A primeira vez que sobrevoámos o Grupo Central açoriano, sentados à janela, reparámos em dois atributos.
A montanha cónica do Pico, tecto de Portugal, muito acima do plano médio em que assenta o triângulo insular. Do outro lado do mais longo dos canais, uma ilha longilínea, escarpada como nenhuma outra, uma gigantesca e verdejante nau da Terra por ali ancorada, com 54 km de comprimento por 7km de largura. Sobressaiam ainda várias das fajãs de São Jorge.
Não era esse o caso, mas, sempre que São Jorge é o destino final, ao fazer a sua aproximação à pista, o avião orienta-se a duas delas, a da Queimada e a de Santo Amaro.
A primeira vez que desembarcamos em São Jorge, deixamos o ferry oriundo de São Roque, destinado ao cais da Vila das Velas, a capital, também ela no fundo de um enorme declive.
Os vários dias na ilha, passamo-los sob esta ditadura geológica, entre as alturas da ilha e os seus acrescentos, fossem gerados por colapsos das vertentes ou por escoamentos ancestrais de lava.
Os Tempos de Incerteza da Descoberta e da Colonização
Malgrado a configuração, à primeira vista, desafiante de São Jorge, a Vila de Velas comprova o êxito da colonização local, com mais de meio milénio.
Foi inaugurada trinta anos após o descobrimento da ilha que se crê ter ocorrido por volta de 1439, mesmo que não se saiba ao certo quando se deu o primeiro avistamento e quem foi o marinheiro autor.
Os quase dois mil moradores de Velas habitam um casario prolífico que, com o tempo, ocupou a maior das áreas planas da ilha, na extensão de uma enseada generosa, favorável à ancoragem.
De 1470 em diante, as embarcações não mais pararam de chegar e zarpar, não tarda, incumbidas de carregar, destinados a Portugal Continental e ao norte da Europa, vinho, milho, inhame, pastel-dos-tintureiros e urzela.
À imagem do que aconteceu nas vizinhas ilhas do Pico e do Faial, parte dos colonos de São Jorge chegaram da Flandres. Deles se destacou o nobre Willem van der Haegen, cuja complexidade do nome justificou que o aportuguesassem para Guilherme da Silveira.
As Velas das Naus, e a Vila das Velas
As velas de tais embarcações terão, com forte probabilidade, inspirado o baptismo popular da Vila de Velas, se bem que coexistam diversas outras hipóteses.
São, algumas, a distorção de “belas”, a simples adaptação do nome de uma terra do Continente português ou até origem numa expressão derivada do “velar” sinónimo de vigiar, fosse a passagem de baleias, fosse a actividade vulcânica que, como veremos adiante, se veio a revelar um sério obstáculo à constância e paz do assentamento.
Caminhamos pelas ruas de Velas, do seu Portão do Mar para cima.
Admiramos a elegância açoriana da vila, abençoada como é suposto, por um templo do Senhor condigno, neste caso, a sua Igreja Matriz.
A inclinação do terreno pouco ou nada obstou à harmonia do casario, espaçado, polido, em certos pontos até resplandecente de cor, como em redor do Jardim da Praça da República, com coração no seu coreto escarlate.
Haveríamos de voltar a Velas dia após dia.
Com toda São Jorge por desvendar, fizemo-nos à estrada e à ladeira sinuosa que sobe do limiar da povoação às alturas da ilha.
No tempo que decorrera desde a travessia do Pico, uma tal de tempestade Bárbara afectava o Continente. Como o víamos, ou era outra que sobre nós se intensificava, ou chegava com tal nível de barbaridade que atormentava em simultâneo os Açores.
Quanto mais ascendemos na ilha e perdemos a protecção do seu Sul mais sentimos a força do vento. Avolumava-se em nós a curiosidade quanto à vertente setentrional de São Jorge.
Umas rabanadas invernosas e aguaceiros imprevisíveis, não chegariam para nos intimidar.
Barrados pela passagem de uma manada extensa de vacas frísias, deixamos a estrada N1.
