O lodge em que tínhamos dado entrada na noite anterior denominava-se Le Mirage.
Não o conseguíamos ver de outra maneira, perdido como estava na vastidão do Sossus namibiano e na do tempo, numa excentricidade desenquadrada de castelo ou ksar medieval norte-africano, todo ele arredondado, feito de torres cilíndricas agrupadas numa quase circunferência exterior.
Partilhámos o interior empedrado e fortificado com uma comunidade internacional, requintada e endinheirada de exploradores da Namíbia, um deles aniversariante. Voltámos assim a assistir ao cerimonial tão frequente na Namíbia e sul de África, dos empregados a cantarem os parabéns e a dançarem ao som de tambores na da sala de jantar.
Assim como surgiu do nada, a celebração depressa se dissipou. Não obstante estarem previstos cinco pratos, abreviámos o repasto tanto quanto possível.
Tínhamos imenso trabalho de escritório para resolver para os dias vindouros e, para ajudar à festa, as paredes massivas daquelas quase masmorras barravam o sinal de Wi-Fi do quarto 24 que nos tinha calhado. Resolvemos o que conseguimos do imbróglio.
Extasiados das viagens pelas estradas poeirentas e escorregadias da Namíbia, cedemos ao sono mais cedo do que estávamos a contar. Ainda não foi dessa que recuperámos como devíamos.
Às 4h30, os despertadores soaram em jeito de filme de terror. Meia-hora depois, esforçávamo-nos para tomar o pequeno-almoço de olhos abertos.
Às cinco da manhã, ainda atordoados, saímos à descoberta de Sossusvlei.
A Descoberta Madrugadora de Sossusvlei
Estávamos a pouco mais de 20km de Sesriem, a principal povoação da zona.
Ponto de entrada para o domínio vasto dos seus grandes vleis, o termos empregue pelos colonos afrikaners destas partes para definir os pântanos formados quando a água temporária dos rios se espalha pelos desertos, neste caso, o do Namibe.
O Namibe é tido como o ancião dos desertos. Com mais de 2000 km de extensão de uma faixa atlântica alargada de Angola, da Namíbia e da África do Sul, também é um dos maiores à face da Terra.
Por onde andávamos, estávamos sobre o meio da latitude que ocupa. Não chegamos a aproximar-nos de Sesriem.
Deixamos a estrada namibiana C27 apontados a oeste. Nas imediações de um tal de Kulala Desert Lodge, a via arenosa porque seguíamos alinhou-se com o sulco escavado no deserto por um tal de rio Tsauchab. Sem que então tivéssemos noção, o Tsauchab tem protagonismo em quase todos os cenários que viríamos a desvendar.
De tempos a tempos, raros dias de chuva nas longínquas montanhas Naukluft, cerca de 150km para nordeste, fazem ressuscitar o rio.
Renovam a erosão do solo e a compactação das areias dos fundos do Namibe.
Escavam, assim, mais profunda e definida, a espécie de ponta de seta aluvial, bem visível dos ares ou em imagem de satélite.
Na companhia do caudal ressequido do Tsauchab, sob o olhar desconfiado dos órix residentes, o jipe passa pelos balões de ar que quase salpicam os céus límpidos destes confins.
Enre órix e balões, internamo-nos no vale barrento do Sossusvlei, entre as dunas imponentes que o delimitam a norte e a sul.
E a Conquista Arenosa da Reputada Duna 45
Detemo-nos junto à base da Duna 45. Por uma óbvia razão.
Situada ao quilómetro 45 da estrada que conduz Sesriem a Sossusvlei, esta duna ergue-se a 170 metros de altura, um monstro geológico formado por areia com em redor de cinco milhões de anos.
Estima-se que a do rio Orange, soprada do deserto do Kalahari até à quase orla marinha do Namibe. Encetamos a subida ao cimo, devagar, devagarinho, nem a areia deslizante da sua crista curva permitiria outra coisa.
Primeiro, com o sol a querer espreitar do oriente namibiano.
