Uma vez mais, o Secretário de Estado para a Economia de São Tomé e Príncipe vê em nós valor acrescentado para a sua pequena nação insular, a segunda menor do continente africano, apenas ultrapassada, na pequenez, pelo arquipélago das Seicheles.
Então nesse cargo, Silvino Palmer cede-nos uma pick up de serviço. Disponibiliza-nos ainda um motorista e um guia. Francisco Ambrósio, o guia, é professor do ensino primário.
Quando nos dirigimos à praia de Ribeira Izé, com o fito de examinarmos as ruínas da igreja da primeira povoação erguida pelos portugueses em Príncipe, as crianças reconhecem-no.
Descarados a dobrar, num grupo que lava louça num tanque perdido na floresta, chamam-lhe vampirrrro vezes sem conta, com os erres bem carregados, como o fazem os santomenses .
Aquele gozo repetido deixa-nos curiosos.
Quando o questionamos, mesmo algo reticente, Francisco esclarece-nos: “Oh, sabem como é… miúdos. Acham que eu sou parecido com um actor que viram num filme, a fazer de vampiro, acho que é aquele do “Blade”, o Wesley Snipes.
Rimo-nos a bom rir. Francisco fica na dúvida de se há-de rir também.
O Caminho Improvisado entre Água Izé e a Roça Sundy
No entretanto, chegamos a Ribeira Izé. As sobras imponentes, mas musgosas da igreja impõem-nos uma espiritualidade secular com algo de exorcista. Não voltamos a tocar no assunto.
Dali, o plano passava por seguirmos para a Roça Sundy.
Nos mapas, tanto de papel como online, só víamos uma rota, que nos forçava a reverter para o interior, contornarmos o aeroporto e voltarmos a subir para o litoral norte da ilha.
O motorista Armandinho era morador de Sundy.
Sabia mais que os mapas. Confiante na robustez da pick up, mete-nos em caminhos que mal o eram, que a vegetação equatorial se preparava para engolir, de tal maneira que até Francisco Ambrósio o questiona sobre se iríamos dar a lado algum.
Armandinho pede-nos que confiemos.
Continuamos por uma linha sinuosa, quase paralela à beira-mar até – depressa se desvaneceram as dúvidas – ao domínio parcialmente muralhado de Sundy.
Roça Sundy: uma das ex-Roças Mais Vivas e Activas do Príncipe
Entramos por um dos pórticos secundários face ao da base da torre central, o mesmo atravessado pelos carris que, em tempos, melhoraram a produtividade da propriedade.
Com Armandinho como cicerone, vizinho e familiar de toda a gente que tinha casa nas antigas sanzalas, percebemos o quão viva e crucial para a ilha do Príncipe se mantinha aquela roça.
Encontramos sobretudo mulheres. Umas arranjam peixe, de olho nos filhos irrequietos.
Outras, vem à porta, a investigarem o alvoroço da criançada que nos acompanha.
Outras ainda, somos nós que as encontramos quando não resistimos a espreitar para dentro dos seus lares de portas abertas.
Veem TV com a companhia dos rebentos, entre a mobília parca que o aconchego apertado do lar contempla.
Naquele périplo, Armandinho revela-nos ainda o único lar-loja da roça, habitado por um morador de visual e pele mais caucasiana que negra.
A maioria dos mais de quatrocentos moradores actuais de Sundy, são descendentes dos escravos e trabalhadores que serviram a produção da roça desde a sua já longínqua criação.
A Origem Algo Difusa da Roça Sundy
Estima-se que a Roça Sundy tenha sido fundada no início do século XIX.
Uma carta territorial da ilha do Príncipe, de 1814, já tinha delimitada e identificada uma propriedade com tal nome, abençoada pela capela de Nª Srª de França.
A roça situava-se para o interior da praia Sundim que se crê ter inspirado o baptismo.
Sundy acolheu a primeira plantação de cacau de São Tomé e Príncipe. Mais tarde, os colonos portugueses lá produziram também café e amêndoa de coco.
A produção dessas preciosidades tropicais, a mão-de-obra gratuita ou quase gratuita garantiram enormes lucros aos sucessivos proprietários e a expansão da propriedade até um expoente de mais de quatro hectares.
