trapiche Secular do Senhor Ildo Benrós
“O Sô Ildo? É uma porta muito simples que encontram aí num muro comprido” informa-nos a senhora num português o menos crioulo possível.
A porta abre-se para uma fazenda disposta em redor de uma casa rural antiga, de um rosa gasto, com um pátio de terra murado por diante.
Do centro do terreno, irrompe o fulcro de todas as operações, um trapiche tradicional com, pelo menos, quatrocentos anos.
Recebe-nos o dono, o senhor Ildo Benrós.
Habituado às visitas dos turistas, mais pragmático que sorridente.
Ildo deixa-nos à vontade, pelo que acompanhamos o mais perto possível os vários passos do fabrico do grogue:
O transporte da cana-de-açúcar a partir da plantação acima da casa.
O aparelhamento dos bois no braço, a rotação do mecanismo.
A inserção gradual da cana na prensa, a fonte do caldo doce e ainda fresco que um dos trabalhadores nos dá a provar, em jeito de preparativo para o grogue e para a poncha que acabamos por comprar.
No derradeiro trecho para a Ribeira Grande, passamos pela aldeia de Sinagoga.
E, uns quilómetros para diante, por uma encosta que albergava dezenas de currais de porcos, geminados em muros de pedra, ali colocados de maneira a garantir uma distância higiénica das casas dos proprietários e da cidade em geral.
A Ribeira Grande não tardou.
Seria apenas a primeira de várias incursões à grande cidade do outro lado de Santo Antão.