Logo, nós e o topo das dunas alaranjados pelos raios inaugurais do dia, sobretudo as dunas, feitas de uma areia saturada de ferro e, por isso, já de si ocres, mais ferrosas para o interior do que próximo ao oceano.
Quanto mais ascendíamos, mais abismais se revelavam os ergs alaranjados pela aurora em redor.
E mais se diminuíam as acácias nas bases, naquela altura do ano, carregadas das suas vagens em forma de lua, um dos alimentos preferidos dos elefantes.
À medida que o sol se elevava acima do horizonte e das dunas, apagava as manchas de sombra nas vertentes por iluminar.
Quando esse contraste mágico se desvaneceu em demasia, regressámos ao ponto de partida, prontos a retomar a linha condutora esbranquiçada do Tsauchab.
Seguimos para ocidente, a determinada altura, já sobre o rasto de argila salgada legado pelas torrentes inesperadas, a caminho do limiar em que se some no areal sem fim do Namibe.
O Vale sem Saída e Moribundo de Dead Vlei
Algumas das dunas formam verdadeiros lagos desse sal cozinhado vezes sem conta pelo sol tropical.
Um dos mais famosos, o Dead Vlei, surge na base da Big Daddy, a duna mais elevada de Sossusvlei, com 325 metros, ainda assim, ainda assim abaixo da mais alta da Namíbia, a Dune 7, esta com 383 metros.
Passamos abaixo do limiar setentrional Big Daddy. Do lado oposto da sua crista, damos com a mais exuberante das bacias de argila de Sossusvlei, a Dead Vlei, traduzível como pântano ou charco morto.
Mesmo se agora o comprovamos demasiado ressequido para alojar vida vegetal de grande porte, nem sempre assim foi.
O que torna Dead Vlei um cenário especial é a profusão de esqueletos de acácias, testemunhos hirtos e ramificados de formas caprichosas de tempos em que chuvas fartas – provavelmente a montante do rio – e um caudal significativo do Tsauchab terão concedido outra fertilidade.
O Namibe prova-se, no entanto, um deserto em permanente movimento e mutação.
A dinâmica das areias é alimentada pelo conflito entre o vento prevalente de Sul-Sudoeste que, arrefecido pelas águas gélidas da Corrente de Benguela, gera o nevoeiro denso que envolve a orla do deserto e constitui a sua principal fonte de humidade.
O grande rival deste vento de sul, é conhecido como Berg, provém do deserto do Kalahari e, de acordo, é seco, uma verdadeira fornalha, aliás.
O conflito estes dois ventos e suas derivações molda a orientação e a forma das dunas do Namibe e de Sossusvlei.
Terá acontecido que, nesta batalha, entre 500 e 900 anos atrás, alterações na duna Big Daddy e vizinhas bloquearam o fluxo intermitente (dá-se a cada 5 a 10 anos) do Tsauchab para dentro do Dead Vlei.
Desprovidas da água que as irrigava, as acácias quase milenares pereceram.
Os seus troncos e ramos principais resistem. Formam monumentos surreais à aventura e desventura biológica que ali teve lugar.
Por improvável que possa parecer, o Atlântico dista menos de 50km do vale sem saída e morto de Sossusvlei e de Deadvlei.
Ainda assim, nem sequer nas maiores enxurradas já ocorridas, produtos de aberrações meteorológicas, conseguiu o Tsauchab chegar ao oceano como um verdadeiro caudal.
No fim afunilado de Sossusvlei, com a Big Daddy e suas aliadas pela frente, o rio rende-se à imensidão das areias, deixa-se nelas sumir.
Passagem pelo Aperto Fluvial do Estreito de Sesriem
São raros os rios que nunca chegam ao mar.
África tem alguns.
Um outro, esse permanente e abastecido em permanência pelas chuvas do Huambo angolano, espraia-se num pântano verdejante e prolífico mais para o interior de África. Trata-se do Okavango (Cubango).
