A Madeira e os túneis incontáveis que a perfuraram e percorrem num fascinante mundo subterrâneo paralelo na base das suas montanhas exuberantes: não há como lhes fugir.
Vencida nova sequência de quilómetros nesse submundo, os correspondentes à linha quase recta entre o Jardim do Mar e o Paul do Mar, a estrada VE7 deixa-nos logo acima do casario longilíneo que compõe a última das povoações.
A via ER223 que dá continuidade ao túnel, prova-se também ela um feito de engenharia rodoviária, encaixada como está no sopé de algumas das falésias mais elevadas e íngremes do sul da ilha, tendo em conta que, até ao fim dos anos 60, só se chegava ao Paul do Mar de barco.
E que nos trinta anos seguintes era uma estradinha sinuosa, íngreme e traiçoeira que lá permitia chegar por terra.
Uns metros de luz resplandecente para diante, cortamos para a Rua da Igreja.
Damos de caras com um miradouro avarandado, com o Atlântico a banhar o litoral repleto de calhaus basálticos com uma ternura que o litoral do norte não sente nem em sonhos.
A Chegada Luminosa a Paul do Mar
Por alguma razão a rua em que nos detivemos recebeu tal nome. Viramos as costas ao miradouro e ao mar. No plano de vista oposto, uma igreja com visual futurista parecia desafiar a sumptuosidade geológica verde-ocre das escarpas.
A igreja de Santo Amaro, padroeiro da freguesia, tomou o lugar de uma capela modesta mas que desempenhou o papel de sede da paróquia local, instituída nos últimos dias de 1676, demolida no ano da revolução dos Cravos.
A cruz arrojada do novo templo destaca-se da nave. Aliás, da laje calçada de que a admiramos, dá-nos a ideia de que está prestes a descolar para o Espaço.
Espreitamos a Travessa do Serradinho que dali se estende, delimitada por um casario que tem ar de ser o mais antigo das redondezas. Logo, regressamos ao carro e à ER223.
Por umas dezenas de metros apenas.
A Marginal Social que Abriga as Famílias que Resistiram à Emigração
A extensão moderna e alongada do Paul do Mar exige-nos novo desvio em direcção ao oceano. Cruzamos um dos bananais mais extensos que vimos na Madeira, a amadurecer sob o calor daquela zona, diz-se que a mais solarenga e abafada da ilha.
Passamos ao lado do cemitério da povoação. Após o que entramos na sua extensa marginal, delimitada a sul por um paredão que a protege das tempestades.
E, a norte, por casas bem mais recentes, com perfil de bairro social, habitadas em boa parte por descendentes numerosos dos pescadores que – decorriam os anos 60 – resistiram a emigrar para as Américas, dizem os registos que com grande incidência no Panamá e a reforçar a já impressionante diáspora madeirense em redor do mundo.
Mesmo assim, nessa década, os habitantes de Paul do Mar diminuíram de mais de 1800 para 900, um número próximo ao da população de hoje.
Cada casa por que passamos abriga uma complexa expressão de vida, com sangue de pescadores – não fosse o Paul do Mar – um dos mais importantes polos piscatórios da Madeira.
E o Fundo do Paul, o Domínio Absoluto da Diversão
Com o tempo e a benesse do clima, mais que lugar de celebrações religiosas e populares frequentes, o Paul do Mar tornou-se uma espécie de povoação sempre em festa.
Os surfistas descobriram as ondas que, na altura certa do ano, ali se formam. Chegaram e procuraram lugar onde ficar.
Aos primeiros alojamentos, bares e outros negócios, seguiram-se vários mais, a contar com pequenas iniciativas de caminhadas, desportos náuticos e avistamento de golfinhos e baleias.
Os bares, em particular, aumentaram a olhos vistos. Hoje, sobretudo em períodos de férias e junto aos fins de semana, o paredão em frente a estes estabelecimentos mantém-se repleto de jovens ávidos por partilharem o sol, a boa-disposição e as peripécias meritórias do espanto alheio.
Uma Viagem Gastronómica e Cultural chamada “Maktub”
É neste espírito que damos entrada num dos estabelecimentos incontornáveis de Paul do Mar, o restaurante pré-destinado, descontraído e garrido “Maktub”.
