A jornada de Kumasi para Koforidua demorou menos do que estávamos a recear, das onze da manhã às duas e meia da tarde com uma troca de jipe pelo caminho.
Aquele em que Frank, o motorista da GTA, autoridade de turismo do Gana, nos conduzia havia já alguns dias, começou a gerar barulhos metálicos. A que não seriam alheios um qualquer problema na bateria que fazia com que a sua luz no painel acendesse por tudo e por nada.
De acordo, Frank entra no estacionamento de um grande núcleo de restaurantes beira-estrada. Estaciona ao lado de um jipe igual ao nosso, cinza claro, em vez de escuro.
Os dois motoristas aconselham os passageiros a, enquanto tratavam do transbordo da bagagem, irem à casa de banho e comprarem o que quisessem. Em cima da hora do almoço, não nos fazemos rogados.
Passamos os olhos a correr pela profusão de petiscos em oferta. Compramos espetadas de frango e inhame frito, tudo para levar. Não tínhamos tempo a perder. Além do que, decorridos nove dias de périplo ganês, na sua maior parte, rodoviário, há muito que a atmosfera do veículo tinha deixado de nos preocupar.
Era suposto chegarmos à entrada de umas tais de quedas d’água de Boti antes das quatro da tarde.
Um desvio a um mercado de colares de contas ditado por Kojo Bentum-Williams e Yoosi Quarm, responsáveis do turismo causou um atraso de que, por mais que desejasse, Frank não conseguiria recuperar.
A Visita Atrasada às Quedas d’Água de Boti
Ao darmos entrada no parque que delimitava as cascatas, recebe-nos uma comitiva algo mal-diposta de quatro elementos, entre directores e guias: “Já não estávamos a contar convosco”, transmite uma directora local a Kojo, num tom seco de descompostura mal disfarçada. “nós fechamos às quatro, parece-me que foram atempadamente informados disso”.
Kojo puxa pelos galões diplomáticos e resolve o apuro como pode.
Instantes depois, estávamos todos a descer os duzentos e cinquenta degraus que conduziam à base das quedas d’água, por uma ladeira subsumida numa vegetação tropical luxuriante e encharcada.
No fundo, encontramos um lago lamacento, à sombra de árvores frondosas. Dessa sombra, o rio Pawnpanw precipitava-se de uma falésia meio côncava, ali já na forma das duas cachoeiras Boti inferiores.
Explica-nos um dos guias que ditava a tradição da região que a da direita era masculina. A da esquerda, feminina.
E que, aquando da estação das chuvas as duas quedas d’água se juntavam no que os nativos consideravam a sua época de acasalamento, agraciada por sucessivos arco-íris gerados pelos salpicos soltos pelo impacto da água e pelo vento.
Boti Falls: de Perdidas na Selva a Refúgio de Repouso do Pai da Nação Ganesa
Hoje, uma mera atracção natural frequentada pelos ganeses em períodos de descanso, as Boti ocultam uma história controversa. Durante séculos, permaneceram escondidas na selva densa da zona. Assim foi até que um missionário católico com elas deu e passou a usá-las como lugar de repouso e diversão do seu núcleo de convivas.
No entanto, a terra em que se situavam pertencia aos Akyems de Tafo, um grupo tribal da zona. Quando a reclamaram, perceberam que já tinha sido vendida por um outro chefe tribal, a um membro de uma terceira tribo. Típica do complexo Gana, a disputa não parou de se complicar.
Requereu uma intervenção judicial que, contra a vontade de todos, declarou as quedas d’água domínio público.
Por essa altura, a contenda já tinha tornado as cachoeiras famosas. O primeiro Primeiro-Ministro e Presidente ganês, Dr. Kwame Nkrumah decidiu visitá-las em 1961. A imponência do cenário natural impressionou-o de tal maneira que Nkrumah incumbiu o comissário regional de ali lhe erguer uma casa de retiro.