O sol ergue-se a caminho do seu zénite. De regresso ao carro, descobrimos que temos um furo, por sorte, dos muito lentos. Invertemos caminho.
Temos tempo de atravessar o Desfiladeiro de Sesriem que o Tsauchab atravessa mesmo antes de entrar em Sossusvlei, após deixar de vez, para trás, as montanhas de Naukluft.
Em certos pontos, o desfiladeiro tem meros dois metros de largura, um aperto que sentimos destoar em absoluto com a imensidão inóspita que vínhamos há dias a percorrer.
Raro como é, a estreiteza de Sesriem tem ainda o condão de preservar um reservatório sombrio de água.
É, assim, um ponto de encontro quase obrigatório da fauna do Namibe, dos órix e cabras-de-leque, das avestruzes, dos chacais, hienas e tantos outros.
A Remota Génese Germânica do PN Namibe-Naukluft
Se recuarmos até ao início do século XX, à era colonial do Sudoeste Africano Alemão, constatamos que, mesmo sem verdadeiras intenções de protecção e preservação animal, foram os germânicos que estabeleceram a base do actual Parque Nacional Namibe-Naukluft, considerado o maior parque nacional de África e o quarto maior do mundo.
Em 1907, estabeleceram três grandes Reservas de Caça. A região de Namibe-Naukluft ficou integrada na terceira. Só que os direitos de caça alemães na sua colónia foram perdidos com a derrota do Império Germânico e aliados na 1ª Guerra Mundial.
Em 1915, a administração sul-africana da ex-colónia alemã, validou as Reservas de Caça antes estabelecidas.
Daí em diante, verificaram-se sucessivas alterações.
Quase todas na direcção de aumentar a área do PN Namibe-Naukluft e, desde há já bastante tempo, em vez de promover a caça, como acontece ainda noutras regiões próximas, de proteger os seus animais.
Uma Paragem nas Boxes Forçada
Regressemos à realidade actual em que nos víamos. O furo que nos atormentava agrava-se.
De tal maneira, que nos obrigou a seguir de imediato para Sesriem, a povoação situada a 4km do desfiladeiro.
Mero posto de abastecimento dos veículos e das gentes chegadas em função de Sossusvlei ou a caminho de paragens não tão populares mas de igual modo extraordinárias da Namíbia, Lüderitz, Kolmanskop, Aus.
Como Sesriem, entre as poucas povoações que, por uma razão ou por outra, ousaram desafiar a rudez do deserto.
Paramos na estação de serviço. Um dos funcionários de turno, lava-nos os para-brisas e os vidros laterais. Em boa hora.
Além de areia, o Namibe é feito de poeira que quando se aloja faz questão de resistir.
Atestamos para a viagem longa rumo a Lüderitz.
Após o que o segundo funcionário, aquele que havia assumido o conserto nos dá a novidade: “estão com sorte. Era um prego pequeno.
Não fez grande mossa e consigo remendá-lo só por dentro.
Assim evitam aquela chatice de a empresa de rent-a-car vos querer fazer pagar um pneu novo.”
Agradecemos. Recompensamos-lhe a atenção como a merecia.
O Eco-Refúgio Estrelado do Kulala Desert Lodge
Com o carro operacional e o braseiro do meio da tarde a instalar-se, refugiamo-nos no lodge dessa noite, o tal de Kulala por que tínhamos passado sobre a aurora.
O Kulala Desert Lodge revelou-se outro de vários eco-lodges construídos em madeira, pedra e outros materiais da zona, com recursos mínimos mas uma criatividade do tamanho do Namibe, acolhedor e inspirador a condizer.
Recuperamos o sono que há semanas perdíamos.
Até a hora de jantar justificar um difícil despertar. Com a noite instalada, subimos ao terraço acamado do lodge.
Lá nos dedicamos a contemplar e a fotografar o firmamento híperestrelado, com as suas estrelas e planetas, atrevíamo-nos a dizer que, alguns deles, menos extraterrestres como o Sossusvlei que nos envolvia.