Cumprida uma noite de navegação com origem em Santo Domingo, despertamos com Porto Rico a bombordo.
Uma comunidade irrequieta de golfinhos atrai boa parte dos passageiros aos decks superiores do ferry. Acompanhamo-los e às suas acrobacias por algum tempo.
Em breve, a curiosidade sobre o que nos reservava a ilha leva a melhor. A vista do cimo do barco, a pouca distância da costa provava-se mais elucidadora do que estávamos a contar.
Deixado para trás um litoral de que se projectavam prédios altos, chegamos a uma ponta com forte cariz histórico, ocupada por uma grande fortaleza, logo, por outra.
O ferry contorna o extremo ocidental triangulado da sub-ilha de San Juan. Começa por nos revelar o Morro e o Castillo San Felipe del Morro que o defende. Quando inverte a sua posição, deixa-nos em contraluz. A vista transforma-se numa mancha escura e difusa.
À medida que progredimos para dentro da Baía de San Juan, a embarcação aproxima-se de La Puntilla e realinha-se. Volta a exibir-nos o cimo ervado do Morro e, não tarda, o casario que se espraia para norte da Puerta de San Juan e de uma longa zona portuária.
Por fim, o ferry atraca. A atmosfera que encontramos em terra tem o seu quê de Estados Unidos, se bem que menos opressora e espalhafatosa do que é usual nos E.U.A. contíguos
Desembarcamos no Estado Livre Associado de Porto Rico, considerado um território não incorporado dos Estados Unidos. Nos muitos dias que lhe dedicamos, esta terminologia e o que dela emana ditaram uma diferença substancial.
Detectámo-la na identidade de Porto Rico, algures entre a latinidade caribenha dominicana e o pragmatismo anglófono dos E.U.A, ambas patentes, logo para começar, no bilinguismo (uso do espanhol e do inglês) de boa parte da nação boricua.
O Clima Tropical e Tempestuoso de Porto Rico
Em termos geográficos, quanto à meteorologia, Porto Rico é tão tropical e caribenha como a congénere Hispaniola. Sofre dos mesmos predicados e riscos.
Em Setembro de 2017, o furação de categoria 5 Maria devastou a ilha. Causou 90 mil milhões de estragos e entre 1500 a 3000 vítimas mortais, o número real depressa gerou controvérsia.
Também a visitámos durante boa parte de Setembro. Os caprichos dos furações desse ano, pouparam-nos. O calor, ora tórrido, ora tórrido e húmido, característico da época das tempestades e chuvas, nem por isso.
Quando caminhamos pela primeira pelas ruelas históricas e garridas do viejo San Juan, o calor de sauna oprime-nos. Faz-nos suar e desesperar a dobrar por não darmos com a porta estreita e esquiva da guest-house em que tínhamos marcado os dias iniciais da estada.
Já instalados, com frequência, terminávamos as tardes no extremo ocidental da ilha, a explorarmos a tal secção relvada, desafogada e algo mágica do morro que antecedia o castelo de San Felipe.
Pois, decorrente desta combinação entre temperatura e humidade extrema, tarde após tarde, nuvens plúmbeas, carregadas e pesadas a condizer, surgiam do mar a norte e ficavam a pairar, baixas e ameaçadoras, sobre o promontório.
Sequestravam o sol. Após o que atacavam a velha San Juan com bátegas inclementes, trovões ribombantes e raios que, a espaços, os pára-raios por ali instalados retinham.
Insignificantes, se comparadas com o fenómeno quase-apocalíptico do Maria, estas tormentas causavam os seus danos.
Na incerteza de que os pára-raios se provassem 100% eficazes, os rangers de serviço ao Sítio Histórico viam-se obrigados a comunicar emergência por altifalante.
Esmeravam-se para colocarem a salvo os pedestres da Calle del Morro – que sulca a relva entre o limiar do casario histórico e o castelo – e as dezenas de lançadores de cometas (leia-se papagaios de papel) disseminados sobre a erva, o cimo das muralhas, ameias, adarves e restantes estruturas de defesa de El Morro e de San Juan Bautista.
San Juan, uma das Cidades mais Fortificadas das Américas
Foi Cristóvão Colombo que assim baptizou a ilha, quando nela desembarcou, em 1493. Sob esse nome santificado e bíblico, Juan Ponce de León, o primeiro governador da ilha, tratou de a urbanizar.
Já estivemos em inúmeros lugares coloniais fortificados. Nenhum deles com a grandiosidade, densidade e excentricidade histórica da ilha de San Juan.
Reforça o deslumbre do Castillo de San Felipe, a estrutura multinível complexa que os engenheiros militares impuseram ao Morro, numa comunhão secular com o oceano Atlântico e a Baía de San Juan, com as iguanas e as fragatas e corvídeos residentes, em permanente sobrevoo.
A umas boas centenas de metros para leste, ainda no cimo da ilha ergue-se uma fortificação complementar, o Castillo de San Cristóbal é considerado o maior dos fortes espanhóis do Novo Mundo e em tudo comparável ao de San Felipe.
