A aurora deu-se demasiado cedo. Desgastados pela longa viagem desde Rangum, pelas sucessivas subidas e descidas à Golden Rock e ao seu pagode sagrado de Kyaiktiyo, não damos sequer pelo raiar.
Despedimo-nos, assim, meio à pressa das colinas de Kelasa e do monte Kyaiktiyo, apontados à aldeia de Kin Pun no sopé.
Cumpridas três horas de uma viagem de autocarro calorenta, atingimos Bago.
Rangum mantinha-se a grande cidade birmanesa. Salvo as aberrações políticas do regime dictatorial do Myanmar que levaram à fundação da insólita Naypyidaw, seria sempre a capital do país. Bago e a sua região, pelo seu lado, escondiam uma ligação histórica com Portugal tão ou mais inusitada. De tal maneira peculiar, que as víamos como incontornáveis.
Quando descemos do autocarro, identificam-nos e saúdam-nos dois jovens, estimávamos que os guias que tínhamos incumbido de nos mostrarem o lugar. Prestáveis, ajudam-nos com as mochilas. Faltava-lhes, todavia, um carro ou carrinha. De acordo, equilibram-se ao volante de duas motoretas, com a nossa maior bagagem aos pés.
Passamos primeiro pelo lar que usavam como base das suas operações. Lá nos arrumam as mochilas. Lá nos põem à vontade, nos servem chá e connosco conversam até sentirem que tínhamos recuperado do castigo rodoviário da manhã.
Maun, o líder da dupla fala um bom inglês. Muito melhor do que nos ocorreria esperar. Quando elogiamos o seu à vontade na língua, suscitamos-lhe uma inesperada explicação. “Pois, é normal. É que eu vivi na Irlanda algum tempo. Conheci cá uma visitante irlandesa e envolvemo-nos.
Ela acabou por engravidar. Ainda estive a viver com ela perto de Dublin quase meio ano. Mas, depois, não conseguia encontrar trabalho. Sentia-me cada vez mais desenraizado e desmoralizado. Não queria ficar apenas em casa a cuidar do Liam (filho de ambos) e a viver às custas dela. E voltei. É lindo o Liam. É branco mas tem feições asiáticas. Tenho muitas saudades. Em especial dele.”
Maun esforça-se por disfarçar a comoção. Quando o consegue, lança-nos o repto de sairmos à descoberta da cidade. Cada um de nós, atrás de um deles, nas suas motas.
Uma Descoberta Motorizada de Bago
Sem capacetes mas.. devagar, devagarinho. A uma velocidade que nos permitia apreciar a cidade e, ao mesmo tempo, ouvirmos as explicações que os cicerones nos gritavam.
À medida que circulamos, reforçamos a noção de que as motas não tinham sido má ideia.
Bago dista uns meros 70km de Rangum. A estrada número 1 que liga o nordeste do Myanmar à grande cidade birmanesa atravessa-a. Com frequência, entope-a um trânsito sortido e garrido. Aqui e ali, autocarros, tanto locais como regionais, demoram o seu tempo a largar os passageiros. E uma frota inquieta de motociclos e triciclos percorre-a para cá e para lá, em disputa de potenciais clientes.
Nas primeiras horas da tarde, o calor tropical cozinha o fumo libertado pelo trânsito. Gera uma atmosfera opressiva que torna as distâncias de monta entre os monumentos chave da cidade ainda mais dolorosas.
Monumentos não faltam em Bago. Budistas. Todos eles imponentes e dourados.
Do terraço da casa de Maun, víamos o topo dos seus pagodes destacados acima de uma floresta densa, algo enevoada em que predominavam os coqueiros. Estrada 1 acima, encontramo-los a encerrarem grandes alamedas com dois sentidos.
Shwemawdaw e Mahazedi: Pagodes e Monumentos Grandiosos do Budismo Birmanês
Confrontamo-nos primeiro com o Shwemawdaw Paya, o pagode mais alto de todo o Myanmar com uns impressionantes 114 metros e, à data, com a sua excentricidade redobrada por uma rede densa de andaimes de bambu que a cobria do primeiro quarto, até ao seu zénite afiado.
