Tucson a Tombstone: pelo Arizona abaixo
Não somos grandes fãs de parques temáticos. Receávamos encontrar pouco mais que um em Tombstone. Fosse como fosse, ao longo dos tempos, Tombstone sempre inspirou receio. Conscientes do seu passado Western épico e fascinante, damos-lhe o beneficio da dúvida e deixamos Tucson bem cedo para lá apontados.
A menos de meia-hora da fronteira com o México, depressa temos que nos deter num posto de controlo policial. Os oficiais estranham o contexto em que nos encontraram: um casal com passaportes portugueses – ela com feições mais mexicanas que portuguesas – a bordo de um velho e clássico Buick Le Sabre não alugado, com matrícula californiana e sinais de ter recentemente percorrido muitos quilómetros num modo semi-domiciliário.
Mesmo americanos, os próprios agentes têm óbvias genética e visuais mexicanos. Verificam a propriedade do carro e indagam-nos quanto à relação que mantínhamos com o dono. Após confirmarem que o Buick não estava na lista dos veículos roubados e de lhes explicarmos que o proprietário era um nosso tio, dizem-nos para seguirmos. Despedem-se com sorrisos calorosos.
Passamos por Sonoita, por Whetstone e Fairbank. Uma hora e meia de condução pela orla do Deserto de Sonora depois, damos entrada num surreal reduto acobóiado.
Os Modos de Faroeste de Tombstone
Diligências cruzam-se na rua principal da cidade, delimitada por duas linhas de edifícios térreos, de madeira, com extensão para um longo passadiço comunal formado por sucessivos alpendres. Uma panóplia de estabelecimentos comerciais ocupa os pisos térreos à sombra.
Lojas de artesanato e recordações, bares, cervejarias e restaurantes mas também saloons e o teatro são identificados por letreiros que reforçam a peculiaridade do lugar: “Políticos limpem a merda das botas antes de entrarem.” ou “Armas Proibidas. O cemitério já está cheio.”
As diversas personagens do Oeste com que nos cruzamos são de tal maneira fidedignas que, mais que nos deixarem perplexos, nos convencem de que recuámos ao belicoso encerrar do século XIX destas paragens inóspitas e marginais.
Mesmo no fim de um suposto Inverno, o calor desértico aperta. Bebemos cervejas geladas à sombra de um dos alpendres, na companhia do que aparentava ser o coveiro barbudo da povoação. Sem que o esperássemos, grupos rivais de pistoleiros investem de extremos opostos da E. Ellen Street até ficarem frente a frente, perante uma loja identificada como “Outlaw Outfitter”.
Uma multidão de curiosos acumula-se de ambos os lados da via e acompanha o desenrolar do duelo. Nessa ocasião, como em todas as mais recentes, o tiroteio e as mortes seguiam um guião teatral mas, desde a sua conturbada gestação, durante décadas a fim, Tombstone foi palco de inúmeros destes confrontos, tão reais quanto mortais.
Como a Sorte de Ed Schieffelin deu Origem à Cidade
Tombstone foi fundada por Ed Schieffelin, em 1879, 15 anos depois do término da Guerra Civil Americana. Schieffelin era um batedor do exército dos E.U.A. estacionado em Camp Huachuca. Costumava percorrer a vastidão desértica em redor em busca de minérios valiosos. Por essa altura, três outros superintendentes tinham sido mortos por índios.
Quando um colega e amigo se inteirou dos lugares que Schieffelin começara a prospectar ter-lhe-á dito: “A única pedra que vais encontrar por esses lados vai ser a tua própria lápide” ou, outra versão: “É melhor levares o teu caixão contigo; só vais encontrar a tua lápide por aí, nada mais” (lápide, em inglês, Tombstone).
Schieffelin ignorou-o. Em 1877, achou amostras de prata numa tal de meseta Goose Flats. Demorou meses a apurar a sua origem. Quando conseguiu, estimou que o filão teria 15m de comprimento por 30cm de largo. Apressou-se a registar o talhão de terra de “Tombstone”.
Mesmo distante de outras cidades, propulsionado pelos 40 a 85 milhões de dólares de prata que dele fizeram o maior distrito mineiro do Arizona, o lugar tornou-se num dos últimos polos mineiros do Faroeste Americano.