Fábio Afonso põe-nos à vontade. Serve-nos um dos pargos mais suculentos e saborosos que degustámos até hoje, empratado com azeite e pétalas aromáticas, acompanhado por palitinhos de cenoura e courgette, arroz integral e cubinhos de batatas fritas. Jantamos cercados de mensagens deixadas por convivas de todo o mundo no mural improvisado das paredes.
Por mapas e outros elementos alusivos ao nosso âmbito preferido, o das viagens.
Fábio conta-nos que o seu próprio “Maktub” é uma espécie de jornada de vida, influenciada por distintos universos, o do mar e do surf, o da música, o das viagens e por aí fora. “Sabem, isto já corre na família.
Neste preciso momento, tenho o meu pai a dar uma volta ao mundo de veleiro. Levou a bordo umas quarenta garrafas de vinho da Madeira para oferecer onde ancorasse.”
Fábio Afonso e os irmãos levam a cabo outras empresas. São, não tarda há vinte anos, organizadores do Maktub Soundsgood, um festival de música virado para o reggae e para o mar.
Com o sol quase a assentar no oceano, abreviamos o jantar e desculpamo-nos a Fábio por isso.
Mesmo a partir do muro logo em diante ao “Maktub”, para trás e para a frente, é para o mar que nos viramos.
Com o ocaso raptado por um rodapé de nebulosidade que provinha do norte da ilha, decidimos antecipar o regresso à estrada. À ER223, claro está.
O Caminho Deslumbrante para a Ponta do Pargo
Mais destemida e pitoresca que nunca, a via fez-nos ziguezaguear pela falésia acima.
Assim mesmo e sem pressas, levou-nos a terras mais altas da Madeira: Fajã da Ovelha, Lombada dos Marinheiros e, meia-hora depois, ao destino desse fim de dia, o cabo finisterra madeirense da Ponta do Pargo.
Pelo caminho, não conseguimos resistir às sucessivas vistas do casario de Paul do Mar e do seu bananal prolífico a preencher a base da encosta.
Detemo-nos ainda para admirarmos o percurso tresloucado da própria via, feito de meandros inclinados, alguns deles abertos por pequenos túneis escavados na rocha, em que a dimensão dantesca dos penhascos reduzia os carros a um quase nada.
O Abrigo Inspirador da Casa das Levadas
Atingida a Ponta do Pargo, instalamo-nos nas Casas da Levada, um turismo rural inspirador que resultou de uma recuperação harmoniosa e sustentada de vários palheiros tradicionais, edifícios de pedra rústicos em que as famílias do campo guardavam os seus vimes.
Hoje, renovadas com uma simplicidade encantadora, as casas mantêm-se nas suas posições, sobranceiras face a campos cultivados, à vila e ao mar que banha o vértice ocidental da ilha, próximas de levadas que sulcam a floresta de laurisilva endémica da Madeira.
Por muita modernidade talentosa que tenha acolhido – caso ainda dos edifícios do Centro Cívico da povoação e da calçada axadrezada em que assentam – a Ponta do Pargo, como a Ponta de São Lourenço oposta – terá sempre a origem histórica secular que lhe granjearam os pioneiros destes confins ocidentais da Madeira.
O Pargo Superlativo na Origem do baptismo Ponta do Pargo
Narrou o historiador Gaspar Frutuoso que, o baptismo de Ponta do Pargo proveio da navegação de Tristão Vaz Teixeira e de Álvaro Afonso que, malgrado a perigosidade do mar, ali terão conseguido pescar um grande pargo, o maior que tinham visto, isto, alguns anos antes da fundação da povoação, que se estima da segunda metade do século XVI.
Na manhã seguinte, estreamo-nos numa outra estrada antiga e sinuosa do oeste da Madeira, a ER-101, que sobe no mapa rumo a Porto Moniz e à costa norte da ilha.
Pelo caminho, tabuletas que indicavam um miradouro e um teleférico, aliciaram-nos para o limiar estonteante de Achadas da Cruz, quase 500 metros acima da fajã da Quebrada Nova, ambas sobre as coordenadas em que o sul e o norte da Madeira se encontram, vertiginosas e ventosas a condizer.
