Tínhamo-nos deitado às oito da noite. Acordamos por volta das sete da manhã.
Foram onze horas de sono revigorante mais que merecido e que vieram com uma outra benesse. Malgrado o seu desvario alcoolizado da noite anterior, Don já estava a pé. Tudo indicava que em condições de seguir.
Durante o pequeno-almoço, percebemos que iríamos continuar sozinhos. Tatiana, uma das duas miúdas alemãs e Cris, um dos dois rapazes brasileiros, não se sentiam bem.
O resto do grupo decidiu ficar mais um dia em Yak Karkha, a verem se os sintomas do Mal de Montanha se atenuavam.
Ainda contemplámos ficarmos, por solidariedade e amor ao grupo mas, já nos tínhamos arrastado um tempo exagerado em Pokhara, a prepararmos a caminhada.
Além de que nos sentíamos em perfeitas condições, ansiosos por vencermos o desfiladeiro de Thorong La, de continuarmos, em tranquilidade, do lado de lá.
De acordo, findo o pequeno-almoço, quando percebemos a deliberação ao sol do grupo, despedimo-nos.
Sem grandes dramas ou cerimónias, preocupados em transmitirmos confiança em que todos retomariam a caminhada na manhã seguinte e que, como já acontecera antes, nos reencontraríamos mais à frente.
Em seguida, inauguramos o percurso de quase 7km, com uma elevação de 400m.
A Caminho de Thorong Phedi
Passamos por uma pequena manada dos iaques que contribuem para o sentido de Yak Karkha, termo traduzível como curral dos iaques.
Vemos as suas silhuetas bem definidas contra as montanhas nevadas dos Annapurnas.
À nossa direita, o grande Chulu West (6419m), uma das montanhas elevadas, mas conquistável sem grandes exigências técnicas.
Alcançamos Churi Ledar (4200m) e as suas casas de chá.
Ao entrarmos na primeira, damos com Don numa amena cavaqueira com a proprietária, familiar com quem não contactava havia bom tempo.
Paramos. Bebemos um milktea. Conversamos um pouco com os dois, fazemos umas fotos de ambos e com ambos.
Continuamos, só nós. Don diz-nos que ficaria à conversa com a senhora, que nos apanharia. Por essa altura, não tínhamos razões para duvidar.
Mais uma Estação da Água Segura
Pouco depois, chegamos a uma das “Safe Drinking Water Station” do circuito.
Uma jovem nepalesa dá-nos as boas-vindas.
Pelo que víamos através do guichê que a enquadrava, o interior do estabelecimento tinha um inesperado encanto nepalês.
Era feito de madeira amarelada, repleto de prateleiras forradas a acrílicos ou papéis coloridos onde era guardada uma panóplia de termos e de utensílios de cozinha.
Convivemos um pouco com as senhoras, já habituadas à passagem e curiosidade dos estrangeiros, mesmo aos, como nós, mais metediços.
Despedimo-nos, reabastecidos de água fresca, preparados para os sobes e desces e meandros abruptos, aprofundados pelo rio Jharsong Kola, que estavam por chegar.
Duas Pontes sobre o Jharsong Kola. Uma Indecisão
A certo ponto, a partir de um alto, vemos o trilho bifurcar-se. Continua em direcção a uma ponte suspensa acima do caudal. E por outra ramificação, mais sinuosa e profunda, que atravessava o rio por uma ponte de madeira.
Sem sinais que nos aconselhassem, optamos pela última que nos permitiria, fotografarmos caminhantes a cruzarem a ponte suspensa, com as montanhas em fundo.
Quase nos arrependemos. O trilho inferior revela uma superfície de pedrinhas soltas e escorregadias.
O cuidado que nos exige depressa nos irrita, à parte de que, por alguma razão ainda desconhecida ou talvez apenas porque os recém-chegados imitavam a opção dos caminhantes anteriores, ninguém queria cruzar a ponte suspensa.
Por sorte, por boa condição física, eram quase só esses os nossos problemas.
Os Primeiros e Inesperados Sintomas de Indisposição
Após atravessarmos o rio, começamos a sentir uma ligeira tontura, que nunca tínhamos sentido. Também ainda tínhamos as barrigas mais cheias do que era habitual e suposto, de papa de aveia e fruta, um erro que, de manhã, nos esquecemos de evitar.
Com a altitude a aumentar, o oxigénio que o sangue nos levava ao cérebro, diminuía. As digestões por terminar agravavam a zonzeira.
Fazemos fé no motivo menos danoso, atentos às agruras de outros caminhantes por que passávamos.
O mal de montanha já os tinha derrubado, retinha os companheiros de volta deles, frustrados, submissos ao dever de os levar de volta a terras mais baixas.
Não era o primeiro caso. Nem seria o último.
Como temíamos, vitima-nos uma inquietude distinta. Chegamos ao alto do lado de lá do rio, à entrada de uma outra tea house.
