Ambicioso como era, o fundador da cidade de Singapura, Stamford Raffles, não podia imaginar a visão que tem da sua ex-colónia quem, como nós, chega por mar.
A ilha indonésia de Batam tinha ficado quarenta minutos para trás.
À medida que o ferry serpenteia por entre a vasta frota de petroleiros e cargueiros que percorre o estreito de Singapura, tornava-se mais nítida a silhueta novaiorquina, formada pela linha de arranha-céus do CDB (Central Business District) de Singapura.
Para quem vem de mês e meio no maior país muçulmano do mundo, terminado no interior de Sumatra, aquele horizonte cinzento deixava antever uma espécie de retorno a um mundo não igual, mas do tipo do que conhecemos.
O ferry contorna a ilha de Sentosa. Atraca na doca de Harbour Front. Assim que desembarcamos, deparamo-nos com a sofisticação tecnológica com que se processa o controle fronteiriço. Não restam dúvidas: estamos de volta à modernidade. Vemos caixas de multibanco reluzentes, passadeiras rolantes e balcões de apoio ao turista, repletos de informação.
Sobressaem anúncios a produtos familiares e reconhecemos as empresas multinacionais, dos mais óbvios aos menos populares. Regressamos à esfera capitalista. O MRT – Mass Rapid Transit – de Singapura parte dali com ligações aos recantos mais longínquos da ilha.
É proibido comer, fumar e transportar os malcheirosos duriões no metro. Deixa de haver lugar para o desleixo, tomado pelas proibições.
Singapura ocupa uma área de 6823 km² e é atravessada por um rio homónimo. Os arranha-céus que vislumbrámos do ferry ficam a sul da foz, contíguos à Marina Bay. Estas duas zonas formam a parte mais imponente da cidade.
Nós, instalamo-nos à pressa na proximidade do bairro de Little India, já bem longe da zona marginal da nação. Nessa mesma tarde, inauguramos a descoberta da ilha.
A Esterilidade Funcional de Singapura
Continuamos a acompanhar o rio Singapura. Seguimos a movimentação dos seus sampans, os barcos típicos de casco com listas garridas e providos de olhos.
Quando não atracados no Clifford Pier, os sampans cruzam o rio rumo à marginal das esplanadas, situada logo ao lado do CBD, por forma, a facilitar a vida dos executivos. Assim que deixam os escritórios, estes, instalam-se em grupos barulhentos, bebem uns copos e depois entregam-se a jantares faustosos.
Em Singapura, até a vida de rua é programada.
Desta zona de refeições, rio acima, até aos Clarke, Boat e Robertson Quays, onde se concentra a vida nocturna, é só um pulo, ou uma estação de MRT.
Tudo continua organizado e controlado. De tal forma assim é, em Singapura que, para não perturbar em demasia a harmonia da ilha, até há quatro décadas atrás, a vida nocturna era limitada ao mínimo possível. Os poucos estabelecimentos permitidos eram obrigado a fechar tão cedo que mal tinham tempo para lucrar.
Poucos eram os jovens executivos que se queriam mudar para um país sem vida nocturna. Entretanto, também por razões económicas, o panorama alterou-se de forma radical.
Hoje, bares e as discotecas como o The Clinic, o The Cannery ou o Ministry of Sound ostentam imagens de marca fortes e decorações temáticas hiper-criativas. Os clientes, esses, afluem dos quatro cantos do mundo. Transpiram estilo e sofisticação e pagam o que for necessário pela entrada nos clubes da moda.
Para que a chuva frequente não perturbe este festival de glamour, as ruas do Clarke Quay foram dotadas de coberturas de vidro. Até quando os seus filhos e enteados se preparam para entrar num bar com striptease o Nanny State singapurense está presente, a evitar que se constipem.
Como pudemos constatar, alguns dos filhos de Singapura não estão preparados para tanto mimo. Um dos comentários frequentes dos singapurenses mais exigentes, acerca do seu próprio país é: “Isto aqui é tão estéril”.
