Pouco passa das nove da manhã.
O Templo do Dente volta a render-se à cerimónia Pooja, na sua versão de ritual diário, denominado Theva, em qualquer dos casos, um frenesim de fé que há muito o anima.
Fluem crentes metidos nos seus trajes, mas descalços. As mulheres em saias, camisas e sáris garridos e lustrosos. Os homens, quase todos em calças e camisas da alvura da pureza.
Solene, a cerimónia desenrola-se numa esquadria de corredores e câmaras definidos, do chão ao tecto, por grelhas de madeira trabalhadas e envernizadas.
Orações em Família, Flores, Fruta e Fé
Numa espécie de antecâmara, as famílias reúnem-se, sentam-se no chão, numa prece comunal em que até as crianças se mantêm compenetradas.
Em frente, ao longo de uma mesa estendida de uma ponta à outra de um corredor, os fiéis depositam as oferendas com que louvam Lord Buddha.
Dois funcionários ajudam-nos a organizá-las numa manta de retalhos condigna. Nenúfares recém-colhidos e distintas flores do mesmo tipo e cores, juntas, e em secções em que combinam com outras.
Há ainda arroz e alguns frutos de que se destacam exuberantes bagos de romã, dispostos e destacados sobre travessas de papel como um dos três frutos que os budistas consideram sagrados.
O estatuto não é para todos os presentes. Ou, se é, desvaneceu-o a rotina quase diária do ritual.
Um funcionário do templo instalado a um canto da mesa, examina em redor.
Quando pensa estar a salvo de olhares alheios, furta e delicia-se com uma mão-cheia de romã, de uma textura e sabor etéreos que os budistas creem apaziguadores do mal e dos pecados.
Uma lenda budista conta que uma demónia de nome Hariti se havia habituado a devorar crianças. E que Buda a curou desse hábito dando-lhe uma romã a comer.
Em volta da mesa, mesmo se os seus narizes mal a passam, as crianças maravilham-se com a exuberância mutável do tabuleiro.
Os jovens frutos budistas, admiram ainda a compenetração e a elegância com que os seus progenitores, de mãos juntas em frente às faces, voltam a exaltar o Iluminado.
Num pátio ali próximo, entre grandes potes de barro e munidos de jambés, um trio de monges de cabeças rapadas, em hábitos tom de mostarda, leva a cabo a sua própria oração, austera como o chão de laje que os sustenta.
Chegados por um túnel forrado com motivos intrincados – brancos, amarelos, dourados – mais e mais crentes prolongam a theva do dia. Atrai-os a presença suprema de Buda.
Cândia e o Templo do Dente que Abriga um Canino de Buda
Em Cândia, ali, naquele mesmo templo, a manifestação inusitada de um dos seus dentes, um canino esquerdo, para sermos mais rigorosos.
Os crentes acedem a câmara que o preserva por uma porta para a sabedoria eterna, por si só, uma espécie de acto religioso pejado de simbolismo.
Acima da porta, entre dois sóis estampados num céu ondulante, é um dragão de boca escancarada quem parece conceder a passagem.
De ambos os lados da cortina que faz de véu, dois guardiães amarelos têm a companhia de um porteiro identificado por um sarong e colete brancos. O interior revela um altar, coroado por um Buda de ouro reluzente e ladeado por dois alvos.
O canino sagrado é mantido no interior de uma campânula, também ela uma obra prodigiosa de joalharia.
A falta de uma real exposição da relíquia, tanto a sala como o seu entorno, surgem decoradas de outros dentes.
Grandes marfins expostos em curva na direção das estátuas, num jeito pouco ou nada subtil de lhes apontarem a sacralidade.
Sacerdotes budistas surgem do nada.
Posicionam-se numa outra face daquela mesma câmara fulcral, entre outro conjunto de marfins e uma cortina vermelha-dourada mantida fechada.
Inauguram cânticos, a que se segue um mantra encurtado.
Findo o recital, o séquito que os acompanha prostra-se em reverência. Dos monges conceituados e da santidade do Buda a que os monges e qualquer budista aspiram.
Meros mortais que somos, confrontados com tal solenidade, assalta-nos a curiosidade de como o canino de Buda, ali teria acabado.
A Viagem do Dente de Buda, da Índia até Cândia
De volta ao plano da lenda, após a entrada de Gautama Buddha no estado de Nirvana final, o dente terá sido guardado algures na região de Kalinga (costa nordeste da Índia).
De lá, por instrução de um rei local denominado Guhasiva, a sua filha princesa Hemamali escondeu o dente no cabelo.
Com a protecção do marido príncipe Dantha, conseguiu viajar até à ilha do actual Sri Lanka.
Nessa era do ano 300 d.C., governava a ilha Sirimeghavanna, rei de Anuradhapura antes de Kashyapa I, o sucessor que conquistou o trono após emparedar o pai.
E que, mais tarde, se refugiou no cimo da famosa fortaleza-rochedo de Sigirya.
Sirimeghavanna assumiu a responsabilidade superior de guardar o dente. Daí em diante, essa custódia tornou-se parte da história do Sri Lanka.
Por altura dos séculos XIII e XIV, Cândia tornou-se um centro espiritual das duas maiores seitas do Budismo, a Mahayana e a Theravada.
