Estamos já em Abril. Lá para o sul da Europa, uns poucos dias concedem ansiados recreios balneares.
À latitude 60º de Porvoo, a uma hora de carro para nordeste da capital Helsínquia, o sol permanece aprisionado acima de nuvens carregadas de neve.
O rio Porvoo que banha e baptizou a cidade flui sob um manto compacto de gelo.
Quebram-no duas meras zonas em que algum fenómeno gera lagoas superficiais e um espelho fidedigno do casario acima.
Porvoo, a povoação, estende-se pela encosta num sortido de tons garridos a que uma luz solar diminuída e filtrada só retira algum brilho.
Deambulamos pelas ruelas, enregelados, como o tempo, em busca de um ponto elevado e destacado que nos revelasse um panorama condigno.
Nessa missão, divergimos para a floresta de coníferas que preenche boa parte da Finlândia e que, de acordo, envolve o povoado.
A espaços, as folhas sobrecarregadas dos pinheiros, dos abetos e das bétulas prendam-nos com banhos de neve. Ajudam-nos a despertar para o dia que, por essa altura, promete resistir invernoso.
Porvoo: o Casario Multicolor abençoado por uma Catedral Bilingue
Por fim, o trilho revela-nos uma abertura no arvoredo. Dali, distinto de junto ao rio Porvoo em que predomina o vermelho, as edificações exibem-se de tons pastel amarelados e esverdeados.
Porvoo é religiosa. À boa maneira cristã, a sua igreja em forma de A destaca-se, bem acima do plano urbano e dos telhados menos empinados dos fiéis.
Desprovida do antigo protagonismo mercantil, Porvoo retém o seu mérito religioso. Aquela mesma catedral abrupta e antiga (século XV) que admirávamos preserva uma função dupla.
Acolhe a diocese de Borga integrante da Igreja Luterana Evangélica da Finlândia, a que congrega os milhares de fiéis finlandeses que se expressam em sueco.
Em jeito de exemplo, Borga (castelo sobre o rio) é o termo sueco que, fruto de contingências históricas, os quase 30% de moradores faladores de sueco usam em vez de Porvoo.
A paróquia de crentes faladores de finlandês, parte da Diocese de Helsínquia, usa a mesma catedral para as missas e outros serviços religiosos.
Quando passamos diante da sua fachada, um grupo corajoso de crentes ensaia para algo diferente.
Um Ensaio Congelante para a Semana Santa
Aproxima-se a Semana Santa. Malgrado o frio confrangedor, actores e figurantes reconstituem a Crucificação e cenas prévias da Via Crucis.
Por respeito à narrativa, o actor com o papel de Jesus Cristo veste pouco mais que uma túnica. Enfia-se num blusão de Inverno e reaquece-se de cada vez que o ensaio é pausado para reparos e correcções.
Uns poucos flocos de neve errantes que lhe caem sobre o cabelo e o rosto atraiçoam a realidade histórica e agravam o castigo que, assim nos parece, está longe de terminar.
Daí a uns dias, dezenas de reencenações da Via Crucis haveriam de se desenrolar nos quatro cantos cristãos da Finlândia. A começar pela realizada diante da catedral de Helsínquia.
Também Porvoo teria a sua.
Mesmo sem a imponência arquitectónica do grande templo da capital, é procurada por milhares de forasteiros que a consideram mais pitoresca e a preferem pela beleza do cenário envolvente, feito de casas e armazéns dos séculos XVIII e XIX e de uma Natureza resplandecente.
Laivos de Sol e uma Porvoo que Resplandece a Dobrar
Um bando de corvos levanta de árvores despidas próximas. Esvoaça em redor da catedral e da povoação. Salpica o céu arroxeado de negro e reafirma-se num domínio há muito seu. Relembra-nos de retomarmos o giro.
Com a manhã a chegar a meio, o sol quase a pique começa finalmente a imiscuir-se nas nuvens. Derrete o gelo que resiste sobre as calçadas e reduz o risco de queda latente em cada rua, ruela e ladeira.
Ao sentirem os laivos solares nas fachadas e pelas janelas adentro, os moradores de Porvoo estimulam-se a sair. Uns, varrem neve ainda alva da frente dos seus lares.
Outros, compõem as fachadas, montras e letreiros dos inúmeros estabelecimentos virados para o turismo que dotam a povoação.
Um Passado Mercantil Glorioso
Situada sobre o rio homónimo e, ao mesmo tempo, na iminência da baía de Stensbole e do Golfo da Finlândia, Porvoo cedo se tornou um entreposto comercial fulcral.
