Não têm conta as rochas e calhaus amarelados, empilhados com a arte dos milénios que compõem a montanha pedregosa, em forma de baleia, a que se encostou o Twyfelfontein Adventure Camp que nos abriga.
Acabados de chegar do litoral de Swakopmund, rendemo-nos num ápice ao surrealismo lítico do lugar. Um trilho-escadaria instalado pelo lodge facilita-nos a ascensão ao cimo do monte, frequentado, pelos hóspedes, sobretudo para contemplação do ocaso.
Há muito e, para sempre, deslumbrados com a peculiaridade da paisagem namibiana, conquistamo-lo mais de uma hora antes, com tempo de apreciarmos a vastidão do sul de Kunene em redor, a uns quase 360º.
Vários outros montes daquele mesmo crumble de dolomite salpicavam-na até perder de vista, intersectados por duas das estradas que servem a zona.
A distância revelava-nos ainda mesetas com topos rosados ou ocres destoantes.
Tanto a norte como a sul da ilha cársica que nos sustinha, insinuavam-se linhas densas de vegetação.
Irrigavam-nas o leito do rio Aba-Huab, por essa altura, subterrâneo mas, chegada a época das chuvas fulminante da Namíbia, uma torrente enlameada que levava tudo à frente.
Como viríamos a compreender, o Aba-Huab e o Huab eram, havia muito, as artérias que concediam a vida.
O Twyfelfontein Adventure Camp provava-se apenas um capricho de requinte no ecossistema ancestral daquele domínio de África.
No Cimo do Twyfelfontein Adventure Camp, à espera da Magia Crepuscular
Com o sol a descer sobre as montanhas a leste, os hiracoides recolhem às suas tocas.
Os hóspedes do lodge aparecem e servem-se de bebidas no bar improvisado entre pedregulhos.
Sentam-se nos assentos providenciados, cirandam pelas orlas panorâmicas da elevação.
O grande astro não tarda a sumir-se.
Tinge aquela Namíbia de rosados, lilases e até purpuras que lhe reforçam o visual já de si extraterrestre.
Escurece.
O Espaço cintilante reclama a sua dose de protagonismo, com rival único nas instalações iluminadas do lodge.
Lá se reunia, em volta da sala de jantar, uma comunidade multinacional privilegiada.
Por aqueles lados, tanto como o ocaso e o arrebol que o remata, a aurora e o seu próprio lusco-fusco representavam estímulos que começávamos a ansiar.
Dormimos aconchegados pela exaustão. Sobre a aurora, saímos em busca do Aba-Huab.
Pelo rio Aba-Huab seco acima
Guia o jipe e guia-nos a nós, Lucas, descendente de família angolana que, quando grassava a destrutiva Guerra Civil de Angola, se viu forçada a migrar para sul.
Lucas esforça-se por nos saudar com o pouco que sabia de português.
Até que outros passageiros o interrompem e reorientam para a incursão.
Passamos por boa parte das tendas do Twyfelfontein Adventure Camp.
Contornamos o monte cársico que o acolhia pelo seu norte. Logo, flectimos para sul e para uma planície coberta de um feno amarelado.
Twyfelfontein e a Fauna em Redor do vale do Aba-Huab
Instantes depois, avistamos avestruzes e antílopes kudus. No encalço de um outro jipe que tinha saído primeiro, Lucas desce para a pista arenosa do Aba-Huab seco.
Seguimos-lhe os meandros e trejeitos, entre árvores mopane, espinhos-de-camelo e outros tipos de acácias em que pululavam calaus curiosos.
Sem que o esperássemos, da folhagem áspera, despontam os pescoços e cabeças de girafas.
Uma, duas, três. Várias mais.
Adultas, crias, numa comunidade relativamente habituada à presença humana e que, como tal, tolerava a nossa aproximação.
Lucas mostra-se satisfeito com aquele avistamento tão rápido e fácil.
Os passageiros a bordo, partilham um mesmo entusiasmo.
Os Elefantes do Deserto de Damaraland
O guia sabia, no entanto, que as vedetas da fauna local eram outras.
De olho nas pegadas e fezes sobre o leito do rio, de ouvido nas comunicações chegadas de outros jipes, depressa as situou e revelou.
Uma grande manada de elefantes do deserto, mais de quinze, por serem de um bioma com menos alimento e água, substancialmente menores do que os seus congéneres da savana verdejante.
Devido a viverem em função da água, humidade e vegetação deste e de outros rios efémeros, habituados a avistarem as gentes namibianas e os visitantes a bordos de jipes.