Calcorreamo-lo de ponta a ponta, de cima a baixo.
Uma vez mais entre iguanas, com panorâmicas incríveis, umas do interior da ilha, incluindo o majestoso Capitólio de Porto Rico. Outras, sobre o mar bravio e as guaritas que a ele se fazem.
Nos tempos coloniais, soldados mantinham-se nestes postos estratégicos, de alerta à aproximação de navios inimigos. Comunicavam por gritos.
De uma das guaritas baixas, isolada das outras e à mercê das tempestades e vagas, era mais difícil obter resposta. E, diz-se que, numa determinada noite de mar revoltoso em que as vagas se desfaziam contra a estrutura, os soldados deixaram de escutar os gritos daí vindos.
Ao amanhecer, quando verificaram o posto, deram apenas com as roupas e armas do oficial, desaparecido, para sempre. Essa vigia ficou conhecida como “Guarita do Diabo”.
Muralhas em Toda a Volta de San Juan
Também a ponta oposta da ilha de San Juan era fortificada.
Prova-o o Fortin San Gerónimo de Boquerón, situado junto ao boqueirão que a separa da península de Condado e da Ilha Grande, de igual forma destacada da ilha principal. Boa parte da costa sul continua tão ou mais muralhada e fecha o conjunto.
De tal maneira composto que um dos passeios emblemáticos de San Juan dá uma boa volta à sua zona histórica sempre pelo sopé ou pelo cimo das muralhas.
Tem início na Puerta de San Juan, um dos cinco grandes pórticos que dotavam os quase 5km fortificados que, em tempos, envolviam a cidade.
Todo este engenho e aparato defensivo tiveram uma razão óbvia de ser. Como teve o nome Porto Rico em tempos ostentado pela cidade, confundido e, mais tarde, trocado com o da ilha, que era tratada por San Juan.
Porto Rico de San Juan, uma Cidade Sempre Desejada
Muito devido à sua posição proeminente, San Juan tornou-se, em pouco tempo, uma escala incontornável da rota hispânica entre Sevilha e o Novo Mundo. E, no sentido inverso, da prata, do ouro e restantes riquezas embarcadas rumo à Europa.
Numa zona do mundo cada vez mais disputada pelas potencias coloniais rivais, pejada de piratas e corsários obcecados por tesouros, San Juan tornou-se um alvo prioritário. As suas fortalezas, muralhas e baterias de canhões foram aumentadas e reforçadas vezes sem conta.
Nos últimos cinco anos do século XVI, os ingleses procuraram conquistá-la sob o comando, primeiro de Francis Drake, pouco depois, de George Clifford de Cumberland. Em ambos os casos, os atacantes viram-se forçados a retirar.
Em 1625, num contexto de sucessivos e complexos ataques e contra-ataques, o capitão holandês Boudewijn Hendricksz falhou em tomar El Morro mas saqueou e incendiou a cidade.
Pouco depois, foi expulso pela derradeira resposta dos espanhóis protegidos pelo Forte.
San Juan resistiu. Pelo menos, até 1898.
A Entrada em Cena Dominadora e Controversa dos Estados Unidos da América
Neste ano, os inimigos tornaram-se os emergentes Estados Unidos da América, demasiado poderosos para que uma Espanha em decadência conseguisse evitar o destino.
Em plena Guerra Hispano-Americana, os E.U.A. enviaram um esquadrão de doze navios de guerra modernos, cercaram a Baía de San Juan, facilitaram o desembarque noutras partes da ilha e deram azo a sucessivas batalhas, quase todas inconclusivas.
Por fim, em Agosto de 1898, fruto da calamidade que já representava para Espanha o cômputo geral da guerra contra os americanos – também disputada em Cuba, nas Filipinas e em Guam – os espanhóis aceitaram ceder aos Estados Unidos a soberania de Porto Rico.
Hoje, o estatuto dos porto-riquenhos está aberto a distintos critérios que resultam em nacionalidade dos E.U.A., nacionalidade de Porto Rico ou em dupla cidadania.
Uma coisa é certa. Pudemo-la constatar por toda San Juan o amor dos boricuas à sua pátria, exposto, por exemplo, em dezenas de pinturas da bandeira da nação que só confunde com a Stars and Stripes quem estiver deveras distraído.
Na de Porto Rico, em vez de 50 estrelas, brilha apenas uma, bem grande, destacada sobre um triângulo azul.
Quando os Estados Unidos lavam as mãos dos problemas e dramas de Porto Rico, como os porto-riquenhos consideraram que aconteceu com a falta de ajuda à tragédia gerada pelo furacão Maria durante a presidência Trump, sentem-se ainda mais motivados de pintar e exibir a sua. De ignorarem ou recriminarem a do poderoso estado soberano.
Os Estados Unidos só entraram na história de Porto Rico já ela contava com quatro séculos.
Continuam longe de conquistar os corações dos porto-riquenhos.