Com o fim da tarde, encerradas as obrigações laborais do dia, uma multidão de santacruceros aflui à Avenida Marítima.
Ali, apenas com o areal negro a separá-los do embalo do Atlântico, descomprimem da rotina, entregues a caminhadas e corridas sôfregas e a conversas animadas. Do lado oposto da estrada, desenrolam-se outras cavaqueiras menos ofegantes.
Com o passar dos anos, Santa Cruz teve que fazer cedências arquitectónicas à modernidade.
Quando admiramos as primeiras linhas do casario de cima do muro da marginal, reparamos na exuberância das suas varandas de madeira lavrada, várias, adornadas por flores, plantas e trepadeiras.
De uma delas, menos vegetal, uma moradora cavaqueira com uma amiga que a acompanha de cabeça inclinada. Debatem uma qualquer combinação confusa.
A dona da casa atira uma chave para baixo. Logo, um envelope. Ambas repetem os “vale, vale” de aprovação típicos do castelhano, tudo isto sob supervisão de um grupo de idosos em convívio numa mesa de esplanada próxima.
Reparamos numa varanda ao lado. Alojava uma vegetação tão farta que só tinha a descoberto a parte superior da estrutura. Dela pendiam quase florestas de plantas distintas.
Farfalhudas e exuberantes à laia das barbas dos conquistadores que partiram da Ibéria para o mundo.
Apesar de as outras ilhas terem a sua própria abundância e diversidade de edifícios coloniais, o conjunto de varandas que apreciávamos é considerado o mais prodigioso das Canárias.
Lado a lado, num curto trecho da avenida, surgem agrupados com diversos visuais, com destaque para os balcones dobles, diz-se que inspirados nas varandas e adufas tradicionais portuguesas.
Em Santa Cruz de La Palma, o emprego de tipologias e soluções lusitanas está por toda a parte. O âmago histórico da povoação, desenvolvida em redor de La Alameda, seguiu o padrão tido como português: linear e ajustado aos recortes da costa.
As varandas, em particular, foram adaptadas como solução de refrigeração para os dias mais quentes, numa beira-mar em que que os proprietários podiam contar com as brisas dos Alísios, ali provindos do quadrante norte.
Malgrado a beleza e a fama que conquistaram, eram consideradas estruturas secundárias dos lares. As frentes dos prédios respectivos ainda dão para a rua primordial da cidade, dividida entre Calle O’Daly e Calle Pérez de Brito.
Na origem das origens, anterior à predecessora Villa del Apurón, aquelas traseiras das casas tinham o mar por debaixo.
Abrigavam compartimentos de retretes, munidas de orifícios que permitiam o escoamento directo para a antiga zona de rebentação do Atlântico.
A Origem Colonial da Villa del Apurón
O lugarejo predecessor da cidade foi fundado, em 1493, por Alonso Fernández de Lugo, um conquistador nomeado adelantado.
Aquando da chegada dos navegadores europeus, as Canárias permaneciam sob controle dos indígenas Guanches, divididos em subgrupos aguerridos que defendiam La Palma e as outras ilhas Canárias. Ora, os Guanches resistiram aos invasores europeus durante todo o século XV.
Alonso Fernández de Lugo liderou as forças castelhanas em várias das batalhas cruciais contra eles travadas, sobretudo em Tenerife.
Numa delas, a Primeira Batalha de Acentejo (1494), foi um de apenas cinco sobreviventes. Por essa altura, a resistência dos guanches Benahoritas da vizinha do norte, La Palma, estava já dominada.
O realengo erguido por de Lugo ocupou um reduto do litoral à época conhecido por Tedote, uma das divisões da ilha estabelecidas pelos Benahoritas.
Em 1542, já governado pelo sobrinho de De Lugo, passou a Villa del Apurón. Este baptismo terá resultado das agruras vividas pelos castelhanos em combate contra os Benahoritas.
Em virtude de a fundação da povoação se ter dado no dia hispânico da Invención de la Santa Cruz, Villa del Apurón coexistiu e alternou nos escritos e registos com Villa de Santa Cruz.
A Arquitectura e o Urbanismo Nobres de Santa Cruz de La Palma
Sem surpresa, por influência clerical, este último nome sobrepôs-se. Santa Cruz popularizou-se na história como Muy Noble y Leal Ciudad de Santa Cruz.
Quando a visitamos, o título e o nome vigoram. Santa Cruz é, agora, uma das capitais de ilha resplandecentes das Canárias.
Continuamos a descobri-la.
Da Avenida Marítima, internamo-nos na grelha urbana que o relevo de La Palma fez menos geométrico que noutras paragens.
A ruela estreita e sombria em que nos metemos, revela-nos o fosso e pórtico do Real Castillo de Santa Catalina, com a sua frente de costas voltadas para o Atlântico, um bom-senso militar que terá poupado muitas vidas.
Mesmo se a fortaleza resultou de um típico contexto de “casa assaltada, trancas à porta”.
A edificação do castelo teve início em 1554, no ano a seguir à invasão e saque liderados pelo pirata normando François Le Clerc, mais conhecido por Perna de Pau, nem que fosse porque realmente a tinha.
