Três dias contados do voo de Chengdu para Lhasa, mesmo tendo dormido umas míseras quatro horas, por fim, despertamos livres de sintomas do Mal de Altitude.
São sete da manhã, a hora que era suposto ter início o pequeno-almoço do Yak Cool Hotel. O único funcionário presente dá-nos uma novidade nada “cool”. A cozinheira tinha-se atrasado, só seria possível a partir das oito.
Em vez de esperarmos, saímos de imediato, no novo jipe atribuído à viagem. Detemo-nos, ainda em Lhasa, numa casa de momos (dumplings tibetanos). Acabado de confecionar, ainda fumegante, o pitéu garantiu-nos as energias necessárias para o percurso desgastante que se seguiria.
Partimos para sul. Cruzamos a ponte Liuwu e o rio Lhasa que empresta o nome à capital tibetana. O rio rende-se a um outro, o Yarlung Zangbo. Aponta à cordilheira dos Himalaias.
Seguimo-lo e aos seus meandros durante quase 200km e em redor de seis horas. Nessa distância e tempo, ascendemos quase mil metros.
Abandonamo-lo em Gangbacun. Muitas curvas e contracurvas depois, chegamos a Zhamalongcun.
Yamdrok: um dos Grandes Lagos do Tecto do Mundo
Em vez de um rio, ficamos com um lago hiperbólico por diante.
Com mais de 72km de extensão, o Yamdrok é um dos três maiores lagos sagrados do Tibete.
Num dia seco e solarengo, como quase todos nestes confins do tecto da Ásia, do cimo do desfiladeiro de Gampa (4790m), o lago resplandece no tom de azul-turquesa que o seu nome tibetano traduz.
Envolvem-no encostas áridas, de um castanho amarelado que contrasta com o azul do céu e com o ligeiramente mais escuro do lago.
No miradouro privilegiado de Gampa, as cores não se ficam por aí.
Sagrado como é, o lago justifica a presença de longas fitas multicolores de bandeiras budistas-tibetanas lunga ta de oração.
Os crentes de passagem asseguram a sua renovação.
Colocam-nas, ali, num cimo destacado e ventoso.
Cabe ao vento agitar as bandeiras de maneira a abençoar e a levar boa fortuna a todos os seres sencientes.
A começar pelos moradores dos lugarejos que vislumbramos do lado de lá, acima de socalcos que, findo o Inverno, gerarão cultivos providenciais.
A maior distância, qualquer que seja a estação do ano, despontam picos nevados imponentes.
São os cumes da cordilheira Nyenchen Thangla.
Tínhamos um longo caminho pela frente.
Lobsang, o tibetano que nos guia, decreta o fim da contemplação e das fotografias, em função do almoço, que se atrasava.
Paramos em Nagarse, num restaurante algo retirado da estrada.
Observa-nos um mastim tibetano negro que se aquece ao sol, adornado por uma coroa vermelha que alguém lhe tinha colocado em jeito de coleira.
Findo o repasto, prosseguimos para oeste.
O Glaciar de Encosta do Desfiladeiro de Karo
Decorrida mais uma hora de percurso, já acima dos 5000 metros, surpreende-nos a visão de um glaciar encavalitado numa encosta rochosa.
Era o término de uma das línguas de um curso de gelo que ali chegava das vertentes setentrionais do Monte Noijin Kangsang (7191m), uma das quatro montanhas sacras do Tibete.
Deixamos o jipe. Caminhamos sobre uma gravilha escorregadia.
Até uma estupa de que se estendiam vários tentáculos trepidantes de bandeirolas de oração.
Àquela altitude, cada passada que completávamos parecia-nos um passo na Lua. Derreados e ofegantes, chegamos à base da estupa.
Impressionamo-nos com as fendas profundas e outros recortes caprichosos do rio de gelo. Em pleno Inverno, a probabilidade de assistirmos a derrocadas da sua parede de ablação era diminuta.
De acordo, sob a persistente pressão de Lobsang, retomamos o percurso. Até Gyantse, outros fenómenos e deslumbres haveriam de justificar paragens.
Na iminência de uma tal de aldeia Shagancun, a estrada progride sobre encostas recortadas e acima de um novo lago, a espaços, por promontórios que nos revelam um inesperado panorama gelado.
O Grande Reservatório Gelado de Manla
Avançávamos ao longo do reservatório de Manla, conhecido como a primeira represa do Tibete, com três braços distintos, alimentados pelo rio Chu.
Situada a uns “meros” 4200 metros de altitude, mas com o seu caudal natural detido, o reservatório preservava uma cobertura de gelo em boa parte lisa, de visual vidrado e reflectiva.
Esperamos que a via volte a ascender para alturas panorâmicas ideais. Numa delas, com um dos braços da represa a descoberto e a estrada a ziguezaguear lá em baixo, reclamamos a Lobsang, os nossos direitos de passageiros e clientes.