A Descida Vertiginosa de Achadas da Cruz à Quebrada Nova
Debruçamo-nos sobre a vedação do miradouro. Espreitamos a orla de terra que, lá em baixo, enfrenta o grande Atlântico, os muros, murinhos e edifícios erguidos pelos colonos que, numa ilha montanhosa como a Madeira, acharam por bem aproveitar aquela terra, tão fértil como extrema.
Fotografamos a descida estonteante de um teleférico e a subida complementar do outro. Questionamo-nos se as rajadas que sentíamos intensificar-se não abanariam demasiado as cabinas.
Apreensivos, esclarecemo-nos com o funcionário da bilheteira. “Ó amigos, sim está a aumentar um pouco mas olhem que isto já aqui está há muitos anos e nunca tivemos acidentes. Estão a ver aquelas luzes? São elas que reagem ao vento, por assim dizer. Com a verde, está tudo OK. Com a vermelha, o sistema faz as cabinas pararem. Neste momento, está amarelo. Desçam sem medos.”
Mesmo algo receosos de ficarmos presos a meio da descida, com a cabine a embalar-nos, como aconteceu, em 2018, ao Presidente da Junta, seus familiares e a mais seis estrangeiros, é o que fazemos.
Aos poucos, o aproximar da cabine faz sumir as linhas e formas da Quebrada Nova. A umas meras dezenas de metros do solo, o vento enfurece-se. A cabine oscila mas completa o percurso sem que luz vermelha a barrasse.
Quebrada Nova: um Reduto Agrícola Improvável
Desembarcamos. Deslumbramo-nos com a enseada rochosa à direita, batida pelo vendaval furioso do Norte que, ali, quase nos fazia levantar voo. Percorremos o caminho que percorre a franja da fajã, na direcção contrária, entre os curralinhos de vinho, outros cultivos e a beira-mar pedregosa.
Enquanto avançamos, testemunhamos o dia-a-dia inusitado do lugar. Uma família recém-chegada transportava compras da base do teleférico para o seu palheiro-moradia.
Um morador, por sinal estrangeiro, saiu do seu palheiro de balde na mão, fez-se à rebentação com cuidados redobrados, encheu-o e regressou a casa.
Sem surpresa, a Quebrada Nova nunca teve população fixa. Foi sempre uma espécie de anexo agrícola que os habitantes das imediações visitavam quando necessário para manter os seus cultivos.
Com o advento do turismo, no entanto, tornou-se frequente alguns forasteiros sentirem-se atraídos pela excentricidade geográfica e geológica do lugar, ali aprisionado entre a vastidão do Atlântico Norte e a imponência das falésias madeirenses.
Vários, compraram ou alugam palheiros-moradia e passaram a frequentá-los quando as suas almas ditavam tal retiro.
Continuamos a explorar a Quebrada Nova pelo caminho caprichoso que a sulca, em circuito quase fechado, de regresso à base do teleférico.
Carregamos no botão que, à laia de elevador, o chama. Embarcamos e, uma vez mais sem incidentes, retornamos às alturas de Achadas da Cruz.
O Regresso a Tempo do Ocaso da Ponta do Pargo
Já de volta a Ponta do Pargo, descemos do centro do povo rumo ao farol que equipava o promontório. Espreitamos os panoramas abruptos para norte e para sul, ambos amarelados pela iminência do ocaso.
Uma mãe e uma filha, produzem Instagrames sem fim, com os cenários e adereços em redor do farol. Nós, caminhamos para trás da sua torre.
Fotografamos a silhueta da campânula translúcida entre o que nos parecem araucárias ou pinheiros-Norfolk desfolhados.
Por fim, o crepúsculo dá-se. De novo antecipado e ainda mais caprichoso que o do Paul do Mar, exuberante apenas nos breves instantes em que o grande astro passou entre dois mantos densos de névoa.
Celebramos a sua inesperada excentricidade e fotogenia.
Com a noite a envolver a Madeira, cedemos ao abrigo acolhedor das Casas da Levada.
Os Autores agradecem o apoio das CASAS DA LEVADA à criação desta reportagem:
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