Nessa manhã, voltamos a descer do alto da Casa Bonita para a beira do Mar das Caraíbas.
Tomamos a estrada marginal 4 no sentido norte, em vez do habitual sul. Atravessamos Santa Cruz de Barahona, a grande cidade destas partes. De Barahona, seguimos para o interior de Hispaniola.
“Vamos tentar parar o menos possível na ida, pode ser?” sugere-nos o guia e condutor Carlos. Se virem alguma coisa que vos interesse fotografar, digam-me e memorizamos para o regresso.
O Lago Enriquillo é um lugar à parte. Se acham que tiveram calor desde que aterraram em São Domingo, esperem só mais umas horas que vão ver!”, e ri-se em jeito de guardião orgulhoso de um mistério. Da experiência e do convívio dos dias anteriores – incluindo uma incursão a outra lagoa salina, a de Oviedo – só podíamos confiar no señor Carlos.
Continuamos a viagem, primeiro na direcção da Laguna del Rincón, em que passamos da província de Barahona para a de Independencia. E, já nas imediações do grande lago que nos movia, por altura de um tal de Caño del Muerto, outra vez da de Independencia para a de Baoruco, a que pertencia um vasto sector nordeste do Enriquillo.
Cruzamos Neiba. Pouco depois, Villa Jaragua. Num sábado de manhã, estavam ambas entregues a um delicioso frenesim ora mercantil ora de práticas desportivas.
Prazerosa e genuína, a vida dominicana porque passávamos, deixava-nos frustrados por não podermos interromper a viagem. “Daqui a uns vinte minutos, vamos mesmo parar, mas esqueçam os mercados de rua. De Jarágua em diante, estes magotes de gente deixam de aparecer.”
Prosseguimos pela estrada 48, às tantas, transformada em Avenida Joaquín Aybar, uma longa marginal que se ajustava à linha do cimo do lago. Ainda trespassamos Las Clavellinas, Los Rios e Postrer Rio, qualquer uma das povoações, bem menor que Jarágua.
Por caprichos da demarcação das províncias dominicanas, em Postrer Rio, o caminho devolveu-nos à província de Independencia.
A Cueva de las Caritas de Los Indios e a Vista sobre o Lago Enriquillo
“Estão a ver aqueles corrimões lá em cima. É ali mesmo. Sigam o trilho com cuidado que o piso está seco e, aqui e ali, resvala. Se caem, vai ser um drama.” Demoramos pouco a perceber porquê. Ladeava o trilho uma vegetação de encosta tão verdejante como espinhosa.
Chegamos, sem sobressaltos, a uma plataforma de observação. Essa plataforma, por sua vez, facilitava o acesso a uma gruta cravada na encosta, mais um buraco amplo que propriamente uma caverna, mesmo se os dominicanos a tratavam por cueva.
Ascendemos ao interior lúgubre. Dali, contemplamos o grande Lago Enriquillo emoldurado pela sombra, estendido entre a floresta repleta de cactos no sopé e uma caravana de nuvens brancas acima da margem oposta.
Aquela que nos acolhia era uma de várias cuevas da vertente e dos cumes que os nativos tratam por “cerros de las Caritas de los Indios”.
Ternurento, o nome adveio da abundância de faces arredondadas gravadas na rocha porosa.
Os autores de tais obras foram os Taínos, indígenas que, aquando da chegada de Cristóvão Colombo, em 1492, dominavam boa parte das Caraíbas: as ilhas de Cuba, Hispaniola, Jamaica, Porto Rico, as Bahamas e outras do norte das Pequenas Antilhas, pelo menos estas.
Os Taínos são um dos ascendentes genéticos mais relevantes das populações actuais das Caraíbas.
No início do século XVI, Enriquillo, um seu cacique proeminente, liderou uma revolta e espécie de guerrilha contra os invasores espanhóis, a partir das montanhas a sul do lago.
A revolta durou o que durou. A sua coragem e determinação vieram a granjear-lhe o baptismo do maior lago das Antilhas e uma estátua destacada acima do entroncamento Duvergê – Barahona – Neyba.
Lá nos detemos, no caminho de regresso, decididos a prestar-lhe uma devida homenagem fotográfica.
Admiradas a vista e as gravuras caritas indígenas, regressamos à carrinha e a Carlos.
O guia conduz-nos à entrada do Parque Nacional Lago Enriquillo y Isla Cabritos, onde era suposto embarcarmos para uma navegação à descoberta.
Enfim, à Descoberta do Enigmático Lago Enriquillo
Encontramos as instalações do parque à sombra de uma floresta ainda mais frondosa que a que havíamos visto do cimo da cueva.
Quando saímos do carro, acercam-se de nós dezenas de iguanas, estimámos que por se terem habituado às ofertas de petiscos dos visitantes.
Uma senhorita dominicana esforça-se para que o namorado a fotografasse na companhia dos bichos. Aos poucos, estes, aumentam de número e cercam-na, cada vez mais próximo das suas pernas.
De início divertida, a moça entra em pânico.
De tal maneira histérica, que obriga o namorado a trazer-lhe uma cadeira, sobre a qual se refugia, até que o ranger do parque, incrédulo, se anima a enfrentar o calor e a afugentar os répteis.