Além de chá e de uma série de petiscos e produtos, a “Deaurli” oferecia aos caminhantes uma estrutura de bancos de pedra com vista panorâmica sobre os ziguezagues do Jharsong Kola, o trilho que tínhamos percorrido para ali chegar e a vastidão em redor.
Víamos tudo isso e os Annapurnas acima.
O que não víamos era sinal de Don em parte nenhuma do trilho. O “já vos apanho” que nos respondera quando o deixámos estava longe de cumprir.
O Sumiço Exagerado de Don
Enquanto nos servem novo milktea, os donos da Deaurli percebem que estamos apoquentados, mas pensam que por causa de um qualquer amigo que se tivesse sentido mal.
Quando lhes indicamos a razão, inauguram uma estranha explicação que nos revela a rivalidade étnica em que vive o Nepal e aquela zona alta dos Annapurnas, em particular.
Dizem-nos que Don deveria ser de uma determinada etnia que não era nativa da zona mas que cada vez mais para lá se mudava, em busca do dinheiro dos trekkers.
Acrescentam que faltava a essa etnia o sentido da responsabilidade e que, quase sempre que havia problemas com nepaleses, era por culpa deles.
Não fazíamos ideia a que etnia pertencia Don. A bebedeira da noite anterior tinha-nos deixado a ideia de que nos poderia gerar problemas a qualquer momento.
Esperamos quase uma hora no ponto panorâmico, muito mais do que necessitávamos para recuperar da subida e beber o chá.
Ao fim desse tempo, por fim, vemos um ponto vermelho, ao longe, a aproximar-se. Minutos depois, identificamos o casaco de Don.
Percebemos que o carregador vinha quase a correr.
Quando sobe a ladeira e a nós chega, os donos da Deaurli, figuras carismáticas daquelas partes, dão-lhe uma descompostura que dispensa qualquer complemento da nossa parte.
Don pede-nos desculpa. Promete que não voltava a atrasar-se daquela maneira.
Limita-se a beber água. Adianta-se-nos.
A Derradeira e Traiçoeira Ladeira
Um cavaleiro nepalês com quem já tínhamos falado em Yak Karkha, de gorro de pele e óculos escuros, aparece, saúda-nos e dá-nos alguns conselhos. “o trilho, daqui até Pedi, é o mais perigoso.
Há risco de derrocadas e, se estiver gado a pastar no cimo, podem levar com pedras mais pequenas”.
Agradecemos-lhe os avisos. Sem alternativa, enfrentamos o risco. No encalço de Don.
Umas dezenas de metros para diante, uma placa com a inscrição “Landslide Area, Step Gently”, confirma o aviso.
O trilho sulca a encosta acima do rio, num vale em V apertado, de terra solta, em ambos os lados, pejado de rochedos que já tinham deslizado e, ao longo dos tempos, causado vítimas.
Seguimos num modo de rapidez silenciosa, sem nunca nos determos. Levamos quase vinte minutos a nos livrarmos da zona de risco, à esquerda do Jharsong Kola.
Quando o conseguimos, damos de caras com a recompensa de Thorong Pedi.
A Entrada Solarenga em Thorong Pedi
O lugarejo surge-nos murado, com um pórtico de entrada que identificava o Thorong Base Camp.
Por oposição ao High Camp, complementado com outras placas promocionais, de “Fresh Bakery”, “Real Coffee” e, claro está de “Apple Pie”.
Caminhantes apressados optavam por esticar a corda.
Progrediam directos até ao High Camp. A subida só tinha 1km. Nessa distância, ascendia 400 metros.
Era das mais íngremes do Circuito.
Ainda à espera de nos assegurarmos que a tontura e dor de cabeça se deviam ao pequeno-almoço pesado, ficamos na dúvida.
De maneira a evitarmos os hotéis sobrelotados, subimos até ao 4540m, o topo da povoação.
Entramos num tal de New Phedi. Espreitamos as instalações e sentamo-nos na sala aquecida, desejosos de descanso e de uma refeição a sério.
Escolhíamos a mesa quando encontramos a Sara e o Manel, um casal do Porto que, sem sabermos quem eram ou de onde vinham, já tínhamos visto à saída de Manang.
Sentamo-nos com eles, tagarelamos. Falamos de tudo um pouco, a tarde toda.
Nesse tempo, a sala ficou à pinha de caminhantes recém-chegados.
O Nevão de Fim de Dia que Branqueia as Montanhas
A meteorologia tinha mudado.
Um nevão ventoso cobria o vale do Jharsong Kola de branco. Quem chegava, entrava cansado e enregelado. Procurava uma vaga junto das salamandras que aqueciam a sala, a partir de determinada altura, em vão.
Se, de início, tanto nós como a Sara e o Manel, hesitávamos quanto a se deveríamos subir logo para o High Camp, o súbito mau tempo, decidiu por nós.
Às 20h, com os empregados nepaleses do New Phedi a desligar as salamandras, vamo-nos deitar.
O plano era despertarmos às três da manhã e ver como estava o tempo. Se o nevão tivesse parado, se o céu estivesse limpo, iríamos subir.
Pelo menos até ao High Camp.