Eram quase oito da noite. Dávamos entrada numa das Casas da Quinta do Fragoso.
Quando nos aproximamos, os faróis revelam-nos três ou quatro vacas frisias. Deliciadas a devorar a relva tenra e húmida da frente ajardinada, bloqueavam-nos o acesso à porta.
Vimo-nos forçados a uma operação-expulsão especial que as deixou a mugir de mau-humor. Regressaram passados uns poucos minutos e aconchegaram-se ali mesmo para a noite. Demasiado cansados para as vencermos, resolvemos desfrutar da sua companhia ruminante.
Já vínhamos de quase duas semanas de Açores. As vacas tinham-se tornado parte dos nossos dias mas esta nova modalidade de as termos quase como companhia de sofá, surgiu como uma divertida novidade.
Vínhamos de uma sequência tempestuosa de que apanhámos a bonança apenas no derradeiro dia de São Jorge.
Na Graciosa, logo a partir da primeira manhã, vimo-nos prendados com um delicioso Outono-Estival açoriano.
Uma Vez Mais, as Omnipresentes Vacas Açorianas
Mal descemos da clareira da Quinta do Fragoso para a Estrada Nacional 1-2 que dá a volta a ilha, regressámos ao convívio com as vacas.
Uma grande manada percorria um trecho do asfalto, de saída para um caminho. Foi um trajecto suficiente para deixarmos o carro e nos entregarmos a algumas fotos e a uma tagarelice animada com os donos.
Não obstante a atenção que o gado lhe exigia, o Sr. Humberto e a esposa conversaram connosco com toda a simpatia que a Graciosa nos podia conceder. “Olhem, ando aqui com 70 vacas. O ano passado, tive que matar vinte. A nós, desagrada-nos mas são lá as regras da União Europeia, aqui nos Açores produz-se muito leite. Onde é que anda o touro?”, pergunta o Sr. Humberto à esposa. Confrontado com o seu sumiço, desculpa-se e corre caminho acima.
Haveríamos de o ver, pouco depois, ao volante de um tractor clássico John Deere, uma das nossas marcas preferidas, logo a seguir à Massey Ferguson com quem partilhámos boa parte da infância na terra.
Do Alto do Sul por onde andávamos, percorremos o sul mais raso, abaixo do retalho de minifúndios de tons distintos em que o interior da ilha se desdobra.
Às tantas, esse padrão agrícola abre alas ao casario litoral, geminado e multicolor de Carapacho.
Uma Passagem Rejuvenescedora Pela Vila Termal do Carapacho
A povoação é sobretudo famosa como estância balnear e termal. Estávamos, todavia, já bem fora do Estio e as termas permaneciam encerradas.
Espreitamos as piscinas naturais abaixo. Do nada, três expatriados aparecem, despem-se e deleitam-se com um, ao que parecia habitual, banho marinho matinal.
O exemplo provou-se tentador. Em três tempos, mandamos também os nossos mergulhos, damos umas braçadas, saboreamos o Atlântico tépido como e enquanto podíamos.
Quando regressamos ao carro, o sol que ainda subia no horizonte reaqueceu-nos e recarregou-nos as baterias.
Subimos ao Farol do Carapacho. O seu promontório revela-nos três vistas bem distintas: por diante, para sudeste, os ilhéus e rochedos e, no culminar, a Ponta da Restinga.
Para trás e abaixo, de onde tínhamos vindo, o casario de Carapacho, disposto entre um lajedo áspero de lava negra e uma longa vertente verdejante.
Os Panoramas Rivais a Partir do Farol do Carapacho
Acima, no interior oposto à Ponta da Restinga, elevava-se o cone amplo da formação vulcânica mais exuberante da Graciosa, o Maciço da Caldeira (405m), grande o suficiente para ocupar todo o terço sudeste da ilha, disposto em redor de uma vasta Caldeira, com 1600m comprimento por 900m de largura.
Haveríamos de lá ascender e de descer às suas profundezas. Das imediações do farol, limitámo-nos a contemplar a sua encosta murada, e a orla do cume penteada por uma floresta de cedros. Parecia guardar a Caldeira um duo de bois pretos com tonelagem e visuais intimidadores de touros.
Apontamos à povoação que se seguia. De nome oficial São Mateus, a freguesia é mais conhecida pelo seu nome histórico de Praia, que tem como principal localidade a Vila da Praia ou Porto da Praia. A realidade que lá encontrámos ainda faz absoluta justiça a ambos os baptismos.
São Mateus, ou Praia. Uma Povoação Elegante e a Praia a Sério da Ilha Graciosa
Uma longa marginal que acompanha a curva da baía surge delimitada por um casario alvo de que se destaca a igreja de São Mateus. Salpica o casario uma ou outra fachada de tom pastel em harmonia com o dourado do areal.
É consensual entre os gracienses que Porto da Praia tem a única praia de areia condigna da ilha. Quando caminhamos sobre o longo muro que protege as moradias do Atlântico, vêmo-la invadida por uma maré de algas finas que se amontoavam ao ponto de reter o desenrolar das vagas.