Conseguíamos distinguir alguns trabalhadores destacados no exterior dessa rede, entretidos a recuperar a integridade da folha de ouro espessa que cobria o templo e que o tempo tinha comprometido.
Prosseguimos. Entramos no complexo de um pagode concorrente, o de Mahazedi, a sombra apoderava-se já da sua base.
Àquela hora, não víamos sinal de turistas. Só uns poucos monges e crentes budistas caminhavam em redor da base, ou queimavam incenso e oravam nos sub-pagodes que a salpicavam.
Dessa sombra inexorável, conseguíamos admirar, em todo o seu fulgor, a luminosidade resplandecente do pagode branco e amarelo que contrastava com o céu desprovido de nuvens, de um azul azulão profundo.
Além de branco e amarelo, também este segundo pagode era dourado. O ouro abundava sempre, qualquer que fosse o monumento ao budismo da nação, como parecia abundar por toda a velha Birmânia.
Uma Viagem no Tempo de Bago e Pegu
Essa preciosa ubiquidade já vinha de longe, da era áurea do reino de Pegu, assim continuam a chamar a estas paragens e à cidade em que cirandávamos, os portugueses.
Uma das razões porque ali estávamos era a história incrível da dinastia portuguesa dos reis de Pegu. A nosso ver, meritória de uma longa-metragem sem limites de orçamento. Concentremo-nos no que seria a sua trama.
Bastaram alguns anos após o estabelecimento dos portugueses na costa ocidental da Índia para os descobridores e mercadores lusos se aventurarem nas águas e litorais mais próximos.
Os dos reinos do sul do actual Myanmar não eram controlados nem por Goa nem pela Coroa portuguesa detida por Felipe I de Portugal (2º de Espanha).
Tão pouco outros domínios influentes da Índia lá mandavam.
Baía de Bengala e Reinos da Birmânia, um Manancial que os Portugueses Conheciam
Como tal, capitães, mercadores e outros empresários portugueses da fortuna podiam ali operar nas suas lides comerciais e mercenárias, com frequência, ao serviço dos monarcas destas paragens, sem terem que prestar contas a Goa ou a Lisboa.
Os portugueses conheciam, havia muito, os reinos de Pegu, de Ava, de Arracão e o emergente e cada vez mais poderoso de Toungou. Mantinham-se de olho no xadrez político-militar da zona, atentos a como dele podiam beneficiar.
Chegamos a 1599. Há muito que Min Raza Gyi, o rei de Arracão, (Xilimixa para os portugueses) espreitava uma oportunidade de capturar o reino vizinho e principal rival de Pegu.
Pegu resistia há décadas à integração no império birmanês mas, por essa altura, Min Raza Gyi estimou que o grau de instabilidade e fraqueza do inimigo tinha aumentado o suficiente. Decidiu atacar e tomar a cidade capital homónima.
Por forma a garantir o sucesso da expedição recrutou um corpo de mercenários portugueses, de que se destacava Filipe de Brito e Nicote, desde 1590, comerciante de sal na ilha de Sundiva, entre outras ocupações, como deixa transparecer o seu nome, filho de pai francês e mãe portuguesa. Acompanhavam-nos ainda alguns missionários jesuítas.
Foram estes que narraram e registaram os acontecimentos para a posteridade.
Os Serviços Mercenários de Filipe de Brito e Nicote e de Salvador Ribeiro de Sousa
O padre Manuel de Abreu Mousinho descreveu na sua crónica “Breve Discurso em que se Conta a Conquista de Pegu na Índia” que, por essa altura, um outro aventureiro português, Salvador Ribeiro de Sousa, navegava de regresso a Portugal determinado a exigir à Coroa recompensa pelos seus serviços e de dois irmãos seus já falecidos no Oriente.
Uma meteorologia demasiado agreste forçou-o a subir no Golfo do Ganges. Ao tomar conhecimento do que se passava em Pegu, Salvador Ribeiro de Sousa juntou-se a Filipe de Brito e Nicote e passou a co-comandar as tropas do rei de Arracão na conquista de Pegu.
Os portugueses lideraram os arraconeses até à vitória. Como recompensa, Xilimixa concordou que construíssem uma feitoria no porto de Sirião, hoje, uma povoação a sul de Rangum, situada no local em que o rio Pegu se junta ao Yangon.
Banhadala, um súbdito de Xilimixa interpôs-se ao acordo. Esta sua interferência despoletou uma longa saga conflituosa entre os portugueses e o reino de Arracão, em termos militares comandado por Banhadala.
A Longa Saga do Conflito com Arracão
Banhadala começou de imediato a fortificar Sirião e proibiu o acesso dos portugueses, com excepção para Belchior da Luz, um frade dominicano. Filipe de Brito e Nicote reagiu.
Antes que os trabalhos da fortaleza avançassem demasiado procurou o apoio de três outros capitães.
Dois deles foram João de Oliva e Paulo do Rego. Encontrou o terceiro em Salvador Ribeiro de Sousa que viu bastante mais interesse e potencial ganho neste desafio bélico que no retorno à Metrópole.
Em Junho de 1600, com recurso a máquinas de fogo recém-construídas, os mais de cinquenta homens portugueses atacaram Banhadala de surpresa. Queimaram-lhe a feitoria. Logo, passaram à fortaleza incompleta.
Mataram tantos súbditos de Banhadala que obrigaram uma multidão em pânico a refugiar-se numa ilha próxima.
Na mó de cima, os portugueses, fortificaram-se na fortaleza e aterrorizaram parte dos súbditos de Banhadala que nela se mantiveram.
Ao tomar conhecimento deste inesperado desfecho, o rei Min Raza Gyi decidiu socorrer Banhadala. No entanto, nos anos que passara na região Filipe de Brito e Nicote tinha consolidado um poder de manipulação sobre Xilimixa, considerável.
Em debate com o monarca, convenceu-o de que Banhadala não passava de um traidor oportunista, de que ele próprio resolveria o conflito com os portugueses e trataria de os controlar.
Xilimixa acedeu. Mas a novela estava longe de ficar por aqui. Filipe de Nicote partiu para Goa, ofereceu a nova praça-forte ao Vice-Rei de Goa. Multiplicou ainda embaixadas a governantes de domínios vizinhos e desafiou-os a aliar-se a Portugal na conquista de Pegu.
A Primeira de Cinco Investidas Frustradas do Comandante Banhadala
Nesse hiato, Salvador Ribeiro de Sousa ficou no comando de Sirião, e Xilimixa à mercê das intrigas contra os portugueses. Passado pouco tempo, decretou que tinham que deixar Pegu para sempre. Para o garantir enviou Banhadala, à frente de uma enorme frota e de seis mil homens. Salvador Ribeiro de Sousa possuía apenas três navios e trinta homens.
A supremacia numérica de Banhadala pouco ou nada o ajudou. Salvador Ribeiro de Sousa e os portugueses devastaram as forças de Arracão, capturaram quarenta dos seus barcos e fizeram debandar os atacantes.
Este foi apenas o primeiro dos ataques de Arracão a Sirião, sempre com Banhadala no comando. Mesmo se, de início, a supremacia numérica de Banhadala se provava avassaladora, os quatro seguintes também foram rechaçados por Salvador Ribeiro de Sousa.
A cada derrota de Banhadala e dos arracaneses, a fama de invencibilidade de Salvador Ribeiro de Sousa na região só aumentava.
E mais ainda quando o capitão português levou a melhor sobre um tal de Rei Massinga da província de Camelan. Saturados de tanta destruição, ao constatarem o poderio dos portugueses, as gentes de Pegu optaram por a eles se aliarem. Ficou para a história que reclamaram que Filipe de Brito e Nicote para rei de Pegu.
A Subida ao Trono de Pegu Forçada de Filipe de Brito e Nicote
Como este então se encontrava ausente, Salvador Ribeiro de Sousa aceitou o cargo em seu nome. Quando Filipe de Brito e Nicote voltou, ocupou, por fim o trono, e retomou a sua sempre atarefada agenda diplomática.
Mais tarde, Salvador Ribeiro de Sousa retomou a viagem de regresso a Portugal que interrompera em 1600. Terá passado os seus derradeiros dias na sua terra minhota natal.
O rei de Arracão, esse, teve que se conformar com a nova e dolorosa realidade do Reino Português de Pegu.
Há algum tempo que os projectos de Filipe de Brito e Nicote via as suas pretensões validadas e apoiadas pelo Vice-Rei de Goa e até por Filipe II de Portugal. De tal maneira que o monarca lhe atribuiu o título de fidalgo, e armado Cavaleiro da Ordem de Cristo.
Por Fim, a Concretização da Feitoria de Sirião
Assim recompensado, Filipe de Brito e Nicote regressou a Sirião e reergueu a Casa da Alfândega. Dai em diante, obrigou todos os navios que passavam pela costa de Pegu a por lá passarem e a pagarem tributo.
Ano após ano, Sirião e Pegu enriqueceram Filipe Brito e Nicote e, assim se estima, Goa e Lisboa.
Sopravam ainda estes bons ventos, quando os sempre insatisfeitos portugueses decidiram tentar expandir o seu reino.
Em 1610, Anaukpetlun um rei do norte, tinha já reunido a maior parte da Birmânia sob o seu domínio. O reino de Taungu resistia. Desagradado, Anaukpetlun atacou e conseguiu a rendição de Taungu. E designou um seu primo, Natshinnaung, vice-rei desse reino. Natshinnaung ficou ressentido com a insignificância do cargo.
Em jeito de vingança, aliciou Filipe de Brito e Nicote a tomar Taungu. Filipe de Brito e Nicote não se fez rogado. Conseguiu o apoio dos siameses e, nessa conveniente aliança, em 1612, rumou a Taungu. A conquista falhou. Natshinnaung acompanhanhou Filipe de Brito e Nicote a Sirião.
A Vingança do Rei Birmanês Anaukpetlun e o Fim do Reino Português de Pegu
O poderoso rei Anaukpetlun reagiu com fúria a condizer. Em 1613, Anaukpetlun cercou Sirião. Após um mês de cerco conquistou-a. Vingativo, empalou Filipe de Brito e Nicote.
Apesar deste seu fim atroz, o primeiro rei português de Pegu é ainda conhecido na história da Birmânia como “Nga Zinga”, o bom-homem. Quanto a Natshinnaung, nos últimos dias do cerco aceitou tornar-se Cristão e baptizou-o um padre de Goa.
Natshinnaung recusou ainda o repto do primo que lhe ofereceu perdão, contra um juramento de aliança. E celebrizou-se a resposta desdenhosa de Anaukpetlun ao decretar a sua execução: “Preferes ser o escravo de um estrangeiro que servir um rei da tua própria raça”.
Perdeu-se, assim, aos trinta e quatro anos, aquele que os birmaneses consideram um dos principais de poesia clássica yadu da sua história, criador de poemas de amor mas também militares, em que descrevia com elegância os soldados, as tropas montadas em elefante, entre outros.
Anaukpetlun escravizou ainda os portugueses e mestiços bayingyi, que tinham sangue português e asiático. Mais tarde, estes bayingyi passaram a servir os monarcas birmaneses.
Já o Reino português de Pegu, teve um fim súbito e dramático, se o compararmos com a tomada persistente e gradual dos portugueses. Durou uns módicos mas intensos treze anos.
A destruição de Sirião às mãos de Anaukpetlun provou-se tal que pouco ou nada do legado português subsistiu. Sabe-se que existia uma igreja no interior da fortaleza que foi reconstruída e de novo arrasada durante um ataque mais recente.
Tal como continuámos a comprovar, repleta de expressões majestosas e coloridas do budismo, a Pegu dos dias de hoje nada ostenta de lusitano. Até ao fim da tarde, admiramos outros pagodes imponentes. E, na sequência, o buda refastelado de Mya Tha Lyaung.
Deixamos Bago por volta das seis da tarde, pouco depois do pôr-do-sol, limitados pelo horário do comboio destinado a Rangum. Em vez das 18h, a composição deu entrada na estação de Bago às 19h. E, em vez de entrar em Rangum às 21h, entrou às 22h.
Nos menos de 70 km de percurso sobre carris, deu-nos a impressão que a composição nunca chegou a ultrapassar os 35 km/h. Tal como o Buda refastelado de Mya Tha Lyaung, o serviço ferroviário daquelas paragens revelou-se anestesiante.
O mais contrastante possível com a azáfama conquistadora e regente dos reis portugueses de Pegu.