Viria a provar-se o último dos dias com meteorologia misericordiosa, ainda que algo ventosa.
É sob um céu meio azul, meio azul-esbranquiçado que o ferry zarpa do mercado de Kauppatori para Suomenlinna, a grande fortaleza da Finlândia.
À medida que nos afastamos da frente de edifícios históricos, a distância revela as cúpulas da catedral de Helsínquia, cada vez mais destacadas sobre a linha de fachadas pastel que admiramos numa suave diagonal.
A embarcação ruma à saída daquele recorte geométrico e apertado do estuário que banha a capital.
Na sua rota, rasa uma alpondra de ilhotas que, de Valkosaari a Pormestarinluodot atrapalha a navegação.
Ao fim de algum tempo, com a doca que tínhamos partido já transformada num vislumbre, começam a definir-se os caprichos da ilha-destino e, não tarda, as paredes cor-de-salmão de uma sua ala apalacetada, hoje transformada na cervejaria local.
À Conquista da Resistente Suomenlinna
Desembarcamos num dos dois ancoradouros que a servem e atravessamos esse mesmo velho edifício pelo túnel abaixo do seu torreão-farol. Do lado de lá, uma luminosidade resplandecente revela-nos o domínio de Suomenlinna, ainda frígido e ressequido pelo Inverno árctico que resistia.
Como noutras partes da Finlândia, depressa nos chama a atenção a proliferação de nomenclaturas sinalizadas, a começar pela do próprio lugar.
A fortaleza começou a ser construída em 1748, numa altura em que o território finlandês integrava o Reino da Suécia.
Deste mesmo contexto histórico, da posterior cisão, resultou que parte da população finlandesa actual – principalmente na costa oeste – tenha origem sueca e use, como primeira língua, o sueco, de uma origem completamente distinta do finlandês.
Suomenlinna, Sveaborg, Viapori. O Trio de Nomes de Guerra
Os suecos chamaram desde sempre ao forte que nos recebia Sveaborg (Castelo da Suécia).
Já os finlandeses, até 1918, trataram-na por Viapori. A partir de então, em jeito rectificativo, adoptaram Suomenlinna (Castelo da Finlândia).
Por respeito à comunidade sueca da Finlândia, os dois termos continuam a coexistir.
Suomenlinna assenta em seis ilhas, também elas com nomes concorrentes de ambos os dialectos.
Tínhamos desembarcado em Iso Mustasaari, a segunda maior e onde se concentravam os mais imponentes edifícios do arquipélago:
uma igreja originalmente ortodoxa construída em 1854, a biblioteca, um Museu da Guerra e um Dos Brinquedos, entre outros, e até a prisão local. Suomenlinna acolheu uma colónia penal de mínima-segurança em que os condenados empregam esforços na manutenção e reconstrução de infraestruturas.
Mas as ilhas têm bem mais que apenas esses habitantes levemente condenados. Para lá da fortaleza-museu, vive a sua própria vida. Os moradores permanentes e livres são em redor de novecentos.
Destes, trezentos e cinquenta trabalham o ano inteiro nas mais distintas funções.
Um Baluarte da Cultura Finlandesa
Suomenlinna tornou-se um polo cultural complementar de Helsínquia. Recebeu o Nordic Arts Centre. Converteu várias edificações em estúdios de arte que são alugados a baixo preço a artistas interessados.
À sua moda pragmática e despachada, as autoridades finlandesas prestam-lhe tanta atenção que mantêm ligações regulares de ferries, abastecimento termal, hídrico e eléctrico.
Em 2015, os correios finlandeses lá testaram inclusive a distribuição de correio com recurso a drones.
O que encontramos um pouco por todo o lado são, no entanto, relíquias umas mais vetustas que outras da sua longa história.
Confrontamo-nos com a sepultura de Augustin Ehrenvärd, o jovem tenente sueco que conduziu a edificação perseverante e complexa da fortaleza.
Coroa a sua lápide um elmo gótico com uma protecção facial que se estende em bico até abaixo do queixo, de tal forma mística que nos intimida. Entramos e saímos de mais pequenos túneis que os raios solares quase oblíquos invadem sem clemência.
Cruzamos o canal que separa Iso Mustasaari para Susisaari pela ponte que os une. Percorremos a marginal sombria desta última ilha e damos de cara com a linha de costa contrária banhada por um braço de mar quase congelado e por uma luz vespertina suave.
Atravessamos Susisaari para a frente do Golfo da Finlândia. Ali, as rajadas boreais, até então espaçadas, transformam-se numa ventania permanente.
Encontramos velhos paióis disfarçados de casas rurais de outra era, com telhados em A de alto a baixo, cobertos de terra e de vegetação, envoltos de secções nevadas ainda longe de derreter.
O vento furibundo castiga grandes canhões distribuídos e dissimulados no litoral cimeiro, todos eles apontados ao Golfo da Finlândia e às ameaças que sempre de lá resultaram.
Suomenlinna, na frente da História: a Finlandesa, a Sueca, a Russa.
Nesta zona de espaços vastos, grandes influências e ambições a condizer, os finlandeses habituaram-se a temer o Reino da Suécia de um lado, e o bem mais avantajado Império Russo do outro. A invasão teutónica da 2ª Guerra Mundial chegou como um extra.
Um extra inesperado que custou à Finlândia três secções importantes do país – parte da Carélia e da cidade de Kuusamo, Salla e Petsamo, o anterior “braço direito da nação” – apreendidas pela U.R.S.S. como trofeu por a Finlândia se ter alinhado com o Eixo entre 1941 e 1944.