Caminhada fora, o muro converte-se num paredão mais elevado que, além da correnteza de casas, protege uma série de cafés e explanadas, com extensão para ruas e ruelas, às tantas, para a rua dos Moinhos de Vento, que abriga dois de dezenas de exemplares da ilha, estes, convertidos em peculiares alojamentos rurais.
Passamos sobre o pórtico que abre passagem para a praia. Desvendamos o domínio portuário da vila e, do cimo do molhe, o arredondado pronunciado da sua marginal e os recortes da orla da Caldeira, um plano acima dos telhados da povoação.
A Ascensão à Grande Caldeira da Ilha Graciosa
Estava na hora de subirmos à Caldeira. Pelo caminho, desviamos apenas para a Ermida da Nª Srª da Saúde, com o propósito infalível de nos deslumbrarmos com a perspectiva oposta de Praia: a da povoação distante, imposta à beira-mar, para lá de uma extensa manta de retalhos, murada, sulcada por canadas, ora de pasto, ora com outros cultivos e que o sol e as nuvens douravam ou sombreavam a seu bel-prazer.
Deixamos a capela erma, como a havíamos encontrado. Regressamos à estrada e ao campo bucólico da Graciosa. Galgamos a vertente até Fonte do Mato. De onde avançamos até Canada Longa, na iminência da Furna da Maria Encantada. Voltamos a caminhar.
Um trilho íngreme e em ziguezague conduz-nos a uma espécie de pórtico aberto por, nos tempos de juventude vulcânica da ilha, a lava ter transbordado sobre a orla da cratera.
No interior, apercebemo-nos que o crescimento das árvores bloqueara boa parte da vista em redor da caldeira. Em contrapartida, o chilrear dos pássaros soava e ressoava com uma intensidade arrepiante.
Escutamo-lo. Deixamo-nos encantar com a sua inesperada sinfonia.
Logo, regressamos ao exterior. Contornamos mais da orla da caldeira, sempre a subir, até uma torre de observação que nos desvendou a vastidão sul da ilha.
Víamos a Ponta Branca, a Luz e o Alto do Sul, de onde tínhamos começado o dia. E, tal como acontecera a partir da Ermida da Nª Srª da Saúde, novos e graciosos minifúndios e casarios graciosenses.
A Entrada na Caldeira e a Descida às Profundezas Enigmáticas da Furna do Enxofre
Mas impunha-se uma verdadeira incursão à Caldeira. Regressamos ao carro. Atravessamos o túnel áspero e alaranjado que dá acesso ao seu âmago e completamos a estrada que contorna a lagoa interna do Styx.
Detém-nos a entrada para o complexo da Furna do Enxofre. Tratava-se da mais mística das profundezas da Caldeira. Impunha-se, assim, nova caminhada, com passagem através do edifício do Centro de Visitantes, considerado o quartel-general da Reserva da Biosfera e do Parque Natural da Graciosa.
Este novo trilho deixa-nos no cimo de uma escadaria de caracol (com 183 degraus), fechada por uma torre musgosa, com uma janela em cada um dos patamares.
Cada uma das janelas aprofunda a vista para a grande caverna lávica em que nos embrenhávamos.
Por fim, no fundo, vislumbramos uma lagoa em que flutuava um barco a remos. Acontece que essa lagoa esconde uma fumarola que pode libertar dióxido de carbono em concentrações perigosas. Será a principal razão porque encontrarmos o acesso às margens da lagoa vedado.
Admiramos o panorama julioverniano em redor, com um fascínio sobretudo visual. Não tanto o científico que levou naturalistas franceses e investigadores em que se contou o Príncipe Alberto do Mónaco a explorarem a furna logo no dealbar do século XIX.
Do Porto Afonso ao Convívio com Franco Ceraolo e sua Associação de Burros da Graciosa
Da caverna da Furna do Enxofre e da grande Caldeira da Graciosa, passamos às diminutas do Porto Afonso, aprofundadas na falésia avermelhada da enseada pelos pescadores que há muito ali abrigam os seus pequenos barcos de pesca das tempestades e das vagas destrutivas.
Na ressaca da que havia varrido o grupo central, o mar permanecia agitado. Um único visitante solitário examinava o estado do mar a partir do pontão de embarque do porto.
De maneira que, nas imediações, decidimos ir até Esperança Velha e espreitar a quinta de Franco Ceraolo. Franco é um italiano de Roma, capital em que trabalhou como cenógrafo com realizadores com a notoriedade e a obra de Frederico Fellini, Bernardo Bertolucci e Martin Scorsese.
Quando se reformou, Franco decidiu que queria viver numa ilha. As do Mediterrâneo italiano já eram demasiado turísticas. Acabou por ler sobre os Açores e, mais tarde, por visitar todas as ilhas do arquipélago. Decidiu comprar uma quinta e instalar-se na Graciosa. A mesma quinta em que nos acolhia.