Nesse hilariante entretanto, Carlos saúda e apresenta-nos os rapazes responsáveis por nos mostrar o lago. Subimos a bordo de um barco a motor sem capota.
“Era melhor que começássemos mais tarde”, diz-nos um deles, enquanto se enfiavam em roupa de manga comprida, com gorros. “Mas como querem dar uma volta grande, bom…vamos torrar… temos que sair já.”
Mal deixamos a protecção da floresta, a 46 metros abaixo do nível do mar, sentimos na pele aquilo a que Carlos e os barqueiros se referiam.
O Braseiro Salgado e Atroz do Lago Enriquillo
Assolou-nos, de pronto, um calor húmido, entre o hipersalino (até três vezes mais salgado que o mar) e o insalubre. Demoramos algum tempo a perceber o mal que nos fazia até porque o movimento do barco nos arejava.
Ainda assim, aos poucos, cozinhava-nos e a desidratava-nos sem apelo.
O duo do lago manobra o barco, entre troncos de árvores que a subida das águas salgadas tinha deixado mortas, nalgumas zonas, quase só com os ramos das copas expostos, pousos providenciais de dezenas de garças brancas pouco fugidias.
Amaramos noutras áreas superficiais, quase a seco. Nestas, desembarcamos e examinamos a profusão de grandes troncos colapsados, na horizontal.
Por ali, os anfitriões do lago mantêm-se alerta.
Conseguem localizar uns poucos espécimes juvenis de crocodilos que se recarregavam, junto a cepos humedecidos. “Antes víamos imensos e por toda a parte” informa-nos Ináci, ciente de que a escassez e o tamanho dos répteis nos desiludia.
O Aumentar Desmedido do Lago Enriquillo
“Mas é que este lago não pára de aumentar, de um modo que até os crocodilos afecta. Eles perceberam que já não podem pôr os ovos nos lugares habituais porque as margens mudam de dia para dia.
Em vez, sobem mais alto nas encostas rochosas em redor do lago, onde os ninhos ficam à mercê de tudo um pouco. Também por isso, agora, os crocodilos estão dispersos por uma área muito mais vasta.”
Todas as espécies que compunham o ecossistema do lago se viram em apuros. Os corvos da palmeira e várias outras aves perderam o habitat que tinham nas árvores agora mortas.
Uma vasta comunidade de iguanas cyclura e rinoceronte de Hispaniola viram-se forçadas a migrar da Ilha Cabritos (quase submersa) e a disputar com espécies rivais, zonas mais altas das margens.
Também os habitantes humanos sofreram.
Sobre o final do século XX, o lago tinha mirrado tanto que as suas gentes estavam certas que em breve, desapareceria. Ao invés, uns anos depois, aumentava a olhos vistos.
Ao ponto de dezenas de milhares de famílias terem sido forçadas a abandonar as suas casas ribeirinhas, apoiadas por diversas instituições – entre a quais a União Europeia – que lhes concederam fundos de emergência.
Um Subida das Águas de Dez Metros apenas numa Década
A questão nunca esteve em se o Lago Enriquillo aumentava. Só entre 2006 e 2016, as suas águas subiram mais de onze metros, duplicou de tamanho e submergiu mais de 160km2 de terra antes arável, habitada por camponeses em modo de subsistência.
O que há muito intriga os cientistas é o porquê deste crescimento, que tem paralelo, e gerou um drama ainda pior, no lago de Azuéi, situado no vizinho Haiti.
A comunidade científica permanece em desacordo. Parte, defende que a responsabilidade está no aquecimento global e nas chuvas mais frequentes e intensas.
Num sector discordante, encontram-se os apologistas de que o fenómeno se deve a alterações no fluxo do rio Yaque del Sur.
Os que afiançam que passou a conduzir ao Lago Enriquillo muito mais água e assim validaram os planos do governo dominicano de construir uma barragem a montante.
Por essa altura, mais que a realidade hídrica da região, apoquentava-nos a crescente desidratação e uma indisposição que nem com goles frequentes de água conseguíamos evitar.
Ináci faz o barco acelerar e serpentear entre as fozes dos rios La Descoberta e de Amada, cujas águas frescas e doces sustêm a vida de uma pequena selva bem viva, pejada de palmeiras e que contrasta com os cadáveres vegetais mais próximos do lago.
Dali, saúdam-nos alguns adolescentes nativos, intrigados pela demanda embarcada masoquista em que andávamos.
O Fim Antecipado da Navegação pelo Lago Enriquillo
“Bom, rapazes, assim ao alcance deste barco, já vos mostrámos as zonas mais cheias de troncos e interessantes.
Os crocodilos, podemos andar a tarde toda às voltas e não encontrar mais nenhum. Digam-nos o que querem fazer.”
O calor de fornalha e o sal em evaporação continuavam a arruinar-nos os organismos a forte ritmo, pelo que nos vimos forçados a antecipar o regresso ao parque.
O revês provou-se irrisório, se tivermos em conta os danos provocados pelo descontrolado Lago Enriquillo nas últimas décadas.