De acordo, os paquidermes pouco ou nada se importunam ou reagem.
Apenas uma cria mais reguila decide manifestar indignação.
Finge investir e, para gáudio comunal, com a trombinha, atira terra na nossa direcção.
Relembramos que o rio Aba-Huab e o Huab a que se junta são os principais sustentos da flora e da fauna da região.
Há muito que tornam a Namíbia em redor menos desértica e ali atraem e mantêm uma panóplia de espécies.
Aba-Huab e Huab, fontes de Vida Fluvial que vêm da Idade da Pedra
Sabe-se, aliás, que, durante a Idade da Pedra, entre há 6000 e há 2000 anos, a zona era ainda mais vegetada e que os animais a frequentavam em maior abundância.
Encontramos o sítio com maior concentração de arte rupestre da Namíbia, Ui Aes (na língua nativa damara, Twyfelfontein no dialecto afrikans), a meros 9km do lodge homónimo.
Ocupa outra cordilheira de montes cársicos, habitados por lagartos e colónias prolíficas de hiracoides.
Lá, uma guia com pele negróide mas feições quase caucasianas acolhe-nos sob um céu azulão que combinava com o ocre rochoso.
Leva-nos aos petróglifos mais famosos, de entre os quase cinco mil que se estimam.
As Teorias em volta do petróglifo “Lion Man” e de outros mais
Seguimo-la pelo trilho do “Lion Man” assim denominado por conduzir a uma gravura de um leão com uma presa na boca, cinco dedos em cada pata e uma longa cauda levantada em L.
Estas últimas peculiaridades levaram alguns estudiosos a afirmar que se tratava, na realidade, de um homem, para o caso, um xamã a transformar-se num leão.
Na mesma face da mesma rocha ocre, cercam-no uma girafa, kudus e distintos antílopes, rinocerontes e outros.
Em mais de doze aglomerados de rochas próximos, constam também órix, avestruzes, flamingos e zebras.
Determinadas gravuras exibem figuras humanas e humanas-animais, caso do Kudu Dançante.
Outras ainda, revelam padrões geométricos, os animais retratados com linhas de movimento que os estudiosos afirmam serem consequência do transe em que entravam os xamãs durante rituais.
Como acontece com a do “Lion Man”, uma teoria facilmente rebatível.
Nos milénios e na ocupação, seguiram os caçadores-recolectores San, os pastores de etnia KhoiKhoi (damara/nama) que subsistem na Namíbia.
E, em tempos recentes, os colonos alemães e os afrikaners da África do Sul que, pelo menos em parte, substituíram os germânicos nas suas colónias de até à derrota na 1ª Guerra Mundial
Ui Aes / Twyfelfontein: a Inusitada História Colonial
Malgrado a sua importância histórica, Ui Aes / Twyfelfontein só foi declarada Monumento Nacional, pelas autoridades sul-africanas, em 1952. Mesmo assim, permaneceu desprotegido até 1986.
E só em 2007, viu o seu estatuto de Património Universal concedido pela UNESCO.
Como consequência, foi erguido um lodge (o Twyfelfontein Country Lodge) sobre o que é considerado o Lugar das Cerimónias ancestrais. Deparamo-nos também com as ruínas de uma antiga casa rural de estrutura europeia.
Ui Aes / Twyfelfontein manteve-se livre de colonos de origem europeia até pouco depois da 2ª Guerra Mundial.
Por essa altura, uma seca trágica fez com que agricultores bóeres lá se tivessem instalado, na esperança que a proximidade dos rios e uma nascente específica lhes viabilizassem a existência.
Um colono em particular, David Levin, dedicou-se a estudar a fiabilidade da tal nascente, que encontrou, mas de que não conseguiu obter água suficiente para os seus cultivos e criação de gado.
E a Origem não menos Rara do nome Twyfelfontein
Um amigo te-lo-á alcunhado de David Twyfelfontein, traduzível por “David duvida da nascente”, ou “David nascente duvidosa”. Em 1948, o próprio David Levin registou a sua propriedade com esse nome jocoso.
Em 1963, a quinta foi integrada no Plano Odendaal (1963) de reorganização étnica da África do Sul sob o regime do Apartheid.
Dois anos volvidos, mais de uma década após o início da investigação científica das gravuras, os colonos bóeres deixaram a zona, mais para sul e de volta à África do Sul.
O nome Twyfelfontein, esse, ficou, a par com o Ui Aes nativo. Tal como ficaram as milhares de obras de arte da Idade da Pedra locais.
Agora, devidamente valorizadas e protegidas, espera-se que para sempre.