Umas dezenas de metros acima, entre palmeiras, damos entrada na Plaza de La Alameda.
Subsistem, por ali, mais alguns exemplares de fachadas e janelas históricas que nos remetem para o norte de Portugal. O próprio coreto no cerne da praceta é tanto canário e espanhol como podia ser português.
A Homenagem de Santa Cruz de La Palma aos Marinheiros das Canárias
No extremo oposto do jardim, encontramos, em doca seca, uma réplica da caravela “Santa Maria”, uma das três que Cristóvão Colombo comandou em busca da rota ocidental para as Índias.
A sua pequena frota zarpou de Palos de La Frontera, Huelva, em 3 de Agosto de 1492. Seis dias depois, atingiu as Canárias.
Colombo encarregou-se de reforçar as embarcações para o desconhecido que o esperava. Tratou também de recrutar marinheiros canários, famosos na Europa por terem o melhor conhecimento dos mares e por serem destemidos.
A 5 de Setembro, por fim, Colombo partiu rumo ao que pensava ser a Ásia. Sem saber como, descobriu as Américas para o Velho Mundo.
A réplica da “Santa Maria”, hoje transformada em Museu Naval Barco de La Virgen, foi construída junto ao Barranco de las Nieves de La Palma, como elemento fulcral das Festas Lustrales de la Bajada de la Virgen.
Malgrado o propósito religioso original, celebra a descoberta das Américas, a tradição marinheira de Santa Cruz e a participação dos marinheiros das Canárias na expedição de Colombo.
Calle Real e Plaza de España, o Âmago Majestoso de Santa Cruz de la Palma
No momento em que a admiramos, dois jovens ciclistas-acrobatas entretêm-se com voltas terrestres e terrenas no largo em frente. Levam o seu treino tão a sério que pedalam e saltam enfiados em capacetes dos completos, todos fechados.
Atraíam-nos, sobretudo, os largos dotados de escadarias, uma combinação abundante na histórica e inclinada Santa Cruz. Haveríamos de nos cruzar com o duo mais uma série de vezes.
O seguinte encontro deu-se nos domínios da Calle Real e da Plaza de España, lugar do Ayuntamiento da cidade, aclamado como o conjunto renascentista mais impressionante das Canárias.
Mesmo conhecedores da proibição, os miúdos ensaiaram, ali, alguns movimentos. Até que um polícia de passagem se encarrega de os expulsar. E de devolver a tranquilidade ao cenário secular.
Há muito que a Plaza de España mantém, na cidade, uma função dupla, com fronteiras difusas.
Delimitam-na a fachada e o campanário da Igreja de São Salvador, (ambos góticos) uma série de casas senhoriais e as Casas Consistoriais, da municipalidade.
No centro do conjunto destaca-se a estátua de Manuel Díaz, um padre, político, educador e homem de cultura proeminente, em Santa Cruz, na primeira metade do século XIX.
Do lado oposto à igreja, sob o olhar inquisitório de Manuel Díaz, as arcadas debaixo do Ayuntamento são garantia de sombra e abrigo para a chuva.
Lá vemos sentados moradores idosos, a recuperarem o fôlego das suas caminhadas às compras.
Outros núcleos arquitectónicos prodigiosos, mesmo se não tão imponentes que o da Plaza de España, contribuem para fazer de Santa Cruz a cidade reverenciada das Canárias que é.
Cada vez mais encantados, sentimo-nos na obrigação de perceber como tinha uma povoação do arquipélago, tão distante de Sevilha e de outras grandes cidades espanholas, conseguido tais atributos.
Do Realengo de Fernández de Lugo à Cidade Portuária da Europa
Pois, ditou o clima subtropical e o destino que, numa altura em que ainda era novidade, a cana-de-açúcar crescesse em abundância em La Palma.
De tal forma prolífica que o porto da cidade a exportava em grandes quantidades.
Mais tarde também vinho e até seda.
Cinco anos decorridos após a destruição às mãos de François Le Clerc, Felipe II (I de Portugal) decretou a criação do primeiro Juzgado de Índias.
Escolheu Santa Cruz de La Palma por, não obstante os danos causados pelos corsários, a cidade se ter voltado a provar a mais comercial das Canárias.
De então em diante, qualquer embarcação espanhola com propósitos mercantis, deveria registar-se no Juzgado de Índias antes de partir para as Américas.
Como pretendido pelo rei, o influxo dos comerciantes, as ininterruptas transações com as colónias americanas e o norte da Europa substanciou a prosperidade de Santa Cruz.
No século XVI, tanto em número de barcos como de actividade comercial, o porto da cidade só ficava atrás dos de Sevilha e de Antuérpia.
A Elegância Histórica que Perdura
Na actualidade, finda há muito a era imperial de Espanha, Santa Cruz de La Palma conserva uma importância regional incontornável.
O porto da cidade assegura o transporte de pessoas e bens com as restantes Canárias e o sul de Espanha.
Mesmo assim, Santa Cruz de La Palma viu-se ultrapassada em população pelo município produtor de bananas de Los Llanos de Aridane.
No que diz respeito a elegância histórica e arquitectónica, continua sem rival.