Franco chegou à Graciosa em 2007. Constatou que o número de burros e a sua utilidade na ilha diminuíam a olhos vistos, até porque tinham quase todos donos com idade avançada.
Como nos conta Franco no seu português quase perfeito, enquanto prenda alguns dos seus burros com cenouras “eu cheguei aqui interessado em criar animais, afinal estávamos nos Açores e na Graciosa. Mas que animais? Vacas? Vacas havia demais.
Os burros, ao contrário das vacas, estavam numa rota de extinção. Em 1926, a ilha tinha 6000 habitantes e 1600 burros, ao ponto de a Graciosa ser conhecida como a Ilha dos Burros. Decidiu impulsionar a preservação e certificação do burro anão da ilha Graciosa. Propósito superior para que formou uma associação de criadores com um grupo de amigos.
Agora, os habitantes da Graciosa são pouco mais de 4000 pessoas e os seus burros-anões apenas uns 70. Só os que veem aqui na quinta são 17.”
Entretanto, Franco e a associação conseguiram o reconhecimento da raça autóctone da Graciosa em Portugal. Recuperar o número de burros passa também por proteger os que se encontram disseminados noutras ilhas dos Açores, caso da vizinha São Jorge. E por registar num livro genealógico os espécimes com as características que deles fazem burros-anões da Graciosa.
E há que ver que os pequenos burros da Graciosa – chegam a medir menos de um metro de altura -, originários do Norte de África, podem recuperar a grande utilidade que já tiveram. No campo, a apoiarem o trabalho agrícola. E até como agentes de turismo. São muito mansos, fáceis de controlar e ideais para passeios curtos, desde que quem os monte não tenha demasiado peso.
“Aqui na Graciosa, organizados umas burricadas (passeios em grupo) muito engraçadas com eles. As crianças adoram-nas.”
Sentamo-nos para um café com Franco e com a esposa lisboeta Sandra. Conversamos um pouco mais, sobre a produção vinícola da ilha. E sobre o valor da preservação do património arquitectónico histórico-tradicional da Graciosa e de onde quer que seja, que o casal estimava tanto como nós.
Com o tempo então e sempre contado, agradecemos-lhes a gentileza e despedimo-nos, para aparente desgosto dos burros que se alinham a ver-nos partir, intrigados pela brevidade de tal embaixada.
O Cimo Panorâmico e Abençoado do Monte da Ajuda
Com a tarde a caminhar para o fim, atravessamos a capital da ilha, Santa Cruz. De uma das suas ruas, ascendemos ao Monte sobranceiro e panorâmico da Ajuda (130m).
Foi no sopé deste cone vulcânico que se instalaram, a partir de 1450, os povoadores pioneiros da Graciosa. Desses tempos remotos em diante, a povoação expandiu-se até ao casario vasto e harmonioso da actual Santa Cruz.
E, quando atingimos o cume, constatamos que, mesmo já Santa, a cidade era abençoada a triplicar pelo trio de ermidas de São João, São Salvador e Nª Srª da Ajuda.
Abaixo, a ocupar o centro da cratera e a destoar da sacralidade do lugar, sobressaia o vermelho e branco da Praça de Touros local, ainda usada, sobretudo em Agosto, por altura da feira taurina de Santa Cruz.
Uma Deambulação Embalada pelo Atlântico por Santa Cruz da Graciosa
Descemos e dedicamo-nos à capital. Caminhamos em redor da praça e da sua lagoa peculiar, de onde as torres da Paróquia e da Igreja da Misericórdia se projectam bem acima dos telhados dos fiéis.
Mesmo sem o vermos, intimidava-nos uma vez mais o oceano Atlântico furibundo.
O bruar das suas vagas acabou por nos atrair à marginal murada e à beira-mar de lava que encerravam o centro da cidade. Ali, à medida que nos aproximávamos da Ermida do Corpo Santo, o embate das vagas nos pontões e paredões produzia explosões exuberantes de mar que nos alienavam dos restantes cenários.
Outras vagas, determinadas à sua maneira, galgavam as rampas das docas e quase se apoderavam do asfalto por que caminhávamos.
Em pleno percurso, intriga-nos a mega-instalação de arte em que se tornou a colecção de bóias e outros apetrechos náuticos na proa de uma casa de esquina entre a rampa de embarque mais próxima e a Rua do Corpo Santo.
Fim do Dia Gracioso mas também Dramático na Ponta da Barca
Coerentes com a temática marinha, com o sol prestes a afundar-se no Atlântico, rumamos à Ponta da Barca e ao farol homónimo.
Ali, enquanto um morador-faroleiro alimentava as suas galinhas, procurámos um ponto cimeiro com vista simultânea para o farol, a enseada abaixo e o Ilhéu da Baleia ao largo.
Achamo-lo já em modo de correria. E terminamos o longo dia de descoberta da ilha mais que rendidos à Graciosa. Os Açores são sempre os Açores.
Não esperávamos outra coisa.