No banco imediatamente em frente do comboio, Yumi começa por afirmar, com timidez, que é de Osaka. Com a continuação da conversa, corrige e assume que nasceu e vive em Nara, Japão. Acaba por nos justificar de forma meio esforçada : “I’m shy … I prefer to say I’m from Osaka …“.
Foi com surpresa que apurámos que, para alguns dos habitantes mais jovens, Nara pode ser considerada “campo” na sua faceta depreciada, motivo de retracção e até alguma vergonha, pela comparação crua ao Japão cosmopolita e ultra-sofisticado de Tóquio, Nagoya, Kobe ou Osaka.
Parecem faltar motivos reais para este tipo de complexos. Herança e testemunho vivo do passado medieval do país do sol nascente, nunca cairiam bem a Nara os arranha-céus e os néones, os ecrãs de alta definição das metrópoles nipónicas ou a linha de shinkansen (comboio-bala) que as liga e lhe passa uns quilómetros ao lado.
O estilo de Nara é outro, comparável, em escala reduzida, ao da vizinha Quioto: pouco luminoso. Nem por isso, menos brilhante e vistoso.
Certas características que lhe são únicas – como o maior edifício de madeira do mundo, o Todai-ji, os vastos jardins relvados e os veados que os percorrem sem destino certo – encantaram os primeiros visitantes e valorizaram-na, desde então, ao ponto de a UNESCO ter qualificado os “Historic Monuments of Ancient Nara” – ruínas, seis templos e oito florestas primárias – como património mundial.
A Nara Moderna e Atarefada da rua Sanjo-dori
Quando descemos das longas composições Japan Rail que servem Nara chegamos, claro está, à hora prevista. Como é do conhecimento universal, no que diz respeito a tabelas e responsabilidades profissionais, os japoneses não se desleixam.
Introduz-nos à cidade a longa Sanjo-dori, a principal rua comercial e a que conduz à sua zona histórica, onde se encontram quase todos os jardins e edifícios seculares.
De ambos os lados, sucedem-se estabelecimentos díspares. Um McDonalds que dá para uma loja de quimonos, que se opõe a uma casa de pachinko (jogo de sorte que viciou muitos japoneses) que, por sua vez, revela uma loja de conveniência e por aí fora, sem qualquer lógica temática ou visual.
Por coerência com a incoerência, a pé e de bicicleta, passa por nós gente de todas as idades, nacionalidades e tipos.
São assalariados locais prisioneiros de fatos escuros, rapazes e raparigas a gastar a sua derradeira liberdade teenager: elas, de mini-saia nos limites, botas de cano alto e gorro soviético ushanka; eles menos expostos ao frio, mas igualmente rendidos aos visuais ocidentalizados cool que enfeitam as montras.
Cruzam-se ainda bandos de estudantes estridentes, submetidos aos uniformes infantis das suas escolas e visitantes japoneses e estrangeiros sortidos, dos mochileiros desenrascados aos milionários aperaltados.
Massa de Pasteis e o Dar de Caras com a Nara Secular
Um aglomerado destas personagens assiste à produção tradicional de massa de chá verde, usada em vários tipos de bolos típicos japoneses, recheados com um creme adocicado de feijão.
Os protagonistas são dois pasteleiros munidos de marretas que martelam em alternância e com toda a força o conteúdo de uma tina e gritam em jeito militar, a cada movimento. A coreografia impressiona outros transeuntes que, aos poucos, se juntam à assistência.
Ao lado, as margens arredondadas do lago Sarusawano são um ponto de confluência natural para quem vem de fora. Ocupam-nas pintores e fotógrafos amadores hiper-equipados ou de máquina compacta em riste, estrategicamente posicionados face ao reflexo do pagode mais alto (50.1 m) do templo Kofuku-ji, outro dos destaques patrimoniais de Nara e antigo pretendente do título do mais elevado do Japão que perdeu, no entanto, para um rival de Quioto.
O Kofuku-ji actual – constituído apenas por quatro edifícios construídos posteriormente: os pagodes de três e cinco andares (goju-no-tou), a Casa do Tesouro e o Tokondo Hall – é uma parte ínfima dos cerca de 175 que o formavam no auge do seu esplendor e que desapareceram durante os 1300 anos que passaram desde o início da sua construção, datado de 710.
Apesar de diminuído, este é, ainda hoje, um dos principais templos japoneses da corrente budista Hosso, também conhecida por yuishiki, que defende que toda a existência é consciência e, como tal, que nada existe para lá da mente.
Dessi Tambunan, uma Indonésia com Ansiedade Nipónica
A consciência de Dessi Tambunan, uma jovem mulher indonésia expatriada que nos acolhe em sua casa pouco depois de chegarmos a Nara quase a levava ao desespero. “Sabem… já não sei que mais posso fazer”, desabafa em jeito de amuo, a puxar pelo visual ternurento de boneca de Java: “Eu dou o meu melhor para me adaptar e ser reconhecida como deles. Parece que nunca é suficiente.
Olham sempre para mim de uma maneira diferente. Não sei bem explicar porquê mas estou cá há quase três anos. Continuo a sentir-me apenas e só uma estrangeira…” prossegue na mais pura das sinceridades.
O desabafo comove-nos. Suscita-nos conclusões perturbadoras. A mais óbvia era que a jovem indonésia tinha chegado ao Japão com uma ansiedade do tamanho das enormes expectativas. Ela própria pertencente a uma família rica e influente de Jacarta, Dessi deixara-se contagiar pelo sonho da alta-sociedade nipónica.
Um japonês abastado, atraente e sensível – como, a seu ver, eram quase todos – cairia pelo seu beicinho de porcelana e a vida seria um conto de fadas, longe da humidade atroz, da pobreza e do atraso civilizacional que, assim o considerava, envolviam a sua, apesar de tudo, querida pátria tropical.
