O dia mal começou. Key West já entra em parafuso.
Na esquina da South St. e da Whitehead St., a fila de visitantes ansiosos por se fotografarem junto ao monumento do ponto mais a sul dos Estados Unidos continentais aumenta a olhos vistos e gera discussões cada vez mais ridículas.
“Sinceramente… não podem mesmo sair daí? Acham que as pessoas querem ficar com fotos convosco atrás do marco em vez do Mar das Caraíbas?“ indigna-se, em vão, uma adolescente alemã.
O mais curioso é que aquele não é sequer o derradeiro ponto meridional do país. Whitehead Spit, o real, está dentro de um complexo militar.
Para a multidão entusiasmada com o calor e a localização caribenha da povoação, a apenas 151km de Cuba, pouco importa que o monumento colorido e em forma de bala seja apenas mais uma atracção forçada da grande feira turística em que se tornou Key West.
Nesta povoação, ainda assim, marginal, só uma mão cheia de lugares se destaca da panóplia de museus e shows algo bregas. A Casa de Hemingway é uma delas.
O Amor à Primeira Vista de Hemingway por Key West
Estávamos em 1928. Até há algum tempo, Hemingway vivera em Paris num frenesim boémio e criativo em comunhão com artistas de vários países daquela que a escritora Gertrude Stein apelidaria de Lost Generation.
Tinha-se recentemente envolvido com Pauline Pfeiffer e divorciado da primeira das suas quatros esposas, Hadley Richardson. Pauline engravidou. O casal concordou com o regresso aos Estados Unidos. Por essa altura, John dos Passos, um amigo também ele escritor, falou a Hemingway de Key West.
Sempre ávidos por descoberta e aventura, em Abril, Hemingway e Pauline estavam a desembarcar de um cruzeiro para a cidade. Ficaram alojados num tal de Trev-Mor Hotel, cortesia da Trev-Mor Ford Agency que assim os procurou compensar por não ter o carro reservado para a visita, pronto a tempo.
O hotel agradou ao casal que nele se voltou a alojar, durante os dois anos seguintes, nas vezes em que regressaram à cidade. Já Key West, deixou-os extasiados.
Mesmo se integrante do território dos E.U.A., a remota cidade revelou-se um maravilhoso mundo à parte. “É o melhor sítio em que já estive, não importa quando nem onde. Flores, goiabeiras, tamarindos, coqueiros…”
O escritor não resistiu a divergir para as incursões ébrias tresloucadas com que viria a encerrar a maior parte dos dias: “Enfrasquei-me ontem à noite com absinto e fiz uns truques com facas.”
Três décadas após a viragem para o século XX, em plena Grande Recessão, Key West evoluíra para a cidade maior e mais rica da Florida, ainda assim, uma verdadeira última fronteira tropical, habitada por pouco mais de doze mil habitantes, resgatadores de navios, pescadores, industriais e negociantes.
A Alma Tropical e Cubana de Key West
Então, como hoje, Key West ficava mais próxima de Havana que de Miami. Mais de metade dos seus habitantes tinham origem cubana e a cidade era inclusivamente governada por mayors cubanos. Cerca de duzentas fábricas de charutos da cidade tinham donos ou sócios cubanos.
Produziam todos os anos em redor de 100 milhões de charutos. Durante o famoso resgate de Mariel, Key West foi inundada com muitos mais refugiados cubanos. Este novo influxo reforçou a atmosfera latino-americana da cidade. Hemingway não podia desejar mais. Mas havia mais.
A Natureza envolvente era pujante. Como constatamos enquanto percorremos as intermináveis pontes da Overseas Highway, o mar só tem dois tons: ou turquesa ou esmeralda.
Sugeria frequentes pescarias aventureiras de que Hemingway regressaria a exibir enormes peixes – atuns, espadartes e afins – sobre o convés do seu barco “Pilar”. Desafiava-o também ao convívio com personagens locais que Ernest via como quase míticas.
Nos dois anos seguintes à sua primeira visita, os Hemingway regressariam amiúde.
Convite da Lost Generation para uma Casa Habitada do Nada
Convidariam os amigos da Lost Generation para temporadas de pesca durante a Primavera, antes do calor e a humidade atroz dos meses estivais. Fizeram-lhes companhia o responsável por tudo, John dos Passos. Também F.Scott Fitzgerald, Waldo Pierce e outros.
Até 1931, os Hemingway, esses, passaram em Key West entre quatro a seis meses em cheio instalados primeiro num apartamento, depois, numa casa, ambos alugados. Em 1931, Pauline estava uma vez mais grávida. Com a ajuda do tio milionário de Pauline, Gus, que lhes doou 12.500 dólares, o casal comprou uma grande casa no número 907 da Whitehead Street.
Quando a encontraram, estava abandonada e semi-selada por placas de madeira. Esta condição não evitou que Pauline percebesse o seu potencial para um lar acolhedor e arejado.
A Tift House fora construída em 1851 por Asa Tift, um mercante dedicado a resgatar os muitos navios naufragados nas águas repletas de baixios e recifes em redor das Florida Keys, uma sucessão de ilhas e ilhéus em jeito de alpondra que se estendem da ponta sul da Península da Flórida até precisamente Key West.
Asa Tift ergueu-a em estilo colonial francês, com recurso a pedra calcária retirada do local. E ergueu-a bem. A casa sobreviveu a vários ciclones e a sua cave profunda ainda hoje permanece seca.
O tio Gus comprou-a por 8.000 dólares num leilão das Finanças e ofereceu-a aos Hemingways como presente de casamento. Daí em diante, a vida de ambos, em casal e não só, fluiu, como todas, repleta de tormentas e bonanças. Estávamos prestes a desvendar vários dos seus episódios.
