Foi o primeiro despertar madrugador.
Pesado, sonolento, soturno, na noite que teimava em resistir. Partimos do relvado da Willow Lane de Cocoa. Daquela ruela ajardinada, seguimos as coordenadas sem percalços.
Tinham-nos dito que, em dia de lançamento, devíamos chegar bem cedo. Cumprimos o conselho num grau que roçava o insano. Mesmo assim, percorrida a vastidão de floresta sub-tropical e de prados ensopados, quando nos detemos no semáforo da grande alameda do Kennedy Space Center, somos tudo menos pioneiros.
Desligamos o motor. Reclinamos os bancos. Com o despertador activado, dormitamos.
A ideia era entrarmos a tempo de assistirmos ao lançamento do Space X Crew Dragon In-Flight Abort Test, como o nome indica, programado para interromper a sua ascensão e assegurar que, sem danos, a nave pousasse no Atlântico.
O Space X Crew Dragon In-Flight Abort Test que Acabou Abortado
O teste tinha como fim comprovar a segurança da tripulação caso o lançamento oficial tivesse que ser abortado por qualquer razão. Quando despertarmos, apercebemo-nos de que o próprio teste estava enguiçado.
Os painéis electrónicos acima dos pórticos indicavam que o lançamento tinha sido adiado para o dia seguinte.
Segundo apurámos, agitado por um ou dois dias de vento forte, o mar ao largo do Cabo Canaveral, não garantia a integridade da nave, nem a sua recuperação.
A Space X e a NASA contavam que, na manhã seguinte, o vento e o mar amainassem.
Decidimos ficar à descoberta do Kennedy Space Center. Por norma, o centro só abria às nove da manhã. Mas as suas autoridades faziam questão de recompensar o esforço do público dos lançamentos.
De acordo, permitiram-lhe o acesso às instalações duas horas antes.
Entramos. Cumprimentamos com um “salamat” efusivo a funcionária das Filipinas com quem tínhamos falado na tarde anterior, quando levantámos os bilhetes.
À Descoberta do Espaço, no Vasto Kennedy Space Center
Bastam uns passos do pórtico interior em diante para nos confrontarmos com o Rocket Garden, uma espécie de instalação feita de foguetões a apontarem para o céu que parecem saudar os recém-chegados.
Deambulamos entre aqueles prodígios agora de museu, intrigados pelas suas histórias espaciais e abismais.
Lá constava o Mercury Redstone 3 que lançou o sonho americano e em que Alan Shepard levou a bom porto o primeiro voo espacial tripulado dos Estados Unidos, entre vários outros dos sucessivos programas da NASA: o Mercury, o Gemini e o Apollo.
Investigamos as cápsulas tripuladas ali expostas para que os visitantes possam sentir o conforto – ou, na maior parte dos casos, a falta dele – em que os astronautas viajaram para o Espaço.
O sol empinava-se já sobre Atlântico a leste e o Hall of Fame dos Astronautas dos Estados Unidos não tardou a abrir.
No Hall of Fame, encontramos um sortido de momentos e de personalidades determinantes para a ciência espacial, e, claro está, os astronautas que, ao longo das décadas, lhe tinham concedido as suas vidas.
Mas não só.
A Memória Controversa de Martin Luther King no Hall of Fame do KSC
O memorial revelou-se político que bastasse para destacar também Martin Luther King.
Este malogrado activista visitou a Florida por várias vezes, incluindo a região de Cocoa da actual Space Coast e das imediações do Kennedy Space Center. Ali conviveu e partilhou ideais com o pastor influente W.O. Wells.
Numa dessas ocasiões, Wells chegou a escrever a Kennedy e expressou preocupação com o dever que a NASA tinha de contratar também empregados da minoria negra e de outras, algo que até à data estava longe de acontecer.
No seu livro “Where do We Go From Here” de 1967, meio ano após a explosão que matou três astronautas da missão Apollo I num lançamento de teste, Luther King, desafiou os Estados Unidos a darem prioridade à resolução dos seus problemas internos, em vez da conquista da Lua:
“…se a nossa nação pode gastar 35 mil milhões de dólares por ano para travar uma guerra maléfica, injusta no Vietname e 20 mil milhões para levar um homem à Lua, então também pode gastar alguns mil milhões para pôr os filhos de Deus sobre os seus próprios pés, aqui na Terra.”
Por contraditório que possa soar, Wells testemunhou que Luther King expressou o desejo de assistir a um dos lançamentos de foguetões.
Em simultâneo, cerca de um ano após o seu assassínio em Atlanta, as palavras de King nos seus discursos e obras, instigaram manifestações junto ao Kennedy Space Center, numa altura em que a NASA se preparava para lançar o seu Apollo II, a primeira missão tripulada a visar a Lua.
Continuamos a atravessar o Hall of Fame, cada vez mais incomodados com o protagonismo exagerado e até ridículo dado ao heroísmo que os americanos tanto valorizam e que já não parecem conseguir dissociar das suas vidas.
O pavilhão do Hall of Fame termina em tons de azul-cosmos e dourado, num salão com dezenas de perfis dos protagonistas da conquista do Espaço, reflectidos num solo lustroso.
De Autocarro, em Órbita das Instalações da NASA
Deixamo-lo à pressa, disparados para uma doca de embarque, apesar de tudo, bem menos pomposa do Centro. “The Journey Starts Here” dita uma escotilha com visual de “Espaço 1999”.
Do lado de lá, juntamo-nos a uma fila já longa e embarcamos num dos autocarros que percorrem as instalações da NASA, as suas diversas plataformas de ensaios, de lançamentos e afins.
