Era assim, até ao alastrar da pandemia à Rússia.
Quem regressava à superfície numa das estações de metro da Manege Square depressa se surpreendia com a animação e a excentricidade em redor. Pela primeira vez na vida, vimos casas de banho móveis decoradas com padrões floridos do folclore russo.
Passamos pela base da estátua equestre do marechal soviético, Georgy Zhukov, de quem o planeamento da defesa da União Soviética contra a Invasão Nazi fez um herói multi-condecorado.
Através dos arcos da Porta e Capela Ibérica, chegamos a vislumbrar, distantes, as cúpulas arabescas da Catedral de São Basílio.
Embrenhamo-nos na multidão que por ali flui. Sem que o esperássemos um grande urso pardo, de peluche, animado por um qualquer morador, tapa-nos o indício da iminente Praça Vermelha.
Instantes depois, um séquito de sacerdotes ortodoxos abre caminho e as portas do templo diminuto a uma comitiva de fiéis. A capela fica à pinha de crentes. De tal maneira que, enquanto, lá dentro, decorre a cerimónia que os reunia, dois padres enfiados em batinas negras, seguem-na do exterior.
Cruzamos os arcos para o domínio da praça. Do lado de lá, posicionados à porta da loja de arte e souvenirs Nasledie, dois guardas em uniformes históricos que nos parecem cossacos posam para a fotografia, de espadas cruzadas acima de uma família visitante, todos os membros com olhos amendoados típicos dos confins orientais da nação.
Nas imediações, os figurantes multiplicam-se.
Um faz de czar Nicolau II. Um outro de Lenine. Um terceiro de Estaline.
Num dos hiatos do seu negócio com os turistas, Nicolau II e Lenine entregam-se a uma cavaqueira que atraiçoa a história.
Passamos em frente à catedral de Nª Srª de Kazan, de que admiramos os sucessivos arcos de mísula, coroados por uma cúpula dourada solitária de que desponta uma cruz ortodoxa.
Monumental e elegante como a vemos, atordoa-nos descobrir que, se trata de uma reconstrução.
Mais inacreditável ainda, que a original foi mandada destruir, em 1936, por ordem expressa do secretário geral do Partido Comunista Soviético, Josef Stalin, georgiano de berço, não russo, devemos sublinhá-lo.
Cruzamos a rua Nikolskaya.
A Monumental Praça Vermelha de Moscovo
Do lado de lá, entramos, por fim, no espaço sagrado da Praça Vermelha, a vastidão de empedrado listado entre a base dos muros do Kremlin de Moscovo e o grande edifício e centro comercial GUM.
Confirmada a derrocada da URSS, passados os anos de caos e agrura económica e social da Mãe-Rússia, o atropelo do Comunismo pelo capitalismo inexorável ditou que a praça deixasse de servir apenas para paradas, comícios e comemorações político-militares afins.
Quando a percorremos, uma boa parte da sua área está ocupada por uma exposição de horticultura, com plantas e flores mantidas em pequenos vasos, dispostas por cores e formas.
Mal a montra termina, os organizadores oferecem-nas aos visitantes. Deparamo-nos, assim, com um frenesim de amantes da jardinagem a disputarem rebentos de bromélias, buganvíleas, orquídeas e outras.
Esta pilhagem autorizada auxilia a desmontagem do viveiro para o espectáculo nocturno que se segue, um concerto pop-rock seguido de fogo de artifício.
A orla oposta, a contígua ao Kremlin, permanece imune a tais confusões e comoções populares.
O Mausoléu de Lenine, Sepulcro dos Primórdios da URSS
É lá que jaz, desde 1930, embalsamado a pedido do povo, vizinho do Túmulo do Soldado Desconhecido, o fundador da URSS Vladimir Lenin.
Erguido em mármore negro e vermelho, tons do luto e do sangue, o mausoléu mantém um guarda armado quase imóvel e de olho em tudo.
Em especial, na fila de visitantes que aguardam para entrar, dependendo da afiliação ou simpatia, prestar a sua homenagem ou apenas observar o corpo conservado por truques da ciência, o sarcófago refrigerado e o interior lúgubre do edifício.
A importância histórica e política de Lenine justifica que a frente do mausoléu acolha, com frequência, palanques em que os líderes russos se dirigem ao povo. Nas suas mais de duas décadas de liderança, Vladimir Putin já lá discursou várias vezes.
Mas se Lenine, Putin e os sucessivos dirigentes soviéticos e russos pelo meio, marcam presença no mausoléu e na Praça Vermelha, o verdadeiro covil, o assento do seu poder, esconde-se atrás dos muros ameados que a delimitam.
As imagens que nos habituámos a ver do presidente Putin sentado com outros líderes mundiais, frente a frente, numa mesa inflacionada contribuíram para um imaginário difuso da outra Casa Branca, a do Leste.
O Grande Kremlin da Rússia, Assento do Poder da Nação
Pois, o salão em que Putin acolhe, com distância comparável à da sua Rússia face ao mundo, é apenas um – o fulcral – de dezenas dos cinco palácios e quatro catedrais ortodoxas que integram o centro político e religioso imenso (275.000 m2) de Moscovo.
