Ter um voo estreante, no dia de Natal, com aterragem no aeroporto do Funchal é digno de registo.
O que dizer então, quando, a essa aterragem, se segue uma viagem de carro entre o Funchal e o Seixal, pela estrada antiga.
Passaram-se umas duas décadas. A memória perdura. Anfitriã e conhecedora do caminho, a Sofia Lima assume o volante.
Conduz-nos acima e abaixo das ravinas letais entre São Vicente e o Seixal, com uma confiança de condutora de rally que nos deixa algures entre o entusiasmo e o receio.
Entramos e saímos de túneis de superfícies pouco polidas que comprovam um árduo trabalho de picareta e afins, começado em 1950 e a que se popularizou tratar por “furados”.
Deles saídos, ficamos com o Atlântico ou pela frente ou do lado, com frequência, lá bem em baixo, onde as vagas castigam as falésias.
Em pleno Inverno, quedas d’água banham a via estreita e lavam o carro à força.
Grandes calhaus basálticos que se acumulam junto ao murinho que protege os veículos de mergulhos para o oceano, lembram-nos que não é só água que ali cai.
Sublinhavam o facto mais que óbvio que cada viagem para o Seixal era uma aventura. E o Seixal não tinha sequer começado.
Chegamos sobre a noite. Instalamo-nos na pousada que a Sofia nos tinha reservado.
Pouco depois, estamos a beber copos no “Arco-Íris” o bar incontornável da povoação, do Manelito e do Carlucho. E a travarmos conhecimento com os compinchas da anfitriã.
Seixal, As Oitavas, as Lapinhas e uma Farra Desenfreada
Dura o que dura. Na Madeira, as tradições, como a fé católica, são levadas a sério.
No calendário, 26 de Dezembro dita as Oitavas do Natal, de tal forma veneradas que as autoridades decretaram o dia feriado regional.
É costume andar-se de casa em casa, na versão religiosa, a apreciar-se as lapinhas (leia-se presépio) dos vizinhos.
Na prática profanada, o costume serve de pretexto para uma festança tão itinerante como arreigada.
Mais que exibir a lapinha da casa, cada família acolhe os visitantes com comes e bebes sobrados do Natal (mas não só) e caprichados. Nos bebes, em particular, contam-se whiskies e aguardentes velhos, vinho caseiro produzido com as uvas jaqué locais e tantos outros.
Oferecem-se ao forasteiro com uma amabilidade e firmeza que não parecem admitir recusa. À medida que o tempo passa, aceitá-las produz efeitos inesperados.
Quando começam as visitas, os amigos lisboetas mantêm-se juntos. Lá para meio, sem saber sequer como, o grupo desfaz-se por distintos lares do Seixal.
Recordo-me de visitar alguns já sozinho. Um deles, pertencia a um casal de emigrantes recém-regressado da África do Sul, orgulhosos por lhe darem a provar o vinho jaqué que os religava à terra. Ao Seixal e à Madeira.
Mais tarde, voltamos a juntar-nos no “Arco-Íris”. Ao balcão, em volta da mesa de matraquilhos e de mais Coral Tónica. Cada qual, com as suas estórias mirabolantes por contar.
Como viríamos a perceber, no Seixal, os Oitavos prolongavam-se, assim, semana fora. A descoberta dos cenários deslumbrantes da povoação e em redor compensavam os despertares tardios e algo ressacados no hotel “Brisa Mar”.
Uns dias depois, regressamos a Lisboa. Com as vidas ainda a fervilharem de tudo o que tínhamos vivido no Seixal. Com novas amizades, algumas de seixaleiros, então, a viverem no continente.
O Regresso Estival ao Seixal, Madeira
Chegamos às férias do Verão. Marques, um desses seixaleiros com quem mantinha contacto, convida-me a regressar. Oferece-me estadia na casa da família. Aceito o convite de bom grado.
Filipe, um dos irmãos de Marques, na altura e como tantos madeirenses, ainda emigrado em Caracas, Venezuela, faz caça submarina no mar ao largo, por norma, diante do cais e das piscinas naturais.
Dia após dia, assim nos assegura peixe fresco que a mãe de ambos cozinha para as refeições, acompanhadas de batatas-doces e semilhas cozidas, colhidas da horta da casa.
Em vez dos Oitavos e das Lapinhas natalícias, são os arraiais de Verão do Seixal e das povoações vizinhas que justificam a festa e inevitáveis desvarios.
Em pleno Estio, essa diversão tem uma deliciosa extensão balnear. Nas piscinas naturais do Seixal. Ao largo do Cais. Na Poça do Mata Sete, baptizada com a verdade da tragédia, por mais pungente que tenha sido.
E, a pouca distância, mas nos antípodas da seriedade, ainda na Praia da Laje, a que os moradores passaram a chamar de Jamaica devido ao visual tropical das palmeiras há uns anos lá plantadas.
Malgrado o bem-disposto imaginário caribenho, a sua beira-mar não tem nem vestígios de areia branca ou coralífera.
Cobrem-na os grandes seixos basálticos que as vagas continuam a polir e que inspiram o brasão de armas da aldeia, na base de um seixo (árvore) complementar.
Por altura dessa evasão balnear, não existia sequer a praia de areia negra contígua ao porto e que, hoje, atrai, todos os anos, milhares de visitantes à povoação.