Metemo-nos numa outra que, perdida em pastos e rectângulos agrícolas murados, intersecta a ilha.
A Visão Deslumbrante da Fajã do Ouvidor
Numa quase diagonal sinuosa, contornamos o domínio repleto de caldeiras do Pico da Boa Esperança (1053 m, maior elevação da ilha) e prosseguimos para Norte Grande. No limiar norte desse Norte, damos com o cimo e com o miradouro que procurávamos, o da Fajã do Ouvidor.
Por diante, mas cerca de 400 metros abaixo, destacava-se da ilha uma sua adenda. O nome da fajã advém de, nos tempos idos da colonização, ter sido seu proprietário Valério Lopes de Azevedo, o Ouvidor do Capitão Donatário de então.
Não obstante uma cobertura densa de ervado agrícola, a lava negra e sulcada a descoberto na orla do mar, parecia comprovar uma origem em escoadas lávicas. Uma vez solidificada e erodida, moldaram-se nela diversas piscinas marinhas naturais nessa altura, invadidas e batidas pelas vagas aumentadas pelo vento.
O factor balnear da fajã do Ouvidor faz com que, nos meses de Verão, seja uma das mais concorridas da ilha. As casas mais modernas ameaçam suplantar em número as de construção tradicional.
Por outro lado, malgrado durante quase todo o ano ser usada pelos agricultores da zona, com o Estio, chegam dezenas de famílias de férias.
O Café, o restaurante e, se for caso disso, até a discoteca abrem.
A Ouvidor ganha outra vida.
A Sequência Deslumbrante de Fajãs da Costa Norte
Do cimo do Miradouro, olhando a leste, vislumbrávamos também os contornos da fajã mais próxima, a da Ribeira da Areia. Logo, menos óbvias, a do Mero, a da Penedia, a das Pontas.
Mais distante, pronunciada sobre o Atlântico, em forma de vulcão achatado, distinguíamos ainda a dos Cubres, senhora de uma fascinante lagoa de água salobra, vulnerável às marés mais cheias e às vagas fortes das tempestades.
A Fajã dos Cubres é ainda o ponto de partida de uma caminhada deslumbrante à vizinha Fajã da Caldeira do Santo Cristo a que dedicaremos o seu próprio artigo. Até lá, regressemos às terras cimeiras de São Jorge.
Voltamos a atravessar para a costa sul onde descemos para a Calheta, a vizinha de Velas.
Já como vila, continuou a contribuir para a colonização e o desenvolvimento da ilha que não evitou um progressivo decréscimo populacional.
Calheta: há Séculos na Calha da Vila de Velas
Passada a segunda metade do século XIX, a Calheta, em particular, tinha quase 8400 habitantes. Em 2011, contava com 3773.
Como seria de esperar, a vila passou pelas mesmas provações que Velas. Ataques de piratas e corsários, sismos – com destaque para o “Mandado de Deus” de 1757 – derrocadas e maremotos inundantes como o de Outubro de 1945.
Hoje, protege a Calheta do Atlântico o término áspero de uma torrente lávica pré-histórica e um muro que a municipalidade lhe acrescentou como limite extra da marginal.
Chegamos ao limiar leste da sua enseada e porto. Espreitamos a antiga fábrica de conservas Marie d’Anjou, recém-transformada no Museu da Ilha.
Sentimos o pulso ao dia-a-dia da povoação, após o que voltamos a ascender a vertente jorgense.
De Volta ao Cimo, Rumo à Ponta Leste de São Jorge
Retomamos o rumo para o oriente da ilha, sempre atentos ao mapa, em busca das fajãs na sua base. Pelo caminho, deliciamo-nos com a sucessão de chafarizes seculares da ilha, todos marcados com as iniciais O.P. (obras públicas), e o ano da sua construção.
Um deles, de pedra vulcânica dourada pelo tempo, parecia querer distrair-nos da obra de arte natural que se estendia por detrás: o resto verdejante e abrupto da ilha, desdobrado em três grandes recortes de falésias meridionais.