Naquele fluir do rio e da gente, o tempo voltara a passar mais do que era suposto. Começava a escurecer. E ainda suposto espreitarmos uma outra peculiaridade natural da região de Yilo Krobo, esta feita apenas de rocha, em vez de rocha e água.
Visita Crepuscular e Seca à uma Misteriosa Umbrella Rock
A Umbrella Rock distava 2km dali, por caminho de cabras. Com o ocaso iminente, Kojo e o séquito, decidem que o percorríamos de jipe, em vez de a pé.
Desembarcados, numa atmosfera azulada de crepúsculo, desvendamos uma formação rochosa esculpida pela erosão com inspiração de cogumelo e de que o imaginário popular destacou poder abrigar das bátegas tropicais, de uma só vez, 12 a 15 dos seus.
Mesmo sem chuva, apesar da quase noite, a comitiva já bem expandida face à contada em Boti, entrega-se a fotos e selfies sem fim, numa sessão comunal a que só o escuro absoluto daquele vale perdido no nada de Akpamu, pôs fim.
Partimos rumo a Koforidua, a capital destas partes do país, tratada pela sua juventude por K-Dua ou por KofCity.
Uma Noite e Passagem Alucinante por Koforidua
Por mais informal que a cidade fosse chamada, encaminham-nos para um tal de Royal Hotel.
Devido ao trabalho no computador que tínhamos em atraso, dormimos meras cinco horas.
Às 8h10, despertamos feitos zombies, descompostos por Kojo com quem, por norma refilávamos todas as manhãs, por ele e Yoosi ditarem os começos dos dias para bem mais tarde que o que desejávamos.
Saímos em dois jipes, montanha acima, a grande velocidade, com os quatro piscas ligados, a buzinar e com ultrapassagens demasiado perigosas, numa mini-caravana a que só faltavam sirenes para nos assumirmos numa operação especial.
A Embaixada ao Chefe Tribal da Região que Nunca Chegou a ter Lugar
Malgrado a comoção, Yoosi explica-nos a ocorrência: “estamos a fazer um desvio. É suposto saudarmos o chefe tribal desta região e estamos muito atrasados.
No Gana, os chefes são soberbos. Não gostam de esperar. Quando os fazem esperar, os visitantes têm que lhes oferecer uma vaca. Não sai barato, acreditem!”
Acreditávamos. Quando damos entrada no The Royal Senchi – o resort a beira do rio Volta marcado como ponto de encontro – o tal Chefe Tribal já não estava. Ficámos sem perceber quem iria comprar o bovino,
Saúda-nos um gerente europeu do hotel. Bebemos cocktails de boas-vindas e tiramos uma foto oficial daquela visita de toca e foge.
Voltamos a sair, dessa feita apontados à delegação do turismo ganês de Ho, região do leste do Gana que viríamos mais a explorar
Escala na Cidade de Ho, a Caminho do Famoso Festival de Kente de Kpetoe
Lá se junta nos um guia da cidade. Nii Tawiah indica-nos o caminho para Kpetoe, o lugar a oriente de Ho em que, desde 1995, se realiza todos os anos, o festival Agbzmevorza, mais conhecido como Agotime Kente.
Para não variar, as estimativas e preparações do duo Kojo e Yoosi voltam a falhar.
Em vez de começar apenas da parte da tarde, como nos havia informado Kojo, o festival já decorria sobre um relvado desafogado.
Uma multidão em parte sentada, em parte em pé, à sombra de chapéus de sol tribais elegantes, ocupava um sector mais amplo, digamos que popular.
Entrada de Rompante no Festival Agotime Kente já em Pleno
No centro, destacava-se um palanque com uma cobertura com as cores da bandeira ganesa e que abrigava os mais altos representantes de diversas sub-nações étnicas do Gana.
Na prática, durante o festival tem lugar uma recepção de chefes e seus súbditos que chegam com o propósito superior de exibir distintos tipos de trajes e tecidos kente produzidos nas suas regiões.
O festival tem lugar em Agotime lugar que proclama que foram as suas gentes a introduzir a arte da sua tecelagem do Kente no actual território ganês.
