Era a segunda vez que nos dedicávamos à ilha do Pico. Tal como na primeira, cumprimos a travessia de ferry a partir da cidade da Horta, do outro lado do canal.
Da primeira vez, sujeitos a apenas dois dias, concentramos esforços nas prioridades: conquistar o cume do vulcão Pico.
Com o tempo e energia que sobrasse, desvendaríamos as vinhas peculiares da ilha, as espraiadas entre o sopé oeste da montanha e o canal.
Sacrificámos algumas horas de sono e de recuperação do esforço de subir ao tecto de Portugal. Ainda conseguimos descer às profundezas de lava da Gruta da Torre e dar um ou dois outros pulos rápidos a lugares ausentes dos planos iniciais.
Dois dias não davam para mais. Partimos com uma noção frustrante do tanto que deixávamos por conhecer que embarcámos de volta ao Faial.
Quatro anos depois, regressamos. Com as prioridades da conquista do vulcão e as vinhas da ponta oeste da ilha já antes resolvidas, favorecidos por uma estadia bem situada, aproveitamos para explorar o “lado de lá” da montanha suprema de Portugal.
Encosta da Montanha do Pico Acima, em Busca da Lagoa do Capitão
De acordo com o novo itinerário, mal nos vimos com o carro alugado resolvido, apontamos à Lagoa do Capitão, um reduto natural tão emblemático como incontornável do Pico.
A estrada faz-nos ascender boa parte da vertente ocidental do vulcão e, depois, contorná-lo pelo seu norte.
A determinada altura, com o cume da montanha à direita, a EN 3 aplana. Submete-se a uma longa recta, a espaços, semi-afundada em prados que a chuva e a humidade trazida pela nortada ensopam e fazem viçosos.
O Verão tinha deixado os Açores havia quase um mês. No ainda mais imprevisível Outono do arquipélago, a meteorologia cumpria os seus preceitos. Molhava-nos uma chuva miúda.
Arrepiava-nos uma névoa grisalha e cerrada que fazia do caminho um mistério.
Percorremo-lo, assim, em câmara lenta.
Às tantas, retidos por um par de vacas, demasiado indolentes ou soberbas para nos darem passagem.
Decorridos quase cinco minutos, numa secção em que a berma da estrada baixava, suas excelências bovinas dignam-se, por fim, a desviar-se.
Umas centenas de metros adiante, detectamos a saída para a lagoa.
A via perpendicular estreita. Sulca um prado vasto preenchido por lombas, leito de riachos, de corgas, de poças e de musgos esponjas.
De formas de água mil que matam a sede à floresta residente de cedros-do-mato retorcidos e ao gado bovino que sarapinta o verde sem fim.
A via desemboca na beira da lagoa. Confronta-nos com um bando de patos negros em óbvio deleite balnear.
Dali, com uma brisa intensa a erradicar qualquer hipótese de espelho de água e o cimo do Pico coberto, examinamos as nuvens que o envolviam, na esperança de que, em breve, a caravana em que fluíam nos prendasse com uma aberta.
No entretanto, metemo-nos por um caminho de terra avermelhada.
Afastamo-nos no encalço de uma crista ervada de onde estimávamos conseguir uma boa perspectiva da lagoa com o Pico sobranceiro.
Quando lá chegamos, entre troncos e ramos dos prolíficos cedros-do-mato, confirmamos a vista desejada.
E uma outra, sobre o norte da ilha, o estreito abaixo e a longilínea vizinha São Jorge a abreviar o horizonte.
Naquele cimo limiar, castigados por um vento bastante mais forte, desvendamos o itinerário das nuvens noutra amplitude. Concluímos, em três tempos, que só por milagre o cume do Pico se revelaria.
De acordo, viramo-nos para São Jorge.
Acompanhamos a navegação do ferry que liga as duas ilhas. Apreciamos o casario alvo de São Roque, destacado nuns fundos longínquos da vertente a nossos pés.
A Vila ex-Baleeira de São Roque
Quarenta minutos depois, damos entrada na vila.
Os colonos que a povoaram após a fundação do início do século XVI, aproveitaram o potencial agrícola de São Roque tanto quanto podiam.
De tal maneira que, decorridas algumas décadas, o concelho já exportava trigo e pastel para a Metrópole.
Com o passar do tempo, a caça baleeira conquistou o arquipélago açoriano. Em São Roque, em particular, tornou-se fulcral.
Marcou de tal maneira o concelho que as suas gentes lhe dedicaram todo um Museu da Indústria Baleeira, instalado na antiga Fábrica de Vitaminas, Óleos, Farinhas e Adubos.
Todos estes produtos eram gerados a partir de matéria-prima dos cetáceos, processada nas grandes caldeiras e fornalhas que vemos expostas e que fazem do de São Roque, um dos museus baleeiros mais conceituados do Mundo.
São Roque tem lugar para duas estátuas proeminentes. Uma delas, oferecida pela Câmara Municipal de Lisboa, homenageia D. Dinis.
A outra, de bronze pardo, encontramo-la em frente ao museu, quase sobre o mar.
Exibe um baleeiro na proa de um pequeno barco, a suster um arpão em riste, na direcção das águas do Atlântico em que os homens arpoavam o principal sustento da povoação.
Do Norte ao Sul da Ilha, à Descoberta de Lajes do Pico
Foi o que fizeram, com igual preponderância, os da vila antípoda da ilha, Lajes do Pico.