O Isolamento Civilizacional e Religioso da Ilha do Sucesso
Só são precisos alguns dias para compreendermos a que se referem. Percebemos também que a segunda queixa mais comum se prende com o isolamento. Em termos civilizacionais, a maior parte dos singapurenses – excepção feita para a etnia malaia – e dos ocidentais ali expatriados sentem-se cercados pelo vasto mundo muçulmano em redor.
Mas a questão também não acaba aí. Situada logo acima do equador, Singapura parece viver dentro de uma panela de pressão. O calor e a humidade são opressivos. Quando não há sol, nuvens densas e altas, vindas da Indonésia com o vento de monção, pairam sobre o país, ameaçadoras.
A qualquer momento, descarregam em bátegas diluvianas acompanhadas de trovoadas fulminantes. Se as nuvens abrem um pouco, a luz solar incide tão forte que branqueia um panorama já de si, demasiado dominado pelo aço e pelo o cimento.
Não é que faltem jardins e outros espaços verdes mas, como se queixava um motorista de táxi, demasiados edifícios históricos deram lugar a construções modernas sem alma. “Parece que a ilha está tão preocupada em facturar para triunfar – o espírito singapurense kiasu criticado pelos vizinhos malaios e indonésios – que não se apercebe do seu aspecto pré-fabricado.”
O Exotismo Étnico da Little India
Quando passamos sobre a Elgin Bridge, uma holandesa percebe que também somos estrangeiros e aborda-nos. Pergunta-nos o que estamos a achar. Hesitamos na resposta.
Ela aproveita para acrescentar: “Estou cá há dois dias e até agora só vi lojas e galerias comerciais… não me aconselham nada mais genuíno?“ Enviamo-la para a Little India, no Domingo que se aproxima. Alertamo-la, claro está, para se preparar para mudar de país.
Perante o desapontamento da interlocutora, estava fora de questão aconselharmos o Kampong Glam, o distrito malaio dominado pela Mesquita do Sultão e pelas boutiques caras.
Muito menos a Chinatown, em que vagueiam milhares de visitantes ávidos por gastar e onde, sob a arquitectura típica dos edifícios coloniais coloridos, se escondem mais lojas orientadas para o turista.
Quando visitamos o distrito chinês, balançam candeeiros de papel vermelhos. Assinalam o aproximar de nova época de celebrações chinesas, a culminar com a inauguração de um novo templo budista, o Tooth Relic Temple.
Investigamos a obra. Reparamos que parte considerável dos trabalhadores são indianos. Como, se não bastasse, alguns metros à frente, mas em pleno coração da Chinatown, achamos o templo dravidiano Sri Mariamman, com o seu gopuram (torre repleta de divindades) sobre a portada.
Atraem-nos trajes garridos e cânticos exóticos. Entramos para observar a cerimónia que se revela fascinante e hipnótica. De um momento para o outro, a estéril e aborrecida Singapura de que se queixavam até os singapurenses surpreende-nos.
A noite já se apodera do Sudeste Asiático quando chegamos à majestosa Marina Bay. Os imigrantes trazem as famílias de visita. Partilham com eles a magia do lusco-fusco quando as luzes das ruas e dos escritórios nas alturas se acendem e, a pouco e pouco, e pintam o cenário – durante o dia deslavado – de todas as cores.
O ponto de observação eleito, sempre repleto de moradores e de estrangeiros equipados com máquinas de fotografar e filmar, é o Merlion Park, um cais com plataforma panorâmica sobre a água.
Dele se destaca a estátua enorme do estranho meio-peixe, meio-leão designado, em 1960, como mascote de Singapura.
Aceitam-se estrangeiros em Singapura. Excelente ambiente de Trabalho
A sobrevivência e posterior riqueza asseguradas por Singapura contra todas as probabilidades, após a expulsão da Federação da Malásia, deveu-se aos programas de industrialização e urbanização levado a cabo pelo pai da nação Lee Kuan Yew.
Por volta dos anos 90, a cidade tinha o maior rácio de posse de casas do mundo. Apesar da ausência total de matérias-primas, o fabrico e exportação de produtos de alta-tecnologia assegurou a Singapura o bem-estar da sua população e um papel de destaque na esfera económica mundial.
