Em três tempos, o helicóptero Temsco descola da base operacional contígua ao aeroporto de Juneau.
A altitude súbita revela-nos a enseada vasta de Fritz e o canal de Gastineau em que, mais ou menos a meio, se aninhou a capital alasquense.
Do lado oposto, sobre o Norte para que nos dirigimos, desvenda-se o vale de Mendenhall, sulcado pelo rio homónimo. Vemos as montanhas mais próximas do limiar da Boundary Range que, para o interior, separa o Canada dos Estados Unidos.
Em Julho, com o Verão alasquense em pleno, mantêm-se tricolores.
De um verde ensopado, da sua base até a um primeiro terço. Logo acima, de uma rocha escura salpicada e listada de neve.
E na iminência dos vários cumes afiados, cobertas de um branco uniforme de neves eternas.
Para trás desses picos, estende-se o campo de gelo de Juneau, também ele imenso, o quinto mais amplo da América do Norte, ao ponto de se prolongar pelas terras altas do Canadá.
Nuns poucos vales secundários, desciam rios abastecidos pelo degelo. Por algum tempo, sobrevoamos a floresta de coníferas de Tongass. A floresta rende-se à barreira do lago de Mendenhall e do glaciar colossal que curvava vale homónimo abaixo, com a frente semi-afundada no lago que gerava.
Entretanto, a floresta Tongass some-se. Passamos a sobrevoar o lago e, num ápice, o gelo sulcado do glaciar. A baixa altitude, o helicóptero segue os seus meandros.
Expõe-nos as fendas que aumentam e se agravam sobre a curva mais acentuada do rio de gelo.
Aterragem num Campo de Dog Mushing das Montanhas de Juneau
Ascendemos contracorrente. O piloto persegue um acampamento organizado sobre a neve, composto por cabanas para humanos e, a alguma distância, por casotas de cães, também brancas e assim dissimuladas.
Aterramos entre umas e outras. Acolhem-nos no campo de dog mushing local, para excitação generalizada dos huskies e malamutes, que já sabem o que a chegada do helicóptero representa.
Atribuem-nos uma equipa de cães. Deslizamos, aos ziguezagues, pela vastidão nevada daquele cimo remoto.
Pela segunda vez em quinze dias. Tínhamo-lo feito próximo de Seward, no glaciar de Godwin, pelo que, sempre recompensadora, a experiência carecia do factor surpresa.
Valorizamos, sobretudo, o privilégio panorâmico de, a partir do ar, nos deslumbrarmos com o conjunto Mendenhall: o vale, o lago, as torres, o glaciar e tudo o mais que tivesse recebido tal nome.
Glaciar Mendenhall: Incursão Gelo Acima. E Abaixo
De acordo, de regresso a Juneau, concordamos que os deveríamos explorar por terra e ao pormenor. Juntamo-nos a uma pequena expedição focada na descoberta terrestre do glaciar.
Tem lugar no derradeiro dia de Julho, com início às sete da manhã. A combinar com esse horário, a guia que nos conduz chama-se Dawn. Caminhamos, primeiro, por duas horas, floresta de Tongass acima, diz-nos a guia que por áreas que, há 90 anos atrás, estavam debaixo do glaciar.
Atingimos o centro de visitantes do Glaciar Mendenhall. Apreciamo-lo a partir de uma sala escura com janelas polarizadas que enquadravam e faziam destacar aquele incrível fenómeno da Natureza.
Logo, avançamos para uma lateral da frente de ablação do glaciar, para uma margem num plano inferior.
Ali, