Despertamos tarde. Partimos a más horas decididos a parar sempre que o justificasse o caminho.
Passamos ao largo de Nikolaevsk. Interrompemos a viagem, pela primeira vez, em Ninilchik, uma povoação fundada por colonos russos, em 1820, quarenta e sete anos antes dos seus governantes terem vendido o Alasca aos Estados Unidos por 7.2 milhões de dólares num dos negócios mais desastrosos feitos pelo país dos Czares.
Pouco tempo depois da transacção, os exploradores norte-americanos descobriram ouro em várias partes do estado. Bastaram alguns anos para a riqueza extraída pelos americanos dos filões e rios do estado suplantar o valor despendido.
Após a passagem do vasto território para a posse dos americanos, nem todos os russos partiram. Os que ficaram, preservam boa parte da sua cultura.
Famílias inteiras partilham chá de grandes samovares seculares, guardam fatos tradicionais russos em que posam para fotografias memoráveis, junto de grandes matrioskas coloridas.
A sua fé cristã, é Ortodoxa, claro está. Como o são as suas várias igrejas de madeira com cruzes de oito braços, decoradas com painéis dourados-coloridos dos santos que a comunidade louva.
Desviamo-nos da Sterling Highway em busca da igreja russa local. Encontramo-la na imediação de uma falésia, virada para o mar e cercada por uma vedação branca, de madeira.
Mais que a religiosidade, impressiona o significado histórico da visão.
Malgrado a arquitectura eslava do edifício principal, num pequeno cemitério subsumido entre a vegetação, misturam-se cruzes ortodoxas com católicas, estas, acompanhadas de bandeiras dos Estados Unidos da América.
Como ali se provava, a convivência de habitantes das duas nações verificou-se durante bastante tempo.
E assim continua muito depois da retirada diplomática da Rússia. É, este, aliás, um dos aspectos mais fascinantes da vida do sul do Alasca.
Os Rios de Salmões que Irrigam o Alasca em Tempos Russo
Prosseguimos para norte. Passamos por outras localidades de origem russa como a pequena, quase imperceptível Kasilof, baptizada segundo o rio que por ali passa e desagua mais à frente.
Em Junho e Julho, um exército de pescadores oriundos das redondezas e de outras partes mais longínquas do Alasca reúnem-se de ambas as margens. Enquanto a migração dos cardumes o permite, competem entre eles e com as águias pesqueiras e pigarros pelos espécimes de salmão, mais acessíveis que nunca sobre os baixios em que o rio se espraia.
Ali, os salmões ainda vão no início de uma viagem fluvial que, a completar-se, os levaria bem mais a montante do Kasilof, quem sabe se até ao grandioso lago Tustumena.
Por estes lados, a paisagem mais próxima da estrada é dominada por florestas de coníferas baixas e de aspecto frágil. Não chegam a atingir alturas mais dignas devido ao subsolo quase sempre gelado em que assentam.
Na distância, destacam-se os cumes da cordilheira Kenai, coroados de branco pelo gelo mais persistente.
Pela Sterling Highway Acima
Segue-se Soldotna. Logo, Sterling. Em Sterling, chama-nos a atenção um outdoor gráfico. Dele se destaca uma grande faca de punho amarelo e vermelho. Projecta-se da faca, uma bandeira americana star-splangled esvoaçante.
Um painel abaixo apresenta-nos o Walt & Connies Knives, o negócio de beira da estrada deste casal, bem posicionada para servir os pescadores, os caçadores e os alasquenses em geral com o que mais falta lhes faz: facas de caça, facas de filé, facas de cozinha, facas alasquenses unu e facas Campbell.
Além destes tipos todos de facas, o casal anuncia ainda que as afia e que vende currais para renas. Por azar, à hora a que passámos à sua porta, o estabelecimento do casal estava fechado. Não podíamos esperar pela hora do seu regresso, sem sequer termos a certeza de que regressariam.
Após vários desvios que incluem pausas estratégicas em Soldotna, Cooper Landing e Moose Pass, deixamos por fim, a Sterling Hwy. Apontados a noroeste, ao fundo bem fundo do braço de mar de Turnagain, que se estende desde a ainda longínqua cidade de Anchorage.
Por Fim, a Revelação da Esquiva Whittier
Explorados todos os cantos da cidade e as redondezas, damos início a nova etapa. Antes do regresso a Anchorage impõe-se a visita a uma das povoações mais surreais de todo o estado: Whittier.
Só os interessados pela história bélica do mundo o sabem. Durante a 2a Guerra Mundial, além de Pearl Harbor, os Estados Unidos foram atacados pelos japoneses no seu 49º estado.
O infortúnio calhou a Dutch Harbour e ao arquipélago aleuta, a longa cadeia de ilhas na extremidade da Península do Alasca, mais próxima do território nipónico que qualquer outra parte dos Estados Unidos.
Confrontados com a necessidade de construir uma base militar secreta, os responsáveis do exército acharam o lugar ideal, ali, de frente para o Canal Passage, cercado pelas montanhas íngremes em redor, cobertas por gelo e por nuvens densas na maior parte do ano.
Num ápice, tornaram-no um esconderijo bélico sofisticado, dotado de um porto e caminho-de-ferro. Durante a época alta turística, esse mesmo porto recebe agora os grandes navios cruzeiro que percorrem a costa ocidental do Alasca, de Anchorage até as diversas povoações do Cabo de Frigideira alasquense. Capital Juneau incluída.
Na altura chamaram-no de Camp Sullivan. Em 1943, Camp Sullivan já era usado como o porto de entrada das forças dos Estados Unidos da América no Alasca.
Por forma a assegurar o acesso por terra, foi aberto um longo túnel, que é, ainda hoje, uma das maravilhas da engenharia do Alasca.
A Génese Bélica da Povoação, em Plena 2ª Guerra Mundial
Malgrado o propósito da sua fundação e o visual de grande bunker que ostenta, Whittier tomou de empréstimo o nome de um glaciar imponente nas redondezas. Em 1915, esse glaciar, foi baptizado em honra do poeta americano John Greenleaf Whittier.
No fim de Março de 1964, ainda em plena ocupação militar, Whittier viu-se chocalhada pelo tremor de terra de Sexta Feira Santa, um dos eventos sísmicos mais poderosos e destrutivos verificados no Alasca, com uma magnitude de 9.2 graus, gerador de diversos maremotos ao longo da costa Oeste dos Estados Unidos mas que, apesar desta intensidade, só fez treze vítimas.
Os militares ocuparam Whittier até 1968, ano em que a abandonaram e aos seus estranhos edifícios.
Com a afirmação do turismo estival, mesmo entre cordilheiras e glaciares, a cidade fantasma – entretanto colonizada por indígenas – tornou-se numa atracção alasquense à parte, com importância reforçada por se ter tornado numa escala do Alasca Marine Highway.
Só quando chegamos à entrada do Anton Anderson Tunnel, descobrimos que não permite a viagem simultânea aos dois sentidos, que o acesso só é possível de hora a hora. Dedicamos os 40 minutos que faltam às rádios regionais e a apreciar a paisagem glaciar circundante.
Quando o sinal verde finalmente cai, prosseguimos pelo escuro. Levamos quinze minutos a atravessar o longo túnel. Até que, do outro lado da montanha, damos de caras com um refúgio de visual cimentado, em tudo idêntico a tantos outros que a Guerra Fria viria, mais tarde, a gerar.
Os Inusitados Buckner Building e Torres Begich
Pela dimensão e peso arquitectónico, destaca-se do casario, o Buckner Building que não resistimos a explorar. A determinada altura, parecia aos moradores tão vasto e completo que o tratavam por “uma cidade debaixo de um telhado”.
Até 1968, habitaram ali mais de 1000 pessoas, na maioria ao serviço do exército dos EUA. Hoje, o edifício não é mais que um bunker habitacional abandonado ao tempo e à vegetação, com a companhia de diversos carros amolgados e enferrujados.
Destino diferente tiveram as Torres Begich. Com catorze andares e um aspecto civil de prédio suburbano, logo após a
desmobilização, foram ocupadas por indígenas da região e por alguns imigrantes que se instalaram nos cento e cinquenta apartamentos de dois e três quartos. Várias famílias dependentes do Alasca e funcionários civis foram também para lá deslocados.
As Torres Begich abrigam actualmente cerca de 80% dos duzentos e poucos habitantes de Whittier. No subsolo, um labirinto de túneis liga os edifícios a escolas e lojas.
Protegem os moradores das intempéries. Poupam-lhes o tempo perdido a retirar neve das entradas das suas casas e das estradas, durante os intermináveis meses frios.
Com o acumular das décadas, esta nova estrutura habitacional deu origem a uma sociedade única, semi-isolada do mundo exterior pela localização e pela distância, pelo menos enquanto o Verão e os turistas curiosos não chegam.
Um Abrigo Militar, em Plena Rota Indígena Chugach
A zona em que as autoridades americanas instalaram Whittier foi, em tempos, rota de viagem dos nativos Chugach, sempre que seguiam no caminho do imenso Prince William Sound.
Anos mais tarde, com a chegada dos exploradores e russos e americanos e de prospectores de ouro americanos durante a Febre do Ouro do Klondike, uma multidão de forasteiros metediços e desrespeitadores das origens dos Chugach, passaram também a usá-lo.
Conscientes de que Whittier se tratava de um exemplo derradeiro de uma cidade militar furtiva norte-americana, absorvemos até ao último minuto a sua estranha beleza ou, melhor dito, estranheza.
No tempo de que dispúnhamos foram poucos os moradores que encontrámos. “Por esta altura estão todos no trabalho no terminal petrolífero, os miúdos na escola e muita gente anda por Anchorage” afiança-nos John Kerry o proprietário de um loja que vendia de tudo um pouco.
Mil e duzentos quilómetros e nove dias depois, estávamos prestes a terminar o circuito planeado, rendidos à existência peculiar da Península Kenai, entusiasmamo-nos a projectar um regresso invernal.
Afinal, poucos lugares são mais recompensadores que lugares fora da caixa como Whittier onde a vida é extrema e continua por domar.