Um meandro da estrada leva-nos à base de uma encosta resplandecente, verdejante e salpicada por pedras de um velho moinho de água. Uns quilómetros para diante, um novo miradouro revela-nos nova fajã, a de Vimes.
O Café Prodigioso da Fajã de Vimes
Ziguezagueamos a favor da gravidade, até desembocarmos no seu litoral humanizado. Mesmo se o dia continuava ventoso e fresco, o cenário acima tinha o seu quê de quase tropical. De tal maneira que em termos vegetais e rurais, o produto estrela da Fajã de Vimes é o café.
Metemo-nos por um trilho pedregoso acima. Não tarda, entre muros e uma quase selva açoriana, identificamos as suas bagas, por essa altura, amareladas de verdes.Tentávamos ainda perceber a configuração caótica da plantação, quando o céu plúmbeo nos soltou um dilúvio em cima. Corremos para a beira-mar.
Logo, desviamos para um estabelecimento. Já encharcados, mas em boa-hora, refugiamo-nos no Café Nunes. Ao balcão, Sr. Nunes, o próprio, dá-nos as boas-vindas. “Mas podiam ter-se metido no carro e traziam-no aqui até à porta.”
Agradecemos-lhe a atenção, pedimos dois cafés e queijadas para acompanhar. “E que tal? É especial, não é?” Expressamos ao Sr. Nunes a nossa concordância.
Ele, retorque com preocupações justificadas com o futuro do seu negócio. “Eu tenho cada vez menos saúde para tratar da plantação e não posso pagar para a manterem. O mato, ali, volta a crescer nuns poucos dias. O meu filho é arquitecto, a minha filha trabalha no turismo. Sobra-lhes pouco tempo. Mesmo assim, o ano passado conseguimos colher uma boa tonelada de café, arábica e do melhor!”
A conversa dura bem mais que a chuva. Amornados pelo calor do acolhimento, despedimo-nos.
Em Busca do Topo de São Jorge
Retornamos à estrada principal no cimo da falésia. Da qual, descemos à fajã de São João, onde, por algum tempo, a esplanada da pitoresca taberna Águeda nos serve de pouso.
Logo, visamos o extremo sudeste de São Jorge, ponta que os seus ilhéus chamam de Topo, e povoação senhora de um Império do Espírito Santo amarelo-vermelho dos mais elegantes que encontrámos por terras dos Açores.
Tudo, por estes lados, é conotado com o apogeu. Desviamos para o farol da Ponta do Topo.
Chegados à finisterra jorgense abaixo, ficamos a admirar a fúria com que o Atlântico castigava a costa em redor e, ao largo, o excêntrico Ilhéu do Topo.
Revertemos no itinerário.
Cumpridos 40km opostos da EN2 de São Jorge, chegamos a terras de Urzelina.
Damos com o que sobra da velha igreja local, a sua torre sineira.
Do Evento Vulcânico Inesperado de Urzelina à Vastidão da Ponta dos Rosais
Em 1808, uma inesperada erupção do vulcão de Urzelina arrasou boa parte da povoação, mas não só. A sua lava fluiu encosta abaixo. Só se deteve após acrescentar um V lávico bem aberto ao sopé da ilha.
A erupção fez os moradores fugirem em pânico.
Na narrativa mais fidedigna do evento, o Padre João Ignácio da Silveira, conta que as freiras de Velas se refugiaram na igreja de Rosais. Seguimos-lhe os passos.
Cruzamos a floresta de cedros lúgubre e húmida de Sete Fontes.
Do lado oposto, encaramos a ponta de São Jorge oposta à do Topo e uma imensidão de retalhos agrícolas ainda fustigados pelo vendaval.
O farol abandonado de Rosais e a Vigia da Baleia que também olha pelas suas ruínas foi tanto quanto pudemos explorar do extremo ocidental intrigante de São Jorge.
Deixámos muitas das fajãs da ilha por desvendar.
E um pretexto incontornável para regressarmos.