Quando nela me banho com vista para a paisagem grandiosa do leste do Norte, confirmo-a a melhor praia da ilha da Madeira.
Assim a classificaria mesmo que me considerasse isento.
O Incrível Monumento Rodoviário da Estrada de Ouro
Voltamos a percorrer a estrada-velha e os seus túneis entre São Vicente e o Seixal. Examinamo-los com a atenção merecida.
Percebemos o trabalho, a engenharia prodigiosa e os custos que requereu, de tal monta que ficou conhecida como a Estrada de Ouro de Portugal.
Para chegarmos ao verdadeiro valor da obra, talvez seja melhor atentarmos aos atrasos de vida que solucionou. Durante muito tempo, o Porto Moniz só era alcançável pelo sul da ilha.
E, em períodos de intempérie, uma viagem entre o Funchal e o Seixal (hoje 40km, 50 minutos), fazia-se em modo de montanha-russa, acima e abaixo da crista da Encumeada. Podia demorar quatro horas.
Ou cinco. Ou as que fossem, de acordo com o que o destino reservasse.
Decorridas mais de duas décadas, no regresso à Madeira e ao Seixal, viajamos por vários dos túneis modernos e desafogados que ligam as localidades pelo interior da ilha.
Hoje, entre os antigos e os novos, mais de 150 túneis fazem da Madeira uma ilha-queijo-suíço.
Os de João Delgado e do Seixal, substituíram a arrojada ER-101, tornada atracção histórica e turística, ainda com o seu quê de aventureira.
Aventuras Desventuradas na Antiga ER101
Deixamos a estrada moderna. Metemo-nos na antiga, apostados em recuperarmos a sensação do que era percorrê-la. Instantes depois, arrependemo-nos.
O resquício da via parece-nos ainda mais apertado do que nos lembrávamos.
Encharcam-no distintas quedas d’água de que falhamos em compreender a origem.
Partes do asfalto gasto surgem salpicadas de lascas de basalto também caídas do cimo, dali imperceptível, das falésias.
Em vez de lúdica, a experiência revela-se temerária. Invertemos marcha o mais depressa e melhor que conseguimos, no aperto e na iminência do precipício, com o Atlântico, lá em baixo, a insinuar-se.
Ainda o desconhecíamos, mas o atrevimento vinha com um preço. Durante a tarde, percebemos que uma das lascas de basalto tinha gerado um furo lento num pneu. Quando passamos por São Vicente, perdemos tempo a consertá-lo.
Completada a manobra, voltamos à segurança da estrada nova.
Refugiamo-nos no miradouro para o Véu da Noiva, a cascata emblemática que se precipita para o mar de uma altura de 110 metros, diante do velho traçado da ER-101.
Uma Aldeia tão Inclinada como Fértil
Se a Madeira é íngreme e vertiginosa, o Seixal abusa.
O povoamento da costa Norte da ilha e da aldeia requereu forte determinação e engenho condizente. Boa parte das suas casas situam-se entre falésias e abismos.
As hortas e os cultivos, fazem-se sempre inclinados, como as vinhas locais, dispostas em terraços conquistados a zonas menos íngremes dos penhascos, protegidas do vento e das intempéries por barreiras de urze e de fetos frondosos.
Mesmo produzidas em redutos que qualquer forasteiro classificaria de inutilizáveis e em pouca quantidade, as uvas de casta sercial do Seixal são resistentes à gravidade, ao míldio e ao oídio. Há muito que enriquecem os bons Vinhos da Madeira, os mais secos.
As regas destas vinhas e dos restantes cultivos dependem do aproveitamento da água da ribeira que desce do cimo do Fanal mágico
E que divide o povoado quase ao meio, através das levadas e canais em que os madeirenses e os seixaleiros se tornaram peritos.
Da última vez que passámos pelo Seixal, fizemo-lo como parte de um trabalho bastante mais abrangente na ilha da Madeira, fora do Natal – Passagem de Ano, do período dos arraiais ou de qualquer outras festas.
Não ficámos lá a dormir e só conseguimos rever duas ou três das pessoas que lá conhecíamos.
Seixaleiros que Partem, Seixaleiros que Voltam
Desde 1950 que a remota Seixal perdia população, sobretudo devido à diáspora para a Venezuela, para a África do Sul, para a Austrália e tantos outros destinos. Neste tempo, a aldeia passou de 1360 habitantes para apenas 656, em 2011.
Apercebemo-nos, todavia, que o prestígio turístico da Madeira, desde há vários anos eleita “Melhor Destino Insular do Mundo”, o chamariz da praia de areia negra e os acessos facilitados pelos túneis lá levam, agora, muitos mais visitantes e dos quatro cantos do mundo.
Em simultâneo, a realidade atroz em que se tem mantido a Venezuela e a violência na África do Sul, têm feito regressar muitos emigrantes madeirenses.
Mesmo já sem falarem português, alguns, abrem pequenos negócios com que procuram refazer as vidas. Mesmo que lhes faltem os grandes lucros de outras paragens.
Mesmo que só tenham vista para o Norte e para o Atlântico imenso.
Recebe-os, como nos acolheu, o abraço subtropical e edénico do Seixal.