Lajes é detentora do seu próprio Museu dos Baleeiros e de um Centro de Artes e Ciências do Mar, ambos instalados na antiga Fábrica da Baleia local.
Coincidência ou não, é para lá que nos mudamos, numa viagem de monumental sobe e desce.
Por uma manta de retalhos de minifúndios murados, verdes e cada vez mais íngremes, onde as vacas frisias devoram erva numa espécie de tracção acrobática.
Por altura de Silveira, para lá de um desses muros e de uma sebe de Cedros do Mato juvenis, avistamos, por fim, Lajes.
Como o nome indicia, o seu casario surge organizado sobre uma superfície desafogada de lava quase anfíbia, parte de uma baía que termina numa tal de Ponta do Castelete.
Algures entre essa ponta e a derradeira ladeira para a povoação, recuperamos a visão da montanha do Pico. aguçado e destacado como nunca o tínhamos visto, acima do recorte arredondado que a ilha ali assume.
À imagem do sucedido na Lagoa do Capitão, voltamos a fartar-nos de aguardar que o Pico nos revelasse o seu Pico.
Constatamos que, a espaços, o sol incidia nas fachadas brancas e telhados ocres da povoação, como ditavam os preceitos católicos, coroada pelas torres simétricas da Igreja da Santíssima Trindade, a igreja matriz da vila.
Quando por lá passamos, decorre uma missa.
A concentração de fiéis no templo contribui para a sensação de que, finda a época alta do estio, são poucos os forasteiros de visita, apenas uns poucos a cirandar pela grelha de ruas entre o Clube Náutico e a piscina natural.
Instalou-se, por ali, a nata dos negócios das Lajes, de empresas de observação de cetáceos, ao mais humilde restaurante.
A luz solar incidia, na esplanada avançada de um deles.
Resplandecente apesar de a hora de almoço ter há muito passado.
O estímulo desse aconchego térmico evita que nos percamos em hesitações. Sentamo-nos decididos a saborearmos a devida refeição.
“Olá, bom dia, tudo bom? Já vos trago um menu.” saúda-nos e sossega-nos, com forte sotaque afrancesado, uma jovem expatriada, pela correcção gramatical do português, diríamos que radicada há algum tempo.
Demoramos o tempo que nos levou o saborearmos as sopas, os peixes grelhados e o calor que, aos poucos, nos tostava a pele.
Conscientes de como o Pico era sempre demasiado extenso para os dias que lhe dedicávamos, passeamo-nos só um pouco pelas ruas e ruelas da vila.
A do Saco, a da Família Xavier. Já em busca do carro, a Rua dos Baleeiros, uma vez mais com o porto, a enseada e o vulcão Pico por diante.
De Lajes do Pico à Ponta Oriental da Ilha
Regressamos à estrada, então, apontados à espécie de seta geológica que encerra a ilha a oriente.
Contornamos a Ponta da Queimada, o ponto mais a sul do Pico, dotado de uma torre de vigia de baleias emblemática.
Passamos por Ribeiras. Uns meros quilómetros depois, na iminência da Cascalheira, cortamos na direcção do Atlântico. Sempre a descer, claro está, damos entrada na freguesia de Calheta de Nesquim.
Calheta de Nesquim, uma Povoação que se Impôs à Gravidade e à Lava
Já nos tinham gabado esta povoação, como uma das mais peculiares da ilha.
Ao admirarmos a harmonia com que os seus moinhos “flamengos”, o casario destemido na vertente e as vinhas e outras plantações se haviam adaptado ao cenário lávico rude, sentimo-nos na obrigação de concordar.
Essa anuência atingiu um pleno à entrada do porto diminuto da Calheta, ao apreciarmos como a igreja semi-barroca de São Sebastião se sobrepunha à doca.
Como assegurava uma bênção divina constante aos pescadores da aldeia que dali zarpam a arriscar as vidas.
Com o dia solar, não tarda a encerrar-se, seguimos viagem. Passamos Feteira. Progredimos pelo sul do Pico, logo acima das baías de Domingos Pereira e da Fonte.
O Farol que Sinaliza e Ilumina o Extremo Leste do Pico
À entrada desta última, apanhamos o Caminho do Farol.
Uns minutos depois, detectamos o Farol da Ponta da Ilha.
Revelava-se o único edifício digno desse nome.
Ermo num mar de verde arbustivo que despontava do solo vulcânico, até que a densidade da lava e as vagas e o sal da beira-mar lhe sabotavam a expansão, numa Paisagem envolvente que, por possuir elevado “Interesse Regional” conquistou o estatuto de Protegida.
Malgrado a sua localização emblemática, o farol de Manheda, foi um dos últimos a surgir na ilha, apenas em 1946.
Recebeu uma forma de U, com a torre branca e vermelha no fundo-central da letra. E, como é habitual nos Açores, a restante área concedida às famílias faroleiras que nele têm lar.
Examinamo-lo. Rendemo-nos à estranheza e fotogenia do cenário, também espantados pela abundância de coelhos a saltitar entre os arbustos.
Num ápice, o lusco-fusco apodera-se da ponta leste do Pico. Enquanto uma moradora resgatava roupa estendida do relento marinho, a lanterna no cimo da torre apresentou-se ao serviço da navegação.
ONDE FICAR NA ILHA DO PICO
Aldeia da Fonte Hotel
Tel: +351 292 679 500