Esta bonança foi seriamente ameaçada pela ascensão súbita de países concorrentes com custos de produção muito mais baixos, dos quais a China se tornou o caso óbvio.
De 33% dos seus 2.5 milhões de trabalhadores há vinte anos atrás, a força produtora industrial encolheu para apenas 20%. Como consequência directa, os singapurenses perderam poder de compra. Confrontados com a crise, os habitantes mais novos passaram a procurar emprego no estrangeiro.
Os que ficam têm cada vez menos filhos.
O Objectivo Ambicioso e o Sucesso da Revolução Populacional
Os números são claros: Singapura debate-se com um grave problema de estagnação. Trabalha na solução faz já algum tempo. Literalmente. Desde 2008, 2009 que as gruas e escavadoras não param de renovar a nação.
O objectivo herculiano então estabelecido foi passar rapidamente de 4.4 para 6 milhões de habitantes, com recurso ao recrutamento de empresas e trabalhadores qualificados de outros países.
O governo chegou à conclusão de que a fama de entreposto comercial próspero mas, aborrecido, era, de certa forma, merecida.
Resolveu contra-atacar e transformou a ilha de Sentosa – situada apenas a 500 metros da costa sul de Singapura – num mega-parque de diversões ligado a Harbour Front por uma linha de MRT.
Singapura importou centenas de toneladas de areia para criar praias artificiais. Protegeram-se as novas praias do tráfego marítimo infernal do estreito de Singapura e da vista desagradável das suas refinarias. Para tal, foram erguidos enormes muros de pedra de que brotam coqueiros e palmeiras.
Além das praias, várias outras atracções surgiram do nada: museus, um Water World com SPA, uma torre e teleférico panorâmicos, cinemas, espectáculos multimédia, campos de golf e pistas de bicicleta, para mencionar apenas uma ínfima parte.
A juntar ao pacote, Singapura construiu condomínios de habitação VIP que os promotores fazem de tudo, (mas mesmo tudo) para vender, incluindo promovê-los em enormes outdoors com imagens dos areais de Sentosa tão pós-produzidas e falsas que mais parecem as Caraíbas.
E uma Revolução Urbanística a Condizer
Mas a batalha contra a estagnação não se ficou por aqui. Obrigou a concessões inesperadas por parte dos senhores das leis. Até 2002, os clubes nocturnos eram proibidos, em Singapura. O jogo mantinha-se tema tabu. De um momento para o outro, tudo mudou.
Na orla leste da Marina Bay, surgiram novos edifícios que a urbanizaram por completo: as torres triplas do complexo Marina Bay Sands, um casino-resort gigantesco construído com arquitectura revolucionária pelo operador Las Vegas Sands.
Quando completo, em 2009, o Marina Bay disponibilizou mais de 2500 quartos de hotel, um centro comercial atravessado por canais, uma pista de patinagem no gelo, dois teatros cada um com 2000 lugares, destinados a espectáculos da Broadway e um museu.
A partir da última torre deste empreendimento para oeste e até à proximidade do CDB surgiram mais arranha-céus destinados a albergar as empresas que empregaram os esperados imigrantes.
Após sacrificar alguns dos seus antigos princípios em nome da sobrevivência da nação, Lee Kuan Yew, transformou-se num dos vendedores mais activos do projecto.
A sua metamorfose foi tal que, no seu discurso anual do Ano Novo Chinês, depois de menções a acordos de comércio livre e fortalecimento de laços políticos na região, passou para referências repetidas a jantares ao ar livre, bandas de jazz, vela, windsurf e pesca.
Tentou assim impingir a qualidade de vida superior com que pensava atrair os trabalhadores especializados estrangeiros. Como resumiu: “Singapura será uma versão tropical de Nova Iorque, Paris e Londres numa só”.
Perante expectativas tão elevadas, há que pensar positivo. Se o plano de Kuan Yew falhar, Singapura será sempre uma cidade-país invulgar, com uma fascinante população multiétnica e uma das gastronomias mais variadas do mundo.