No entanto, a povoação de Bonwire, nas imediações de Kumasi, centro de etnia Ashanti do país, é também considerada uma fonte ganesa do Kente.
Seja qual for a sua origem e alma ganesa, arte do kente disseminou-se e diversificou-se.
O kente é tecido em faixas de seda e algodão sob as mais diversas formas e níveis de qualidade que víamos trajadas à laia de toga nos homens, mulheres e até crianças em redor.
Existe o kente autêntico tecido apenas por meio tradicional. Existe também um outro intermédio que sai de fábricas ganesas como a Viisco e a Akosombo Textile Lda.
Depois – não há como lhe escapar – é ainda comercializada uma versão baratucha produzida em massa na China, por norma, para consumo do público ocidental.
A Diversidade de Padrões e o Significado dos Tons do Kente
Em qualquer caso, cada uma das cores empregues nos padrões do kente tem o seu significado: o negro identifica-se com a madurez, espiritualidade ancestral, funeral, luto e afins. O azul com a paz, a harmonia e o amor. O verde com a vegetação, a plantação, a colheita o crescimento, a renovação espiritual. O dourado com a realeza, riqueza, estatuto elevado, glória, pureza espiritual.
E por aí fora, quanto ao restante espectro cromático. Os padrões do kente são complexos e identificados com um nome e até uma mensagem do tecelão.
Os nomes dos tecidos, como as cores e os padrões, provam-se elementos importantes na altura dos ganeses adquirirem o seu kente. Se o dinheiro não for um problema, a qualidade do tecido também nunca o será.
O Kente mais valioso é, de longe, o tradicional, o usado pelos chefes tradicionais que apreciávamos resplandecerem no relvado e tribunas circundantes, coroados e decorados com cordões, braceletes, anéis, medalhões e restante parafernália de ouro.
E que, protegidos da torreira da tarde por uma grande tenda de lona e afundados em cadeirões, ouvíamos discursarem em câmera lenta, parecia-nos que sem fim.
A certo ponto, a organização vê-se forçada a apressar e abreviar os discursos que se seguiam, um golpe rude para alguns líderes que há dias preparavam as suas ilustres mensagens.
Danças, Exibições Tradicionais e as dos Chefes Tribais, elevados sobre Palanquins Excêntricos
Regressamos ao descoberto do relvado. Lá têm início exibições de dança ao ritmo de jambés, tambores e espécies de maracas ganesas.
As mulheres alinham-se. Dançam em fila e exibem os seus kentes e as formas voluptuosas neles apertadas num círculo de êxtase solarengo, orgulhoso e sorridente.
Não era o primeiro festival tribal ganês em que participávamos. Tínhamos vivido o Fetu Afahye com incrível intensidade, nas ruas de Cape Coast.
Com a tarde a caminhar para o seu término, intensificava-se em nós a sensação de que faltava naquele Agotime Kente Festival qualquer coisa de incontornável. Só durou uns minutos.
De um momento para o outro, as danças, os tambores, os jambés, toda a música e restantes expressões populares sobre o relvado desvaneceram-se.
Dois chefes aproximaram-se do fundo da clareira, num plano acima da multidão. Parte dessa multidão, aliás, carregava-os sobre palanquins exuberantes, espécies de grandes banheiras douradas padronizadas com motivos intrincados.
Num ponto central do relvado, desimpedido de gente por seguranças da organização, os chefes ficam lado a lado, cada qual embrulhado na toga de kente respectiva, a brandir a sua espada e outros elementos significativos da sua realeza e da supremacia que justificava ali se exibirem sobranceiros.
Logo, seguiram os seus próprios destinos e o dos seus povos.
Todo o poder tem limites.
No entretanto, o seu foi transferido para o palanque central. Lá seriam inauguradas as condecorações e discursos nacionais e magnânimos de encerramento.
Deram o mote para uma debandada gradual da multidão.
Para o regresso aos lares e aos trajes humildes do dia-a-dia ganês. Se os deuses assim permitissem, no ano seguinte, o kente voltaria a ser celebrado.