O termo russo kremlin define uma fortaleza dentro de uma cidade. São centenas os kremlins disseminados na vastidão da Rússia, como o pudemos comprovar, sendo o de Rostov, um dos mais sumptuosos.
O de Moscovo, como agora o vemos, começou a ser delimitado na sua forma triangulada, por maçons italianos, entre 1485 e 1495. No mais de meio milénio com que conta, nem sempre se provou inexpugnável.
No início do século XVII, tomaram-no senhores de guerra polacos e lituanos.
Em 1812, em plena Campanha da Rússia, e em jeito de afirmação do poderio bélico francês, Napoleão Bonaparte arrasou seis das várias torres da fortaleza.
Expulso o Imperador Louco, em apenas sete anos, os russos restabeleceram a integridade do kremlin e, à margem do mero lar dos czares, a sua função de impressionar, de controlar e de oprimir, num primeiro nível, a Rússia e os russos, noutro, o mais possível do mundo.
Nessa mesma tarde, contornamos a Praça Vermelha e damos entrada no seu domínio. Ao contrário do que se possa pensar, em tempos de pré-pandemia e de normalidade político-militar russa, o kremlin mantinha-se, em boa parte, visitável e turístico.
Os forasteiros percorriam-no.
Oravam nas naves das suas igrejas.
A Presença Dominadora da Igreja Ortodoxa Russa
Incluindo as das grandiosas Catedrais da Anunciação e da Dormição com que a igreja ortodoxa procurou eternizar a sua aliança com o poder e a presença na fortaleza. São ambas encimadas por cúpulas douradas, espécies de mísseis de pretensa fé apontados ao céu.
Durante todo o período bolchevique e soviético (1918-1991), o Comunismo ateu sem escrúpulos instaurado pelos bolcheviques, sequestrou a Igreja Ortodoxa. Manteve-a à parte.
Sobretudo de 1991 em diante, com a anuência dos líderes pós-soviéticos, os sacerdotes depressa recuperaram a influência que tinham junto dos czares.
Vemos os visitantes admirarem o sino Kolokol III, quebrado durante o grande incêndio de 1737 e outros elementos e recantos arquitectónicos e históricos do Kremlin.
A vasta fatia não visitável da fortaleza traduz o reduto em que se engendra a política externa russa, em que Putin e os seus súbditos do governo da nação, Serviço Federal de Segurança incluído, congeminam as medidas necessárias, amiúde, maquiavélicas, a eternizar o poder do líder pseudo-eleito.
Prepotência e Paranóia, Moradores de Há Muito do Kremlin de Moscovo
Na Fortaleza Vermelha, a paranóia, aliada de sempre do despotismo, faz, há muito, companhia aos líderes russos e soviéticos.
Um dos seus primeiros moradores, o czar Ivan Valievich, Ivan IV, via em quem lhe aparecesse à frente um conspirador do seu fim.
Entre membros do governo, família e “amigos”, mandou eliminar centenas de russos. Levou à morte até o próprio filho, herdeiro do trono, que espancou com uma bengala de ferro. Sem surpresa, Ivan IV conquistou o cognome de “o Terrível”.
Em épocas de anteriores pandemias, incluindo a da não menos terrível Gripe Espanhola, Lenine refugiou-se na estanquidade do kremlin em que dotou os seus aposentos de uma câmara de desinfecção privada.
Estaline, o seu sucessor, refugiou-se no kremlin de incontáveis tentativas de assassínio, a maior parte delas imaginárias. Começou por proibir os seus camaradas comunistas de acederem à fortaleza.
A partir do kremlin, terminou a exilar centenas deles e milhares de cidadãos soviéticos nas prisões e campos de concentração do crescente “Arquipélago GULAG”, como lhe chamou Alexander Soljenítsin.
A Continuação da História Soviética-Russa, às Mãos de Vladimir Putin
Herdeiro todo-poderoso do kremlin, Putin também herdou os métodos e procedimentos despóticos dos czares e ditadores soviéticos.
Ditou, sem cerimónias, inúmeros aprisionamentos (por exemplo de Alexei Navalny), as condenações de opositores à morte, tenham sido por disparos ou através dos famosos chás envenenados químicos.
E a recente invasão sanguinária da Ucrânia, de que são de esperar desenvolvimentos ainda mais catastróficos.
Deste legado e presente soviético e russo despótico e desprezível continuam a despontar, elegantes e imponentes, as estruturas seculares da grande fortaleza moscovita e da Praça Vermelha.
No extremo oposto à Porta e Capela Ibérica por onde nos habituámos a entrar, a catedral de São Basílio mais parece pairar.
Trata-se, sem discussão, de um dos edifícios religiosos mais deslumbrantes do mundo, com as suas cúpulas em espirais de distintas cores, desenhadas como chamas de uma fogueira de fé, em crescendo.
Já sobre o anoitecer, cruzamos para a margem afastada do Moscovo.
A distância revela-nos um kremlin panorâmico, com o seu grande palácio e catedrais dourados pela luz artificial, reflectidos nas águas lisas do rio que um ferry repleto de estrangeiros maravilhados sulca.
Nos dias que correm, a Rússia de Putin perdeu o encanto que, apesar de tudo, ainda conservava.