Da Vingança de Raffles ao Paternalismo e ao Sucesso de Lee Kuan Yew
Após Napoleão ter invadido a Holanda, em 1795, os Britânicos procuraram a todo o custo evitar uma expansão da França nos territórios do Sudeste Asiático. Ocuparam Malaca e Java.
Com a derrota dos franceses na Europa, decidiram-se pela devolução desses territórios aos holandeses. A medida permitiu evitar um provável conflito e consolidar a cada vez mais rentável presença britânica na Península Malaia.
Não evitou, no entanto, o enorme ressentimento do Tenente-Governante de Java, Stamford Raffles, que viu todo o seu trabalho ser entregue a uma potência concorrente quando sentia que a Grã-Bretanha, a nação mais poderosa da Europa, devia estender a sua influência no Sudeste Asiático.
Humilhado mas não vencido, Raffles persuadiu a East India Company que o estabelecimento de uma colónia na ponta da península malaia era fulcral para lucrar com a rota marítima entre a China e a Índia.
Em 1819, Raffles desembarcou em Singapura, então, parte do sultanato de Johor.
Imiscui-se em conflitos de sucessão e linhagem dos governantes da ilha. Depressa conquistou a protecção de uma das partes e o direito a construir um entreposto comercial. Cinco anos depois, Raffles assinou um segundo tratado que entregava Singapura à Grã-Bretanha em troca de dinheiro. E pensões vitalícias a serem paga ao sultão que apoiara e a um chefe local.
Em apenas cinco anos, o seu novo território surgiu no mapa. O próximo plano de Raffles foi fazer dele um bastião económico do Império Britânico. Para isso, estabeleceu que não seriam cobradas taxas pelas transacções comerciais.
Por essa altura, habitavam Singapura cerca de 150 pescadores malaios e agricultores chineses.
Com a perspectiva da “adopção” britânica e da riqueza anunciada pelo projecto, acorreram à ilha milhares de outros chineses e malaios. Alguns dos primeiros desposaram mulheres malaias. Formaram o povo e a cultura Perakanan (meia-casta) .
Em 1821, a população de Singapura (do malaio Singa=leão + Pura=cidade) contava já 10.000 habitantes. Tal como planeado, o porto atraía cada vez mais comércio e a colónia evoluía a olhos vistos, entretanto com o contributo de milhares de indianos recrutados por Raffles que os considerava mais aptos para a construção de edifícios e dos caminhos de ferro.
Foram erguidas ruas amplas com lojas e passadiços cobertos, docas, igrejas e até um jardim botânico. Toda a obra tinha como fim fazer de Singapura uma colónia imponente e importante do império.
Curiosamente, em termos sociais, a estratégia de Raffles passava por dividir e administrar a população de acordo com a sua origem étnica. À imagem da realidade actual, já nessa altura, boa parte dos europeus, indianos, chineses e malaios viviam nos seus bairros respectivos.
Mais recentemente, passado o susto da invasão japonesa da 2ª Guerra Mundial e a separação forçada pela expulsão da Federação da Malásia (a quem os britânicos haviam já concedido a independência), causada pela recusa da ilha em conceder privilégios institucionais aos malaios residentes, em 1965, Singapura seguiu o seu próprio caminho.
Com a saída dos britânicos da cena política, a gestão do território ficou entregue aos chineses do People Action Party (PAP). Estes, ao longo das vigências paternalísticas de Lee Kuan Yew, um advogado educado em Cambridge que governou mais de 30 anos e de Goh Chok Tong, no poder de 1990 até muito recentemente, elevaram Singapura do terceiro mundo ao primeiro.
Utrapassaram problemas tão graves como a crise cambial asiática de 1997. E conseguiram recuperar o passado de prosperidade herdado dos britânicos.
Com o avançar dos anos, a estrutura étnica da população de Singapura definiu-se. Hoje, dos seus 3.3 milhões de habitantes fixos, 77% são chineses; 14% malaios e 8% indianos.
Vivem, ainda, permanentemente na ilha, 1.1 milhões de estrangeiros que trabalham nas muitas multinacionais com sedes e sucursais no país.