“Bom, então já sabem. Atravessam o primeiro sector da vinha e vêem a vossa villa ao fundo à direita”!
Cecília Diaz Huit direcciona-nos, ainda algo apreensiva devido ao óbvio abismo visual que nos separava dos restantes hóspedes, quase todos executivos ou veraneantes sul-americanos abastados, entregues a repousos vinícolas.
Tinha decorrido apenas um ano e meio desde que conhecêramos esta argentina empreendedora. Na primeira passagem por Mendoza, encontrámo-la como responsável de Marketing do hotel Hyatt local. Já então nos sugerira que preparava voos mais ambiciosos.
Até à data, a maior parte dos visitantes da província de Mendoza alojavam-se na capital homónima. Saíam à descoberta do vasto domínio enólogo disseminado pelos arredores sem fim de Godoy Cruz, Maipu e Lujan de Cuyo. Áreas vastas, se tivermos em conta que a província de Mendoza tem quase a dimensão de Portugal.
Cecília e o marido enólogo Martin Rigal compreenderam a lacuna. Não hesitaram em resolvê-la.
Quando regressámos à zona, receberam-nos no seu recém inaugurado hotel de vinho, instalado num recanto do mar verde-parra de Lujan de Cuyo, isolada pela imensidão da paisagem. Na realidade, entre várias bodegas com arquitecturas caprichosas.
E vista para as montanhas nevadas da pré-cordilheira andina.
Não foram, nem de longe, os primeiros a aproveitar a fertilidade solarenga daquelas paragens.
A História Já Longa da Enologia da Província de Mendoza
Os primeiros colonos espanhóis constataram, pouco depois de ali chegarem, a secura e aridez irrigável. Também repararam na grande amplitude térmica da região. Foram eles – sobretudo os missionários católicos – que plantaram os primeiros vinhedos experimentais.
A produção vinícola manteve-se por bastante tempo crioula e localizada. No século XIX, a intensificação da imigração de italianos e espanhóis – também de franceses e outros – fez com que a enologia começasse a ser levada a sério.
A partir de então, a competição entre bodegas familiares conduziu a um processo de maturação da indústria vinícola que a construção do caminho de ferro entre Mendoza e Buenos Aires, em 1884, favoreceu.
Malgrado este progresso, até há três décadas atrás, apesar de ser o quinto no Mundo em termos de quantidade, o vinho argentino não chegava a ser exportado. Era tido como demasiado inferior ao importado da Europa pelas mansões afrancesadas de Buenos Aires.
Por essa altura, os proprietários de bodegas constataram que a cerveja ocupava já uma parte significativa do mercado nacional de bebidas alcoólicas. E que o consumo anual per capita de vinho tinha baixado de 25 litros, em 1960, para menos de 10.
Viram-se obrigados a redobrar esforços. Recorreram a investidores e enólogos estrangeiros. A sua entrada em cena fez com que, em pouco tempo, os melhores rótulos argentinos fossem avistados e reconhecidos em redor do Mundo.
Catena Zapata. Uma Família Eno-Produtora de Sucesso. Entre Tantas Outras
A família Catena Zapata, chegada de Itália em 1898, tornou-se uma das maiores proprietárias de vinhas da região e um caso de enorme sucesso.
Quando visitamos a sua adega e quartel-general, deslumbramo-nos com a imponência faustosa de que foi dotada, desenhada com influência das pirâmides maias de Tikal.
Também nos marca a postura acolhedora mas pragmática e o discurso pomposo de Nicholas, o herdeiro no trono desta dinastia vinícola.
Nicholas Catena Zapata senta-se, confortável, sobre uma das centenas de pipas da sua excêntrica adega. A figura delgada, elegante, enquadra-se, na perfeição, no ambiente de cave mas, ainda assim, requintado que nos rodeia.
“Ainda bem que vos impressiona!” segreda-nos, enquanto passeamos, incrédulos, pela sala de barricas circular e sumptuosa do edifício. “Não poupámos esforços para erguer uma sede digna da história da família. Como já devem saber, os meus antecessores têm grande responsabilidade em tudo aquilo em que Mendoza se tornou.”
O milagre que permitiu ao clã Catena Zapata e a tantos outros com origem europeia aproveitar um quase deserto de maneira a que passasse a gerar 70% da produção de vinho da Argentina tem, hoje, poucos segredos.