Lobsang anui à paragem. Acompanhamos o trajecto de um camião vermelho, da lonjura, na nossa direcção.
Quando a carripana por nós passa em óbvio esforço, retornamos ao aperto do jipe e ao destino principal da tarde, a cidade de Gyantse.
Um Guia Deprimido pela Opressão Chinesa
Nesse trecho, Lobsang e o motorista voltam a desabafar sobre a frustração em que eles (e os tibetanos) viviam devida à já longa ocupação chinesa.
E à destruição da cultura e etnia tibetana que Pequim se apressava a substituir pela da etnia Han, a predominante na China.
Sentiam-se oprimidos a dobrar, porque se viam obrigados a trabalhar para agências e patrões chineses.
A China só permitia visitas ao Tibete se reservadas através de agências chinesas. Nós próprios, não tivemos alternativa.
O problema agravava-se, todavia, quando a frustração e a depressão de Lobsang faziam com que, por sistema, se esquivasse à sua responsabilidade de nos proporcionar uma viagem pelo Tibete condigna.
Sempre que possível, Lobsang atrasava as partidas matinais.
Ao longo do dia, encurtava o tempo em cada lugar, a pensar apenas em prolongar o convívio com outros guias seus conhecidos, em povoações que não estavam sequer no itinerário inicial.
Gyantse: uma Majestosa Cidade Fortaleza
Chegamos a Gyantse. O guia volta a tentar um dos seus subterfúgios. Uma imposição, sem sentido, de que só tínhamos vinte minutos para espreitar, após o que seguiríamos.
Conscientes de que não era o que constava no programa, extasiados com a beleza monumental da cidade, activamos o nosso próprio cronómetro.
O sueco Jacob e o norte-americano Ryan que nos acompanhavam percebem e alinham. Lobsang vê-se forçado a esperar.
Estávamos perante uma das mais relevantes cidades históricas do Tibete. A secular Gyantse merecia todo o tempo e mais algum.
Para não o desperdiçarmos, quase corremos de um lado para o outro, também movidos pela incredulidade do cenário.
Gyantse surgiu no coração do vale Nyang Chu, sobre as antigas rotas mercantis de Chumbi que faziam chegar a lã tibetana aos reinos de Sikkim, do Butão e a partes da actual Índia.
Gyantse: da Origem Feudal à Cidade-Museu Habitada dos Nossos Dias
Ergueu-a, durante o século XIV, Pelden Sangpo, um monarca da região que procurava consolidar o feudo que o servia.
Em 1390, a importância de Gyantse era já tal que justificou a construção da fortaleza (dzong) que lá resiste.
Vemo-la pairar, em tom avermelhado, como uma miragem indelével, na crista de um cerro aguçado e rochoso, envolto de uma muralha com 3km de extensão.
Essa muralha defende o mosteiro de Palcho e o seu incrível kumbum, uma estrutura da escola sakya do budismo-tibetano.
Tem seis andares e 77 capelas empilhadas que contêm mais de dez mil murais.
Durante muito tempo, Gyantse foi a terceira maior cidade do Tibete, a seguir a Lhasa e a Shigatse.
A invasão chinesa do Tibete, de 1950, roubou a Gyantse o seu protagonismo.
Os chineses fecharam as antigas rotas comerciais, em detrimento de Lhasa.
Durante a Revolução Cultural de Mao Zedong, pilharam o mosteiro, o templo kumbum e até o forte.
Após a revolta tibetana de 1959, cerca de quatrocentos monges e outros religiosos foram aprisionados no mosteiro.
Boa parte dos artesãos locais viram-se obrigados a fugir da cidade. Mesmo assim, mais tarde, a população de Gyantse recuperou de oito mil para, em redor de vinte mil habitantes.
Ao contrário de outras povoações que, devido ao influxo de chineses e à interferência económica e cultural de Pequim, a ultrapassaram na população, Gyantse permanece sobretudo tibetana.
As suas gentes reactivaram parte da função religiosa do mosteiro e dos templos.
Continuam a percorrer as ruas com os seus penteados e nos seus trajes tradicionais.
Em tempos prodigioso, o mercado multiétnico local, antes visitado por nepaleses, butaneses e até muçulmanos de Ladak e de outras paragens, deixou de fazer sentido.
A Improvável Visita dos Quatro Forasteiros Ocidentais
Gyantse subsiste, sobretudo, como uma grande cidade museu habitada e com uma crescente procura turística.
No pino do Inverno, no entanto, seríamos só nos os quatro e uns tantos outros gatos pingados, os forasteiros de visita ao Tibete.
Os tibetanos contemplavam-nos com regozijo e surpresa.
Espanto que o sueco Jacob, senhor de quase dois metros de altura, fazia redobrar.
Podíamos ter ficado toda a semana à descoberta de Gyantse. Quase três horas depois, Lobsang fartou-se. Veio ao nosso encontro.
Reclamou a sua manipulação da viagem.
Sobre as oito da noite, demos entrada em Shigatse.