O Inverno asiático estendeu-se ao máximo do seu limite geográfico e apesar de estarem quase 40º em Ho Chi-Minh – a 1600 km para sul de Hanói, um pouco menos em Hué – faz um frio pouco comum na capital vietnamita.
Acabados de chegar, somos apanhados de surpresa e movemo-nos o mais rápido que conseguimos pelas ruas à procura de uma loja que nos venda agasalhos algo mais modernos que o visual pós-comunista ainda na moda por estes lados.
Malgrado o nevoeiro gélido, o dia desenrola-se como é habitual no jardim do lago Hoam Kiem (Lago da Espada Restaurada).
Grupos de idosos entregam-se a partidas intermináveis de jogos tradicionais asiáticos como o XiangQi e o Mahjong. Ou exercitam o corpo a jogar badminton ou a praticar tai-chi.
Enquanto isso, vendedores correm atrás dos visitantes do templo Ngoc Son e da ponte The Huc que lhe dá acesso. Impingem-lhes postais, guias Lonely Planet fotocopiados e pequenas peças de artesanato, por norma, fabricadas por familiares.
O Primeiro Confronto a Sério com o Caos do Trânsito de Hanói
Atravessar o jardim e o lago não nos apresenta dificuldades maiores. Já não podíamos dizer o mesmo da rua Dinh Tien Hoang, logo ao lado, e dos cruzamentos em que esta desemboca.
Motorizadas sem fim passam a toda a velocidade. Evitam com mestria as que surgem de outras ruas e no sentido oposto. Ciclistas fazem o mesmo, mais devagar.
Como as motas e as scooters, contornam os carros, o camião ocasional e os autocarros velhos que abrem caminho à força e contaminam a atmosfera urbana com descargas imensas de fumo negro.
À parte destes veículos, as ruas de Hanói guardam ainda lugar para a eventual carroça sobrecarregada e puxada por cavalos ou por búfalos.
E para os pedestres destemidos ou inconscientes que as cruzam sem pararem, confiantes de que todos os restantes os irão evitar.
Em Roma sê romano. No Vietname, vietnamita.
Cansamo-nos de esperar por uma aberta que teima em não aparecer. Fazemos fé na fé destes transeuntes. atiramo-nos à estrada. Tal qual Moisés mochileiros, separamos o trânsito para chegar ao outro lado.
A coisa corre-nos bem. Mas mal a uma mulher que tentava a sua sorte a apenas alguns metros.
Duas motorizadas e uma bicicleta hesitaram acerca da direcção para que se deviam desviar. No meio da atrapalhação, uma das motas derrubou-a e fê-la bater com a cabeça no chão.
Só acidentes como estes obrigam os oficiais de trânsito a abandonar a sua inutilidade. Um deles, identificado pelo uniforme verde escuro antiquado, deixa o seu pequeno púlpito protegido.
Aparece para levantar e recompor a senhora que aparenta estar apenas levemente ferida. Solucionada a ocorrência, o polícia regressa ao seu poiso.
Avenida Hang Dao Abaixo, Por uma Profusão de Funerárias
Conquistamos o desejado acesso à longa avenida Hang Dao. Percorremo-la pressionados pela temperatura desagradável, de olho em todas as lojas e negócios que aparecem.
Em Hanói, como acontece na vizinha China, o comércio surge organizado de uma forma compartimentada. Acertamos em cheio no sector dos enterros e funerais. Passamos primeiro por dezenas de floristas concorrentes com bancas repletas de coroas garridas que os empregados refrescam.
Segue-se uma zona de fabricantes de lápides que nos retém a atenção e o passo.
Dentro de uma destas oficinas, um artesão inscreve mensagens encomendadas na lousa. Vêmo-lo cercado de placas douradas de homenagem a defuntos vietnamitas, eternizados em fotografias a cores e a preto e branco.
Entre outros, encontramos Lê Van Luc que faleceu em 2001 com 72 anos. Nguyen Thi Hat que morreu em 1954.
E, para nossa surpresa, Anna Duong Tu Huong, uma católica com óbito declarado em 12.3.1982, que é abençoada por várias ilustrações sacras da Nossa Senhora mas que, à falta de imagem mais credível, surge com a face temporária de Britney Spears.
Também não é o espanto que nos demove. Alguns quarteirões abaixo, damos por fim com uma área com lojas de roupa desportiva. Compramos Polartecs de qualidade razoável .
De Volta ao Caos do Âmago de Hanói
O conforto recém-adquirido e o mapa da cidade com que andamos munidos inspiram-nos a regressarmos ao centro por um caminho diferente.
Essa alternativa prenda-nos com a visão excêntrica de uma rua ocupada por barbeiros, todos eles instalados contra um muro, sob a protecção de pequenas lonas amovíveis.
Apesar de estarmos na estação mais fria do norte do Vietname, a julgar pela quantidade de cabelo acumulado no solo, o negócio vai de vento em popa. Reclama máxima dedicação de cada artista.
De novo nas imediações do lago Hoam Kiem, o ruído do trânsito reforça-se. Um motoqueiro solitário destaca-se do lado oposto do jardim.
Durante a Guerra do Vietname, toda a era Comunista e, até há algum tempo, qualquer motorizada realizava os sonhos mais descabidos dos vietnamitas. Após a fusão do norte com o sul e da abertura do país às virtudes capitalistas – que, em parte, seguiu os moldes chineses – o poder financeiro vietnamita aumentou sobremaneira.
Como aumentaram as ambições dos vietnamitas que se atreveram a querer mais e mais. Sobre um assento largo de couro, apoiado no guiador cromado, elevado e com franjas de pele penduradas, um jovem de Hanói parece ter acabado de realizar um dos seus sonhos.
Exibe uma nova Harley Davidson à cidade, indiferente às motoretas e scooters banais que por ali passam.
O Trânsito Caótico de Hanói, Visto das Alturas
Pensamos em regressar à guest-house que nos hospeda mas, reparamos num bar instalado num terraço ao ar livre no topo de um prédio.
Tínhamos já enfrentado e vencido o caos harmonioso do trânsito de Hanói. Tínhamos também presenciado um dos seus incidentes. Estava na altura de o admirarmos e celebrarmos.
Sem pressas, sem frio ou outro tipo de limitações, subimos às alturas comunistas do edifício. Instalamo-nos numa mesa com vista para as avenidas em frente.
Saboreamos a cerveja “Hanói” e ficamos a apreciar as motas, as bicicletas, os carros e os peões a fluirem no famoso caos ordenado da cidade.