A Particularidade Geológica e Climática de Mendoza
A província de Mendoza está situada, na Argentina, aproximadamente à mesma latitude que a capital Buenos Aires mas no extremo longitudinal oposto do país.
Surge numa vastidão inóspita e arenosa, aos pés da cordilheira dos Andes que, aqui, partilhada com o vizinho Chile, se ergue mais imponente e colorida que noutra parte qualquer da América do Sul.
Culmina-a a maior elevação do Hemisfério Ocidental, o Monte Aconcágua (6962 m).
A localização continental de Mendoza abriga a região da humidade proveniente tanto do Pacífico como do Atlântico. Proporciona um predomínio absoluto dos dias de sol e fortes amplitudes térmicas diurnas.
Mas, se a água só muito raramente cai sobre as zonas planas da província – o que acontece com frequência nas montanhas mais elevadas- acaba por deslizar sobre elas em caudais alimentados pelo degelo e pelo declive, mais ou menos volumosos consoante a época do ano,
Foram estes rios e riachos que os colonos espanhóis aprenderam com os índios Huarpes a canalizar numa complexa rede de canais e aquedutos de maneira a irrigar um mar de vinhedos que aumentou ao longo dos séculos.
Esta engenharia viabilizou também o desenvolvimento da capital homónima da região.
Cidade Homónima, Alma e Coração de Mendoza
Mendoza – a cidade – é famosa por uma incrível densidade de enormes plátanos que a protegem da rudez do clima contrastante. As suas árvores urbanas são irrigada por inúmeras acequias (canais a céu aberto) que acompanham as avenidas largas da baixa.
É o caso da pedestre Avenida Sarmiento, onde as esplanadas dominam a sombra e permitem aos moradores apreciar os inevitáveis picadillos e médias lunas (croissants) enquanto debatem os temas e traumas favoritos da nação.
As acequias nada podem, todavia, contra os movimentos tectónicos verificados na zona. Como precaução, a Mendoza cidade foi dotada de praças amplas.
A sua função primordial, o refúgio da população em caso de sismo, é algo desvanecida pelos piqueniques improvisados, pelas siestas e outras formas de ócio que os mendocinos aperfeiçoaram ao longo dos tempos.
Mendoza não é o que se espera de uma capital.
As videiras há muito que ficaram para trás mas o verde permanece e predomina. Assim ditou a concepção paisagística do francês Carlos Thays, autor de um trabalho surpreendente, reconhecido em todo o mundo como uma das mais brilhantes expressões urbanas de um oásis.
Fundada, em 1561, pelo espanhol Pedro del Castillo, como já vimos, numa zona de grande actividade sísmica, a cidade viria, pouco depois, a pagar pela ignorância ou, pior, pela displicência. Foi arrasada por um terramoto de forte intensidade e só em 1863, recebeu um novo traçado.
Hoje, são raros os seus edifícios e lares com mais de 4 ou 5 andares.
Como não podia deixar de ser, a actividade comercial local está, também ela, organizada, em grande parte, em função do vinho.
As Bodegas e as Provas de Vinho da Eno-Província Argentina
Lá se situam muitas das agências que organizam as visitas às bodegas mais viradas para o turismo. Casos das Escorihuela ou La Colina de Oro.
Ou a La Rural, a adega que acolhe o maior museu vinícola da América do Sul, onde encontramos em exibição as ferramentas usadas pelos colonos da região na plantação dos vinhedos inaugurais.
São vários os edifícios térreos do centro que abrigam salas de prova exíguas, pouco preocupadas com a sua insignificância face à pompa das congéneres da planície.
Caminhamos por uma rua qualquer quando Jaquelina Ascoetti nos recruta para entrar na bodeguita em que trabalha. E a provar uma série de vinhos argentinos que está encarregue de promover e vender.
De forma suave e gentil, a jovem mendocina serve-nos um pouco de Malbec, de Cabernet, de Syrah, de Pinot e de Torrontés, em algumas das amostras, combinações apuradas destas castas.
“Que vos parece?? Por mais antiga que a Europa possa ser, já produzimos uns vinhitos à altura dos vossos, não?” Não temos como discordar. Agradecemos a dedicação da anfitriã.
Despedimo-nos para uma longa caminhada até ao famoso bar de viño Azafrán. Nessa noite, jantamos umas tapas com trejeitos culinários argentinos.
E bebemos mais uns copos do revigorante néctar dos deuses de Mendoza.