Decorridos apenas dois anos, Tombstone contava com 110 saloons, uma sala de bólingue, 14 de jogo, várias de dança, uma casa de gelo e uma gelataria, uma escola, dois bancos, uma igreja e diversos bordéis. Estes estabelecimentos e edifícios foram erguidos sobre uma série de minas aprofundadas pela ganância dos mineiros recém-chegados.
Devido à construção precipitada e negligente e às inexistentes precauções estruturais contra o fogo, Tombstone foi devastada por dois grandes incêndios em anos seguidos. O primeiro, em 1881, começou quando um cigarro aceso fez arder um barril de whisky num dos saloons. Devastou sessenta e seis negócios, toda a secção leste da área comercial da cidade.
Saloons, teatros e afins: reviver o Passado em Tombstone
Poderão não ser os 100% originais mas devem estar à altura do estatuto conquistado pela cidade, em 1961, de National Historic Landmark District. Como tal, as autoridades e os habitantes de Tombstone (hoje, cerca de 1300) esforçam-se por preservar vários dos seus edifícios emblemáticos.
Foram os casos do Teatro Birdcage, do Salão e da mina Schiefflin, do restaurante Longhorn, do tribunal do distrito de Cochise, do City Hall, do saloon Big Nose Kate e, por eventos que nos cabe ainda abordar, o mais famoso que todos os restantes juntos O.K. Corral, isto apesar do segundo incêndio só ter deixado intacto o letreiro elevado.
O sol descia já do seu ápice mas a temperatura pairava bem acima dos 30º. De acordo, os visitantes mantinham-se no interior de estabelecimentos, determinados a evitar a torreira que se fazia sentir. Nós, refugiamo-nos no Big Nose Kate saloon.
Ali, atendem-nos duas jovens figurantes de damas do prazer, em vestidos negros curtos e acetinados, com peitos subidos e espartilhados a combinar com as pernas voluptuosas rendilhadas. E, logo ao lado, uma visitante de meia-idade enfia-se num caixão. Faz-se fotografar a segurar uma pequena placa que versa “hooker” com uma corda de forca ao pescoço, que um xerife ajuda a segurar.
Já não sabíamos o que pensar do facto de boa parte dos clientes a sério usarem vestes de cobóis, terem postura de cobóis e de muito provavelmente o serem. Estávamos nuns confins quase mexicanos do Arizona, um dos estados norte-americanos mais fiéis ao passado conservador e pistoleiro da nação. Em Tombstone, o limiar entre o passado e o presente, entre a ficção e a realidade revelava-se cada vez mais difuso.
A Chacina Reencenada de O.K. Corral
A confirmá-lo, chegaram as 15h30, a hora da última reencenação do dia do duelo de O.K. Corral. Mudamo-nos para a pequena bancada montada de frente para o cenário garrido e deixamos a acção decorrer. Por ano, mais de 400.000 forasteiros assistem a este teatrinho caprichado.
Se contarmos com as reconstituições cinematográficas e televisivas difundidas por todo o mundo, o número de espectadores e conhecedores dos acontecimentos precipitados de 15 de Março de 1881 a 15 de Abril de 1882 aumenta de forma exponencial.
Os confrontos entre o bem e o mal, a lei e os fora-da-lei, tiveram desfechos de tal forma sanguinários e comoventes que entraram como balas perfurantes no profuso imaginário histórico Western dos E.U.A..
Democratas, Republicanos e os Cowboys Fora-da-lei
Na ressaca da Guerra Civil Americana, envolta em sofreguidão, ressentimento e perfídia, desde os seus primeiros dias que Tombstone via diversas tensões escalarem. A maior parte dos seus cobóis, homens da terra semi-desterrados, eram “Democratas” do Sul, em especial do Texas, afectos ao lado Confederado e derrotado do conflito que mal começara a cicatrizar.
Os proprietários das minas e dos negócios, mineiros, habitantes e agentes da lei eram quase todos Republicanos. Capitalistas ideologicamente mais receptivos e expeditos, provenientes dos estados do Norte.
De 1880 em diante, o governo mexicano taxou gravemente as importações norte-americanas de álcool, gado e tabaco. O contrabando destes bens intensificou-se. Fez disseminar a acção criminosa de bandos fora-da-lei que se autointitulavam “Cowboys”.