Como acontecia noutras grandes roças de São Tomé e Príncipe – por exemplo, a Agostinho Neto – os donos chegaram a erguer um hospital que os servia e às centenas de serviçais.
Hoje, não passa de uma ruína.
Do Passado Secular aos Novos Planos Turísticos
Já a mansão dos proprietários e casa da administração, construída em 1921 pela família Carneiro, resistiu ao tempo.
Tal como perduraram as casas dos empregados da família, uma delas, hoje, o infantário da roça. Acompanham-nas ainda um grande armazém, a capela, as oficinas, os estábulos e a estação do comboio.
Após a independência de São Tomé e Príncipe, obtida, de Portugal, em 1975, e a nacionalização das propriedades coloniais, durante algum tempo, a mansão serviu de morada oficial do Presidente santomense na ilha.
O grupo de investimentos turísticos HBD converteu-a recentemente num dos hotéis requintados e com mais impressionante história do Príncipe.
São parcos os registos dos tempos coloniais e esclavagistas da roça. Como escasseiam narrativas dos usos presidenciais da mansão.
Quando a visitamos, damos com um painel que celebra e resume o verdadeiro zénite da popularidade da roça Sundy, um evento com tanto de improvável como de extraordinário.
A Comprovação Esperada da Teoria da Relatividade
Decorria o ano de 1919.
Quatro anos antes, Albert Einstein tinha revelado a sua Teoria da Relatividade Geral, entre o deslumbre e o cepticismo, com enorme impacto na comunidade científica mundial. Entre outras premissas, a teoria defendia que a luz era distorcida pela gravidade.
E, em específico, que estrelas emissoras de raios luminosos que passassem próximas do Sol apareceriam alteradas, na medida em que o campo gravitacional do Sol faria curvar a sua luz.
Decorrida quase meia década, a Teoria da Relatividade Geral carecia de prova. A 29 de Maio de 1919, teria lugar um eclipse solar total que a permitiria testar.
Para tal, seriam necessários dois pontos de observação específicos na Terra.
Um dos locais escolhidos foi a cidade de Sobral, no estado brasileiro de Ceará.
O outro foi o extremo norte da ilha do Príncipe.
Ficou encarregue do estudo a partir de Príncipe o credenciado astrónomo inglês Arthur Eddington.
Ora, precisamente na roça Sundy, Eddington tirou fotografias de diversas estrelas do aglomerado de Híades, incluindo da estrela dupla Kappa Tauri, da constelação Touro que, dos pontos de observação selecionados, se viam junto ao Sol.
O fenómeno raro do eclipse total permitiria a cobertura do Sol e um escurecimento do céu suficiente para observar essas estrelas, em condições normais, ofuscadas pelo brilho intenso.
Decorrido um ano, as fotografias e observações que Eddington publicou e divulgou comprovaram a esperada distorção das estrelas. Como sempre acontece nestes casos, com a devida controvérsia.
A Polémica que Redundou numa Confirmação da Comprovação
Cientistas cépticos apontaram que as imagens obtidas por Eddington não tinham a qualidade necessária. Alegaram o mesmo quanto às imagens obtidas pela equipa presente em Sobral que apresentavam defeitos gerados pelos telescópios, básicos, se comparados com os actuais.
No geral, a comunidade mundial de astrónomos teve em conta as limitações técnicas da época. Assim mesmo, considerou provada a Teoria da Relatividade Geral. Estudos posteriores, confirmaram essa mesma prova de Sobral e de Sundy, com qualidade de imagem muito superior.
Einstein, Eddington e Sundy, por esta mesma ordem, conquistaram merecidas notoriedades. Foram celebradas com pompa e circunstância, em 2019, por ocasião dos 100 anos da comprovação da Teoria da Relatividade Geral.
A roça recebeu um novo Espaço Ciência e História Sundy que explana o que lhe explicamos acima com mais pormenor, com recurso a imagens, mapas e afins.
Quem, como nós, se espantou com a floresta equatorial cerrada, as praias perfeitas, as roças e as gentes que, apesar de tudo e de tão pouco terem, acolhem quem chega de sorrisos nos lábios, sabe que, à margem do Espaço e de qualquer teoria, a ilha do Príncipe é a prova do quão especial poder ser a Terra.