Na ressaca da crise financeira de 2008-2012, o mundo e sobretudo os seus inquilinos com sensibilidade política mais esquerdista voltaram a louvar a Ilha do Fogo e do Gelo.
Desta feita, o motivo não foram os cenários rudes, montanhosos, frígidos e vulcânicos.
Tão badalada apologia deveu-se à forma como o governo islandês lidou com a falência dos seus bancos Glitnir, Kaupthing e Landsbanki que, entre outras diabruras comerciais, ofereceram depósitos com taxas de juro superiores a 8% que atraíram não só clientes islandeses como holandeses, britânicos e de outras nacionalidades.
Os seus activos chegaram a totalizar onze vezes o PIB da nação. Mas estes mesmos bancos também fizeram a dívida externa do país aumentar até sete vezes o PIB da Islândia de 2007. Causaram a sua própria ruptura e a falência do sistema financeiro nacional.
Quando o mesmo aconteceu com diversas outras instituições financeiras norte-americanas, europeias e globais, até então com estruturas que se pensavam inabaláveis (Citigroup, JP Morgan Chase e Lehman Brothers) nos E.U.A. e países europeus, os governos desresponsabilizaram os gestores de topo.
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Estátua de Magnús Tomásson no centro de Reiquejavique.
Privilegiaram operações de salvamento com base em taxações dos contribuintes. Na Islândia, ao invés, a pressão do povo e a sua relativa intimidade com o governo forçou-o a deixar os bancos falir e a restituir o que pôde aos depositantes islandeses.
O parlamento islandês decretou ainda uma investigação criminal. O ministro das finanças e diversos presidentes, directores e gestores de bancos, homens de negócios e advogados foram condenados a penas até de prisão efectiva. O primeiro-ministro no poder durante esta crise admitiu a sua responsabilidade e demitiu-se.
Pouco depois, o povo islandês elegeu um novo governo que, mesmo com as suas máculas, não demorou a retirar a nação do atoleiro em que mergulhara.
Em Busca do Primeiro Parlamento do Mundo, o Althing
A verdadeira génese da democracia centra-se na Grécia Antiga mas, mesmo se mais recente, a tradição de consciência e intervenção popular pela justiça nos destinos da Islândia é milenar e de igual forma pioneira.
Teve o seu início oficial em 930 d.C., com a sessão inaugural do que é considerado o primeiro parlamento do mundo, o Althing.
Depois de darmos a volta à ilha com partida e regresso à capital Reiquejavique, desviámos da Ring Road para a rota Golden Circle e apontámos para o Parque Nacional de Thingvellir.
Após quase uma hora de condução, vimo-nos nas profundezas de um vale amplo ladeado por cordilheiras de altitudes comedidas para o que já tínhamos visto, ainda assim, com os cimos cobertos de neve.
A vastidão plana por que seguíamos estava salpicada de lagos e lagoas interligados por falhas geológicas preenchidas por canais ou riachos.
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O rio Oxará desliza entre a casa de férias actual do primeiro-ministro islandês e a encosta em que se instalou o Althing, considerado o primeiro parlamento do mundo.
Uma cobertura considerável de nuvens sobrevoava-nos a grande velocidade e, a espaços, deixava os raios solares do quase ocaso afagarem o cenário acastanhado pelo frio.
À hora que deixámos o carro para caminhar já não víamos vivalma. Erma como se encontrava, aquela também estranha paisagem fascinou-nos a dobrar.
Como há muito fascina os islandeses.
A História Viking na Génese da Fundação do Althing
Narra o Livro da Colonização dos Povos Nórdicos que a povoação da Islândia se inaugurou no final do século IX e que, a partir de então, vários habitantes de origem viking e celta se instalaram na ilha, com frequência refugiados de desavenças ou de perseguições ditadas pela realeza ou por clãs mais poderosos dos territórios em que viviam.
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A homenagem de Reiquejavique a um dos seus povoadores pioneiros, o viking Leif Eriksson.
Após constatarem as condições que o novo domínio oferecia, muitos já não quiseram voltar. Em vez, criaram assembleias distritais.
À medida que a população aumentou e os descendentes do chefe pioneiro da colonização da ilha, Ingólfur Arnarson conquistaram supremacia sobre outras famílias, chefes rivais reclamaram a necessidade da instauração de uma assembleia que limitasse o seu poder.
Entre 927 e 930, um homem chamado Grímur Geitskör (Grímur barba de cabra) ficou encarregue de percorrer a Islândia e escolher o lugar mais adequado a um projecto de parlamento.
Não tardámos a avistar o local eleito. Foi por ele seleccionado devido à posição privilegiada às margens do maior lago da ilha, Thingvallavatn, na base de uma falha rochosa proeminente e com vista desafogada.
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Falhas geológicas criam rasgos de rocha em que se alonga o lago Thingvallavatn.
Também contribuiu para a escolha a conveniência de o anterior proprietário, Thorsteinn Ingólfsson, se ter visto condenado por assassínio e de Bláskógar, a sua terra, ter sido declarada pública.
Esta foi uma decisão comunal e judicial madura considerando que estávamos no primeiro terço da idade das trevas e tendo ainda em conta a excentricidade das coordenadas geográficas – leia-se quase árcticas e do meio do Atlântico – em que o episódio teve lugar.