De tal maneira que, no Condado de Cochise a que pertencia Tombstone, passou a ser considerado insulto usar o termo para tratar os homens que lidavam com gado. Em vez, deviam ser chamados “ranchers”.
Os Earps vs Bando McLaury, Clanton e Claiborne
Parte desse quadro, na noite de 15 de Março de 1881, três cobóis tentaram roubar uma diligência que transportava 26.000 dólares de prata em barra. Mataram o seu popular condutor e um outro passageiro. O xerife Virgil Earp e os seus irmãos e delegados temporários Wyatt e Morgan Earp saíram no encalço dos criminosos.
A perseguição acabou por envolver um clã familiar e rival de cobóis que desprezava a ascendência dos irmãos Earp em Tombstone e o contrapoder legal e moral que representavam. Despoletou uma sequência de emboscadas e contraemboscadas, assassínios e vinganças que, por sua vez, conduziram ao enfrentamento do O.K. Corral.
Então, em trinta segundos, os irmãos Earp, e o amigo tísico Doc Holliday abateram Tom McLaury, Frank McLaury e Billy Clanton. Mesmo feridos de morte, os dois últimos ainda conseguiram ripostar e feriram Virgil, Morgan e Doc. Ike Clanton e Billy Claiborne fugiram.
Wyatt, um Earp Condenado à Vingança
Malgrado o impacto e a notoriedade deste duelo em particular, o conflito prosseguiria. O novo xerife Beham que assistira ao duelo deteve os Earps e Holliday, acusados de assassínio. Passado um mês, após as autoridades legais de Tombstone deliberarem que os homicídios haviam sido justificados, libertou-os.
Entretanto, Virgil Earp foi vítima de uma cilada, baleado por cobóis escondidos numa rua de Tombstone. Decorridos outros três meses, o seu irmão Morgan sucumbiu a uma bala que lhe atingiu a coluna enquanto jogava bilhar. Em ambos os casos, os pistoleiros responsáveis escaparam à justiça.
Frustrado com a crescente cobardia e ineficácia da Lei da cidade, Wyatt, o Earp sobrevivente, organizou um esquadrão a cavalo que perseguiu e abateu os quatro cobóis que haviam disparado contra os irmãos. Esta derradeira perseguição ficou para a história como Earp Vendetta Ride.
As Versões Hollywoodescas de Tombstone
Desde 1939, Hollywood reforçou o poder de fogo mediático de Tombstone. “Frontier Marshall”, “Sheriff of Tombstone”, “My Darling Clementine” de John Ford com Henry Fonda, “Gunfight at the O.K. Corral”, “Hour of the Gun”, “Tombstone” e “Wyatt Earp”, estas longas-metragens e várias outras obras televisivas abordaram a sangrenta sequela.
Estava previsto Kevin Costner protagonizar “Tombstone” de George P. Cosmatos, com Kurt Russel e Val Kilmer mas desagradou-lhe a recusa do argumentista Kevin Jarre em dar mais peso à personagem de Wyatt Earp. Kostner abandonou aquela diligência. Associou-se a Laurence Kasdan (o realizador do épico “Silverado” de 1985) no projecto rival “Wyatt Earp”.
Segundo Kurt Russel, também fez tudo para evitar que os grandes estúdios de Hollywood distribuíssem “Tombstone”. Contudo, os Buena Vista boicotaram-lhe o boicote. Os dois filmes estrearam com seis meses de intervalo no seu próprio duelo comercial.
Quanto à Tombstone povoação, os censos dos E.U.A. demonstravam que, terminada a mineração da prata a população decaíra de 1900 habitantes em 1890 para menos de 700, em 1900.
A partir de 26 de Outubro de 1881, Billy Clayton, Tom McLaury e Frank McClaury que, como testemunhámos, têm as suas lápides pouco abaixo do O.K. Corral, entre cactos e sob um manto de calhaus, deixaram de contribuir para demografia local.
Tombstone manteve-se, todavia, como sede do condado de Cochise até 1929 e salvou-se de se tornar uma cidade fantasma. Dez anos depois, a sua mediatização via Hollywood começou a fomentar o turismo intenso que agora a assiste. Quase 140 anos após a sua fundação, a atormentada Tombstone resiste.
Mais informação turística sobre Tombstone no site Visit Arizona.