A Guarda do Dente que Valida o Controlo do Ceilão
Há muito que o direito e o dever de custódia da relíquia dental correspondiam à legitimidade de governar a ilha.
De acordo, os sucessivos reis construíam o seus próprios “templos do dente” junto às suas residências reais.
No decorrer da intrincada história do Ceilão, o dente acabou no cerne montanhoso da ilha, em Cândia, desde o final do século XV, um reino em expansão.
Deixamos o Templo do Dente. Vagueamos na vastidão que o envolve e ao grande lago artificial a sul.
Como seria de esperar naquela que é considerada a capital budista do Sri Lanka, cruzamo-nos com outros templos e santuários.
Assistimos a novas oferendas, entre bandeirolas coloridas, fumos e incensos.
Nesta divagação, acabamos por divergir para a esfera secular e para um plano administrativo da cidade.
Cândia e o seu Deslumbrante Centro Notarial e de Advocacia
Em fuga do rugido ensurdecedor de velhos autocarros e riquexós, damos conosco numa rua delimitada por edifícios coloniais de dois andares.
Vemos um sector dessas fachadas pejado de placas negras com letras brancas.
Quando as examinamos, constatamos que exibem palavras cingalesas e, aqui e ali, nomes ocidentais.
Alguns, soam-nos familiares. Estamos num domínio de notários e advogados.
Entre tantos outros cingaleses, encontramos uma tal de firma “De Silva e De Silva”.
O visual colonial, algo decadente do lugar seduz-nos. Deixamo-nos perder nas suas salas, à conversa com funcionárias que, à mão, elaboram plantas de edifícios e outros documentos oficiais.
“Aposto que há muito tempo não viam um trabalho destes!” atira-nos uma delas, consciente da preciosidade clássica do que fazia.
Em inglês, tagaleramos ainda com outras que tiram fotocópias ou espanam o pó de secretárias e estiradores seculares.
Percebemos que, à parte do seu espaço de trabalho, partilham do espanto por ali termos visto interesse.
Tal como acontece um pouco por todo o Sri Lanka, boa parte dos funcionários possuem nomes portugueses.
Ou, pelo menos, familiares que os têm.
E, no entanto, estamos numa das poucas cidades do Ceilão que sempre resistiram.
Aos portugueses, e às outras potências coloniais com que os portugueses o disputaram.
A Chegada Precoce dos Portugueses ao Ceilão
Portugal deparou-se com esta ilha a que os romanos já conheciam como Taprobana, durante a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia. Nessa expedição, o navegador inteirou-se que se tratava da única produtora de canela no Mundo.
Ora, a especiaria era deveras apreciada e procurada na Europa.
Na sequência, D. Manuel I instruiu o vice-Rei D. Francisco de Almeida de que, se possível, o Ceilão deveria ser controlado.
Em 1505, diz-se que arrastado por uma tempestade, acabou por lá dar à costa o navegador filho do vice-Rei, Lourenço de Almeida, obrigado a ancorar junto ao actual porto de Colombo.
Nos cento e cinquenta anos que se seguiram (até 1658), estimulados pela importância da ilha, os portugueses estabeleceram fortes e feitorias.
O Gradual Domínio do Litoral do Ceilão
A própria Colombo, Galle, Jafanapatão, Negumbo, Baticalo e Tricomalee.
Além da canela, a ilha estava repleta de pedras preciosas, pérolas e outras riquezas que os seus reis e nobres exibiam.
De tal maneira, que várias personalidades influentes na expansão do Império defenderam que a sua capital devia ser transferida de Goa para o Ceilão.
Cândia, o Reino Resistente das Montanhas
Três grandes reinos disputavam a ilha: Kotte, o predominante; Jafanapatão, ao norte e, dono e senhor das montanhas no âmago da ilha, Cândia.
Como se tinham habituado a fazer em redor do Mundo, os portugueses exploraram as rivalidades entre estes reinos, com os missionários de distintas ordens a procurarem converter os reis e nobres locais ao Cristianismo e a moldarem-nos à esfera colonial lusa.
Os portugueses asseguraram a Cristianização conveniente de mais do que um rei de Cândia. E, entre 1589 e 1594, o controle deste reino. Nesses cinco anos, a Coroa viu-se em apuros para designar um novo rei português.
Subsistia essa novela da nomeação do rei quando, iradas pela execução de um general cingalês, as forças aliadas da ilha, debandaram.
E o Debacle Português no Ceilão, às Mãos do Rebelde de Cândia e dos Holandeses
Konnapu Bandara, o Rebelde de Kandy, um temido rival cingalês cristianizado enquanto Dom João de Áustria e que chegou a Rei de Vimaladharmasuriya, aproveitou a vulnerabilidade dos portugueses, entretanto cercados.
Em Outubro de 1594, servido por um enorme exército, encurralou-os e chacinou-os.
Raptou ainda Cusumasana Devi, a nativa que os lusos baptizaram de Dª Catarina e que, durante o ano de 1591, conseguiram manter rainha de Cândia.
Não tarda, os holandeses entraram em cena. Precipitaram o colapso colonial dos portugueses no Ceilão.
Cândia continuou a resistir. Preserva o seu lugar sobranceiro na história do Sri Lanka.
E o canino de Buda que o legitima.