A Desolação algo Mística do Parque Nacional Thingvellir
Continuamos sem ver sinal de gente. Em contrapartida, abundam os patos. A sua indiferença, soberba e até agressividade fazem-nos sentir os invasores que somos.
Um par de aves que dormita sobre o solo forrado de tojo não arreda patas do trilho estreito e muralhado porque é suposto avançarmos.
Quando tentamos contorná-los, somos atacados à bicada de tal maneira que nos vem à mente a hipótese de serem reencarnações vikings aladas.
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Os moradores permanentes do rio Oxará e lago Thingvallavatn a quem a paisagem de Thingvellir permanece entregue na maior parte do tempo.
Os bichos obrigam-nos a trepar o pequeno muro, a desviar caminho pela beira do Canyon de Silfra e a atravessarmos a ponte sobre o rio Oxará.
Thingvallabaer e Thingvallakirja, os Edifícios que Agora se Destacam de Thingvelir
Demos então com um complexo de edifícios brancos de madeira com telhados abruptos e percebemos que se tratavam do Thingvallabaer – a residência de Verão oficial do primeiro-ministro islandês.
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A Residência de Verão do Primeiro-Ministro da Islândia.
E a Thingvallakirja, uma igreja que substituiu a original do século XI.
Foram ambos erguidos em 1930 para comemorar o milénio inaugural do Althing, como complemento à constituição do primeiro parque nacional da Islândia, o PN Thingvellir que continuávamos a desvendar.
Examinamos os edifícios e o pequeno cemitério em que estão sepultados dois poetas contemporâneos da independência islandesa.
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A igreja luterana que, com o cemitério contíguo, completa o conjunto de estruturas criadas pelo homem do PN Thingvellir.
Também daquele ângulo, nos confrontamos com o paredão elevado de lava solidificada que antecipava o horizonte para noroeste.
Pomo-nos a caminho das suas alturas.
O Sopé de Encosta que Acolheu o Parlamento Viking Althing
Com essa ascensão, convergimos por fim para a Lögberg (Rocha de Lei), o lugar exacto em que o Althing se reunia anualmente. Era ali, entre duas fissuras profundas, que o lögsögumadur recitava as leis à assembleia.
Após a cristianização da Islândia, esse sítio mudou para o sopé de outros penhascos que revelaram uma acústica mais propícia a difundir os discursos pela multidão vinda dos quatro cantos da ilha.
Alguns dos chefes chegavam de dezassete dias de viagem, o máximo previsto para os provenientes do seu extremo oriental, em que as sucessivas montanhas e os glaciares islandeses se provavam bem mais complicados de transpor.
Não temos dificuldade em encontrar esse outro lugar no sopé, marcado por um mastro de bandeira.
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Sol põe-se nas últimas horas de um dia de junho e dá mais cor aos cenários de Thingvellir.
Nem de imaginar onde se situaria o Nedrivellir (os Campos Baixos), a área plana alojada numa cota inferior, em frente aos penhascos.
Ali se crê que a Lögrétta – um conselho jurídico constituído por 48 membros votantes, 96 conselheiros e dois bispos – debatia até chegar a decisões cruciais para o futuro da cada vez maior comunidade.
Nas imediações, achamos ainda diversos búdirs, abrigos de pedra e de turfa em que os participantes nas assembleias acampavam, outros que serviam de bancas de comes e bebes muito à laia do que acontece nos nossos dias durante os festivais de música.
Naqueles tempos, como hoje, um dos produtos mais transacionados era a cerveja. Também eram vendidos e comprados comida e véus, entre outros.
Almannagjá, a Fissura na Fronteira entre as Placas Norte-Americana e Europeia
Colocamos um pé de cada lado de um dos prolongamentos estreitados da fissura Almannagjá, num equilíbrio simbólico mas precário sobre uma profundeza de lava negra.
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Marco C. Pereira e Sara Wong sobre uma das falhas geológicas características do PN Thingvellir e que provam a lenta separação da placa norte-americana da Euroasiática.
Assim mesmo, rimo-nos da curiosidade de os colonos vikings e celtas participantes acamparem, legislarem e consolidarem a futura nacionalidade islandesa, enquanto a América do Norte e a Europa se separavam mesmo que apenas alguns milímetros por ano.
Há muito que este virar de costas tectónico deixa marcas na planície de Thingvellir.
Não só a fenda Almannagjá, também outras expressões geológicas menores como a Brennugjá (o Abismo Ardente).
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A fissura tectónica em que eram levados a cabo encontros políticos e procedimentos religiosos da comunidade.
Durante o século XVII foram por ali queimados nove homens acusados de bruxaria e a Drekkingarhylur onde se precipita a cascata de Öxararfoss, usada para afogar mulheres acusadas de infanticídio, adultério ou outros crimes.
Nos dias que correm, as autoridades islandesas são algo mais misericordiosas.
No entanto, por respeito à antiguidade e ao pragmatismo histórico da sua democracia, ao contrário do que acontece um pouco por todo o lado, são raros os autores de crimes que escapam à vontade do povo e à lei.
Assim se viu com as condenações a prisão real dos vários responsáveis pelas fraudes que agravaram a crise financeira islandesa de 2008-11.
Todas decididas no sucessor do Althing original, agora instalado num edifício cinzento de pedra da capital Reiquejavique.
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Casario de Reiquejavique visto do ar com a catedral da capital islandesa em destaque.