As suas gentes preservam uma mesma aptidão histórica para o negócio, agora, adaptada à demanda e oferta renovada pelos visitantes.
Porvoo começou a surgir, registada como cidade, durante o século XIV. Antes disso, ainda dominada pela tribo tavastiana, lá afluíam mercadores alemães, provavelmente membros da Liga Hanseática que se expandiria a outras partes do norte europeu, incluindo a longínqua cidade norueguesa de Bergen.
Os alemães desembarcavam em Porvoo em número crescente.
De tal maneira que o centro original da povoação se tornou conhecido como Saksala, “o lugar dos alemães”.
A Era Sueca de Porvoo. Seguida da Russa
À época, os suecos expandiam o seu território muito à custa de povos nativos e pagãos da actual Escandinávia e em torno.
Após uma segunda cruzada instigada pela igreja Católica, a meio do século XIII, arrebataram, por fim, Porvoo aos tavastianos.
Promoveram a colonização da região por agricultores provindos do âmago da Suécia e que atraíam com a oferta de terras, gado, sementes e a isenção dos impostos devidos à Coroa.
Porvoo desenvolveu-se em proporções comparáveis apenas às de Turku e Ulvila. Avancemos até ao século XVIII.
A Rússia tomou Viborg à Suécia. A sede episcopal de Viborg mudou-se para Porvoo. O número de religiosos e crentes que acompanharam os bispos fez de Porvoo a segunda maior cidade do território actual da Finlândia.
Como acontecia amiúde, nesses tempos, a cidade aumentava e evoluía a bom ritmo quando um incêndio incontrolável destruiu quase dois terços dos edifícios.
Não tivesse sido esta catástrofe, o casario de Porvoo que tanto encanta quem o admira poderia ser muito mais antigo.
Voltamos a cruzá-lo pela Jokikatu, uma das ruas pedestres locais, como duas ou três paralelas, repletas de cafezinhos, lojas de artesanato, antiquários, restaurantes e afins.
O afago solar intermitente encoraja um casal a instalar-se, híper-agasalhado, numa esplanada recém-aberta.
Esses mesmos inesperados laivos luminosos convencem-nos a descermos para a beira-rio, a atravessarmos a ponte e a apreciarmos Porvoo com a bênção do grande astro.
Pelo caminho, nuvens mais rápidas que as nossas passadas, sequestram e voltam a libertar o fulgor solar.
Do meio da ponte Uusi, confrontamo-nos com a frente de armazéns seculares em que os comerciantes guardavam os produtos por ali transaccionados, de um vermelho uniforme que destoa tanto da alvura circundante como do cada vez mais descoberto, azul-celeste.
Por ali se guardaram e venderam, séculos a fio, sobretudo manteiga, madeira, peixe seco, tecidos e, também, o providencial alcatrão.
Hoje, quase todos cafés e ravintolas (restaurantes) conceituados, reescrevem, com requinte, o passado de cargas e descargas, de embarques e desembarques, para os navios oriundos de outras partes do Golfo da Finlândia.
À época, no oriente-sul do Golfo, São Petersburgo continuava a emular Paris, de acordo com os ensejos expansionistas do cada vez mais ameaçador Império Russo.
Como temido, em 1808, os Russos conquistaram o território da Finlândia ao Império Sueco.
Nesse baralhar histórico e político, Porvoo acolheu uma Dieta (assembleia legislativa) que se arrastou por quatro meses e que teve como principal resultado a declaração do czar Alexandre I de que a Finlândia assumiria um estatuto de Grande Ducado autónomo.
O Contributo para a Passagem da Autonomia à Independência da Finlândia
Mesmo desprovida de tal intenção, essa decisão tornou-se predecessora da independência da Finlândia que, não obstante, só chegaria mais de um século depois, pouco antes do término da 1ª Guerra Mundial.
Uma das máximas da consciência nacional finlandesa, com crescendo significativo em Porvoo, foi o denominado mote Fenomman:
“Suecos já não somos,
Russos não nos podemos tornar
Como tal, teremos que ser Finlandeses”
Em Porvoo, num tempo de iminente adesão à NATO, de costas viradas para o Leste, pouco ou nada resta da submissão à Rússia.
O sueco é falado, tanto ou mais que noutras regiões do ocidente suómi.
A velha Porvoo mantém-se tão finlandesa quanto a Finlândia pode deslumbrar.