É o próprio motorista que narra a viagem, que nos introduz ao grande edifício quase cúbico da NASA, ao complexo de lançamentos 39B, e ao enorme hangar de montagem dos foguetões e veículos espaciais.
O Programa Apollo e o foguetão Saturn V, uma Dupla de Sucesso
Numa das suas paragens, o autocarro deixa-nos à porta do complexo Apollo/Saturn V. Lá nos impressiona, pela sua dimensão avassaladora, o foguetão Saturn V, mais importante que os demais já que todos os humanos que pisaram a Lua com partida do Kennedy Space Center a atingiram a bordo de um Saturn V.
Ali, de uma ponta à outra, tentamos destrinçar as diversas partes da sua estrutura:
a cápsula Apollo, o módulo lunar, os tanques de oxigénio líquido (LOX), os de combustível e as secções ocupadas pelos três conjuntos de RocketDynes, a começar pelos cinco motores F-1 da base a que uma inesperada proximidade confere um dramatismo especial.
Admiramos também os vários protótipos de fatos espaciais propostos à NASA e os moldes das mãos dos astronautas usados para criar as suas luvas.
Observamos o Lunar Roving Vehicle com o fascínio saudosista de quem gastou muitas horas de infância a jogar “Moon Alert”, um dos primeiros lançamentos (leia-se criação e comercialização de jogos) para ZX Spectrum da empresa Ocean Software.
Já mais a sério, se bem que ainda em modo de simulação, assistimos às operações que viabilizaram o lançamento do Saturn V do programa Apollo 8.
A Alunagem Periclitante de Neil Armstrong e Buzz Aldrin
E, numa outra sala, acompanhamos a viagem lunar que terminou com a alunagem pioneira.
Lá compreendemos melhor o quão periclitante e marginal se provou a sua concretização.
Como Neil Armstrong se apercebeu de que o lugar de contacto programado no computador do veículo correspondia a uma área repleta de rochas.
Como se viu obrigado a assumir o modo semi-automático do “Eagle” e, com o combustível prestes a terminar, o conseguiu pousar numa área relativamente plana de Mare Tranquilitatis.
Experimentamos tudo isto. E muito mais.
Na curta e, por comparação, insignificante viagem de volta no autocarro pela área entre os rios Indian e Banana, o motorista aponta aos passageiros alguns dos aligators com que os funcionários da NASA se habituaram a conviver. Frustrados por aquele súbito regresso às banalidades terrenas, corremos para o complexo do Space Shuttle Atlantis.
No interior, à imagem do que acontecera com o foguetão Saturn V, espantamo-nos com a elegância – bem mais que com a dimensão – deste vaivém espacial que deixava a terra a bruar e a fumegar mas regressava num pouso suave mais planante que o de muitos aviões comerciais.
E que conseguiram furtar-se às piores tragédias do Programa Espacial Americano, os vaivéns Challenger e Columbia.
Uma Simulação Trepidante do Lançamento de um Foguetão Espacial
Conhecíamos bem a última das modalidades. Experimentámos, assim, o que sentiam os astronautas durante os lançamentos dos foguetões.
Quase deitados, amarrados por cintos de segurança em grandes cadeirões, vibrámos e estremecemos como se os gigantescos motores dos foguetões nos tivessem, de facto, a propulsionar.
Apesar de tudo, pensávamos que as descolagens fossem, para os astronautas, experiências mais extremas.
Cumpridas todas aquelas visitas e simulações, o dia no Space Center aproximava-se do fim. Passámo-lo em absoluto deslumbre. Mas não nos esquecíamos da frustração em que tínhamos amanhecido.
De acordo, na madrugada seguinte, repetimos o despertar nocturno.
De Volta ao Space X Crew Dragon In-Flight Abort Test
A Space X ia tentar uma vez mais o Space X Crew Dragon In-Flight Abort Test. Nós, tudo faríamos para o testemunhar.
Em vez de nos dirigirmos ao Space Center, tentamos aproximar-nos mais da área do lançamento. Apontamos à praia de Playa Linda, um desses lugares privilegiados.
Chegados a Titusville, atravessamos a ponte A. Max Brewer. Como receávamos, do lado de lá, a polícia barrava o acesso à Merrit Island que acolhia o Space Center e dava acesso à Playa Linda.
Invertemos rumo. Estacionamos num ponto da margem do Indian River que nos parecia favorável. Fotografamos o raiar do dia. Desligamos o motor, reclinamos os bancos.
Com o despertador activado, dormitamos.
A Ascensão Estratosférica e a Descida Programada Sobre o Oceano Atlântico
Aos poucos, toda a margem se encheu de um público multinacional entusiasta, munido de câmaras e tripés orientados para o Atlântico.
Verificamos os sucessivos anúncios enviados pela app do Kennedy Space Center.
Tudo indicava que o lançamento se iria mesmo realizar.
Por volta das dez da manhã, à hora anunciada, o foguetão Falcon 9 lá surgiu acima da vegetação da ilha de Merrit, com os motores a gerarem um longo feixe incandescente. Subiu até quase o perdermos de vista.
Pouco depois, desfez-se num fogo de artifício estratosférico.
Tinha sido aquele o momento da interrupção do lançamento testado pela Space X de Elon Musk, a empresa privada que, saturados com os gigantescos custos e fracos proveitos da NASA, os Estados Unidos encarregaram de prosseguir com o programa espacial, com foco em Marte e num modo bastante mais económico.
Já imperceptível aos olhos, como às objectivas que possuíamos, a cápsula Dragon da tripulação precipitou-se sobre o oceano.
De acordo com o planeado, a Space X recuperou-a.
Voltou a furtar-se a danos multimilionários.
COMO IR
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