Suomenlinna surgiu dois séculos antes enquanto Sveaborg (Castelo da Suécia).
Por essa altura, a Suécia detinha o território dos vizinhos suómi e os anseios expansionistas russos preocupavam os seus governantes.
A fortificação em forma de estrela adaptada aos trejeitos das seis ilhas e as baterias por que passávamos em modo investigativo foram instaladas também de acordo com a conveniência da Frota do Arquipélago, lá ancorada para proteger o limiar sudeste do Reino Sueco,
Em óbvio contraponto à base naval russa de Kronstadt, situada junto a São Petersburgo, nas profundezas orientais do Golfo da Finlândia.
Em termos estratégicos, Sveaborg servia para evitar que as forças armadas dos czares adquirissem uma posição-base nas praias de onde bombardeamentos de artilharia persistentes viabilizariam a tomada de Helsínquia.
Em 1755, mais de sete mil soldados suecos estacionados na Finlândia participavam na obra. Dois anos depois, o envolvimento sueco na intrincada Guerra dos Sete anos, contra a Grã-Bretanha, a Prússia e Portugal (para variar do lado dos Russos) suspendeu-a. A aliança depressa se confirmou tão cínica quanto curta.
Malgrado a derrota na Guerra dos Sete anos, volvido apenas um quartel de século, os Russos aproveitaram uma provocação autocrata e incauta do rei da Suécia para passarem ao ataque.
Contra a vontade popular e da oposição, Gustavo III projectou a destruição da frota russa do Báltico e a tomada de São Petersburgo.
Mas os planos do monarca naufragaram.
Os russos evitaram o desembarque dos suecos e forçaram a sua retirada para Sveaborg onde se viram frustrados por as autoridades militares se terem esquecido de precaver o rearmamento e reparação de uma força náutica bem maior que a Frota do Arquipélago.
Avisado deste percalço, um tal de almirante Grieg apressou-se a recuperar a frota russa. Apenas dezanove dias depois, apontou a Sveaborg. Fez debandar um esquadrão sueco “espião” e estabeleceu um bloqueio naval que cortou a ligação do sul finlandês com a Suécia.
Não seria ainda dessa que os Russos tomariam a nação rival, mas, em 1808, o czar Alexander I aliou-se a Napoleão e a Rússia deu a machadada final. Na ressaca da Guerra da Finlândia, o terço oriental da Suécia foi transformado no Ducado da Finlândia, por fim, sob alçada do Império Russo.
De volta a Iso Mustasaari com passagem pelo submarino Veliko
Contra o vendaval furibundo, mas numa paz sagrada, continuávamos a progredir para os confins meridionais de Susisaari e de Suomenlinna. Na maior parte do tempo deambulávamos sós, entregues ao frio e aos cenários enigmáticos.
Assim continuamos até que numa ladeira de terra batida, nos cruzamos com duas almas só ligeiramente menos tresmalhadas que as nossas. Ninja (leia-se, Nina) e Severi Lampela, mãe e filho, ambos de apelido Pasanen, descem. Nós, subimos.
A visão de outros humanos naquela solitude fortificada, estimula-nos a comunicar. Saudamo-los. Metemos conversa. As duas almas depressa se provam finlandesas a rigor. Sem fundamento ou objectivo pragmático, a abordagem não lhes faz sentido e os seus olhares embaraçados deixam-no perceber.
Ainda forçamos umas fotos como era, apesar de tudo, a missão com que ali andávamos. Abreviamos a interacção e regressamos ao conforto emparelhado original.
Na volta para norte, esbarramos com o estaleiro e docas do complexo, atafulhadas de embarcações, umas funcionais, outras nem por isso. Regressamos ao canal e à margem escura e frígida de Susisaari.
E lá nos alongamos até encontrarmos outra obra de arte náutico-militar digna de atenção, Vesikko, o derradeiro submarino finlandês.
Durante a 2ª Guerra Mundial (Guerra de Inverno e Guerra de Continuação), os finlandeses usaram-no em sucessivas patrulhas no Golfo da Finlândia a partir de Suomenlinna, mas, tal como o desfecho do conflito confiscou os três territórios já enunciados, o Tratado de Paris de 1947, proibiu que a Finlândia voltasse a deter submarinos.
O Vesikko foi o único a escapar à destruição forçada e generalizada da frota. Só pode ser visitado durante o Verão. A razão porque nos limitamos a apreciá-lo de fora, estranhamente encavalitado com a popa a roçar a margem enlameada. Com a proa suspensa acima do nível tanto do solo como do mar.
A curta tarde invernosa, ao invés, precipitava-se para trás do horizonte com o vento seco e gélido já a ferir-nos as faces. Apontamos de volta a Iso Mustasaari.
Refugiamo-nos no Museu da Guerra. Lá nos inteiramos dos episódios que levaram à plena autodeterminação finlandesa que, a partir de 1917, aproveitando o caos político da Revolução Russa, o povo suómi conseguiu fazer valer aos ex-soberanos.
Em tempos sueca, inevitavelmente, mas de forma efémera, russa, a história amuralhada de Sveborg, Viapori e Suomenlinna convergiu para a nacionalidade que estava fadada à fortaleza.
O ferry volta a atracar à hora, não esperávamos sequer outra coisa. Reembarcamos com a noitinha a render-se ao breu. Vinte minutos contemplativos depois, estávamos de regresso à capital da pouco mais que secular Finlândia independente.
A TAP voa para Helsínquia 6 vezes por semana, com preços de ida-e-volta, com todas as taxas incluídas, desde 353€. A rota é operada com aviões da família A320.