A escola de danças orientais e de inglês que tinha aberto no centro de Nara funcionava graças a alguns adolescentes tímidos mas corajosos de Nara que procuravam combater a rigidez e formalidade secular em que foram educados. Mas as suas ancas ossudas impediam-nos de aspirar aos movimentos graciosos da professora e, a um nível oral, o mesmo tipo de problema, enrolava e prendia o ensinamento da língua “do mundo”.
Um Projecto Pessoal de Niponização
Dessi queixava-se de tudo e mais alguma coisa. Mesmo assim, às Segundas, Quartas e Sextas lá deixava o seu estúdio-triplex espelhado ao princípio da noite para se trajar de quimono e aprender, ajoelhada entre as senhoras de bem da cidade, os movimentos complexos da cerimónia do chá, que encarava como o passaporte para a desejada integração. Quando regressava, voltava a lamentar-se da irresolúvel marginalização.
O seu projecto existencial começara na vizinha Osaka, a grande metrópole laboral do Kansai. Mas os preços exorbitantes dos alugueres e uma forte concorrência forçaram-na a mudar-se para Nara, uma cidade que os teenagers sofisticados da região, fãs da supra-sumo Tóquio, veem como antiquada e conservadora e que as autoridades continuam a proteger da mudança em homenagem do passado glorioso.
Nara: Capital por Quase um Século e a sua Única Gueixa no Activo
Nara, cujo nome se acredita provir do termo narashita, que significa alisado, manteve-se a capital japonesa durante a maior parte do século VIII. Chamava-se originalmente Heijō-kyō. Tal como Quioto, numa altura em que o Japão procurava seguir o exemplo civilizacional da China, foi erguida à imagem de Chang’an, a actual cidade de Xi’an, onde se encontra o famoso exército de terracota.
Várias das obras dessa era foram consumidas pelo tempo e seus adventos. Quanto às personagens vivas representantes do tempo clássico do Japão, Nara tem uma mais famosa que qualquer outra. A data da nossa visita, Kikuno era a única gueixa a residir na cidade. A única de duzentas que em tempos lá coexistiam.
Kikuno dedicava-se ao ofício desde os seus 15 anos. Contava agora com 45. Desi tinha por ela uma enorme admiração. Levou-nos a assistir a um dos seus espectáculos nocturnos. Um dos vários para que a gueixa se via requisitada no dia-a-dia, razão porque, mesmo sendo a protagonista – a artista a solo do espectáculo, aliás – o acabou por abandonar à pressa após duas curtas exibições de dança.
Desi saiu da sala a suspirar, inspirada para novo chorrilho de lamentos quanto à sua situação. Ainda assim, tivemos tempo para comentar o desempenho de Kikuno, a sua pressa, e a lenta extinção da arte gueixa, em geral, no Japão.
No dia seguinte, Desi esteve ocupada com os seus afazeres. Nós, prosseguimos a aturada exploração de Nara, com excepção para o seu grande templo budista, o Todai Ji, o maior edifício de madeira à face da Terra, a que já tínhamos dedicado quase toda uma tarde.
À Descoberta da Nara Florestal e Histórica
Entregámo-nos à paisagem outonal dos parques, sempre de olho nos veados afoitos que se habituaram a perseguir os transeuntes, ansiosos pelos biscoitos que os visitantes compram para lhes darem.
Subimos ao monte Kaigahira-yama, o mais alto da cidade, com 822 metros. Do cimo ventoso, contemplamos a vista panorâmica do casario moderno disseminado ao longo do vale. Logo, voltamos a descer, em busca de outros dos monumentos históricos e religiosos que fazem de Nara um caso à parte.
De todos aqueles porque havíamos passado, o santuário Kasuga Taisha provou-se de longe o mais iluminado.
As Lanternas de Pedra Deslumbrantes de Kasuga Taisha
O caminho que o precede revela-nos cerca de duas mil lanternas de pedra que são acesas durante os dias de um tal de Festival Chugen Mantoro. Todos os anos, nos dias – ou melhor, noites de 14 e 15 de Agosto – gera uma atmosfera misteriosa solene que deslumbra crentes budistas e não crentes.
Percorremos as longas alamedas do templo entre famílias orgulhosas das suas crianças trajadas de quimonos coloridos. Vemo-las deterem-se para se fotografarem, de dez em dez metros.
Em todos os recantos que se destacassem do cenário natural e durante os vários ritos budistas que antecedem a entrada nos templos: a purificação com a água sagrada das fontes, a oração e doação de ienes que se crê ajudar a obter a benevolência dos deuses e por aí fora.
Assim dita a tradição social e religiosa que, em função da forte psicologia de grupo nipónica, a maior parte dos japoneses faz questão de respeitar.
Recuperamos energias no jardim bucólico de Isuien, famoso pelos cenários de postal, principalmente de Outubro a fim de Novembro, quando as folhas das árvores ganham tons suaves de vermelho e amarelo que combinam com o fundo enevoado da montanha em redor.
Dali, seguimos a zona residencial anciã de Nara Nara-Machi, o pequeno bairro onde habita uma pequena percentagem dos quase quatrocentos mil habitantes da cidade. Lá se sucedem casas térreas de madeira escura, construídas no século XIX, algumas ainda usadas como lares, muitas – identificadas pelos letreiros em caracteres kanji, de origem chinesa – já convertidas em pequenos negócios de artesanato em que os gaijin (estrangeiros) metem o nariz para satisfazerem a curiosidade
Em termos históricos, neste pequeno reduto residencial e mercantil ancião de Nara estávamos nos antípodas da zona moderna em que o comboio nos havia deixado e da avenida Sanjo dori.