Uma Volta Guiada pela Vida Floridense de Hemingway
Uma guia loura com ar e modos abrutalhados reúne o primeiro grupo do dia para a visita guiada da casa. O espaço de cada divisão é deveras contido. Amplifica a voz grave da cicerone que se esforça por enfatizar os episódios mais cómicos ou marcantes lá passados ou em Key West.
Não que precisassem de mais drama que aquele que o estoura-vergas Ernest Hemingway já lhes garantia. Por norma, Ernest dedicava a manhã à sua escrita, algum tempo depois de se instalarem, num estúdio no piso superior de um anexo acrescentado à casa a que acedia em modo de slide por uma corda que instalou entre os dois edifícios.
O seu trabalho foi, em Key West, profícuo. Hemingway lá criou ou completou algumas das obras que o eternizaram: “As Neves do Kilimanjaro”, “A Vida Feliz de Francis Macomber”, o romance “Ter e Não Ter” e “As Verdes Colinas de África”.
Mas, como vimos já, em Key West, Hemingway bebia tanto como escrevia. Contam os guias que, nas noites mais desvairadas, se guiava pelo farol ainda hoje em frente de sua casa, para lá chegar.
O bar favorito de Hemingway era “Sloppy Joe’s”, também nos dias que correm um clássico da cidade, sempre a abarrotar de forasteiros, muitos empenhados em emular ou exagerar as noites loucas de Ernest. Numa dessas noites, o escritor e Russel, uma das figuras do “Sloppy Joe’s”, carregaram à mão um urinol do antro para a vivenda de Ernest.
Colocaram-no junto à piscina que Pauline mandou construir e que ainda serve de bebedouro aos muitos descendentes dos gatos da família. Tanto os gatos como a piscina são atractivos curiosos e incontornáveis da mansão Hemingway. Comecemos pela piscina.
As Avenças Profissionais e as Desavenças Conjugais com a Esposa Pauline
Como seria de esperar, durante o período em que partilhou a casa com Pauline e os filhos, Hemingway ausentou-se, entregue aos mais distintos projectos. Em 1937, mudou-se para Espanha para cobrir a Guerra Civil Espanhola para o jornal norte-americano Alliance.
Lá se apaixonou pela que viria a ser a sua terceira esposa, a colega correspondente de guerra Martha Gellhorn. Ora, há muito que Pauline desejava ter uma piscina na casa de Key West.
Quando a traição do marido lhe chegou aos ouvidos, ou por vingança ou para suavizar a ira, mandou construí-la. A casa toda tinha custado 8.000 dólares. A piscina ficou em 20.000. Tornou-se na única em Key West.
É consensual a versão de que, quando regressou e se inteirou do custo, Hemingway lhe atirou um penny e reclamou: “Pauline, só não gastaste este meu último penny. Mais vale ficares também com ele.”
A moeda permanece encapsulada em vidro entre a piscina e o anexo. A peripécia delicia todos os visitantes. Há que sublinhar que, com o projecto da piscina, Pauline não só terá despendido demasiado do dinheiro do casal como acabou com o ringue em que Ernest se habituara a receber pugilistas de Key West, pagos para contra ele lutarem.
Boxe e Gatos. Muitos Gatos.
Hemingway era um sério aficionado de boxe. Além de combater, arbitrava lutas num saloon denominado Blue Haven, hoje, restaurante. Não custa, assim, perceber porque conquistou o cognome de Papa, The Biggest Daddy of them All. E, no entanto, Hemingway tinha um fraquinho por gatos. Não por uns quaisquer, claro está.
Durante as suas pescarias e convívios com os velhos lobos do mar de Key West, inteirou-se de que os capitães de veleiros faziam questão de ter a bordo gatos com seis dedos. Explicava a lenda que acreditavam que o dedo extra auxiliava aqueles felinos a proteger as embarcações de ratos.
E também que tinham poderes místicos que garantiam aos capitães mares mais calmos, ventos prevalentes e navegações seguras. Fascinado, Hemingway começou a coleccioná-los. Como compensação, cedeu ao capricho de Pauline de ter pavões no jardim.
Hoje, os gatos são mais de quarenta e estão por toda a casa. Deliciam os visitantes mas suscitaram uma forte polémica com o USDA (United States Department of Agriculture), que após queixa de um visitante mais picuinhas, apareceu na casa e exigiu que o museu tivesse uma licença como requerido pelo Animal Welfare Act, a mesma lei que regula os circos, zoos e outros espectáculos com animais.
À boa maneira fundamentalista americana, também exigiu que os gatos da casa estivessem em pequenas jaulas individuais ou que fosse construído um muro mais alto em redor da propriedade ou uma cerca eléctrica em redor, complementado por um vigia nocturno que estivesse de olho nos gatos.
Exigiu ainda que cada um dos felinos fosse mantido com uma identificação. Caso o museu não cumprisse, teria que pagar multas. A casa Hemingway respondeu à boa maneira de Hemingway, sublinhando que a USDA não tinha qualquer autoridade sobre os gatos do escritor. A disputa mantém-se.
Já a contenda de Hemingway com Pauline, terminou de forma abrupta. Em 1939, o escritor mudou-se de Key West, 151 km para sul, para a vizinha Cuba deixando a esposa e os filhos para trás.
Em Cuba, tentou ultrapassar diversos tormentos da sua vida: a saúde deteriorada, em grande parte pelo excesso de álcool, depressões e até alguns acidentes. Lá se familiarizou com o regime de Fidel Castro e escreveu “The Old Man and The Sea” com que veio a conquistar um prémio Pulitzer (1953) e o Prémio Nobel da Literatura (1954).
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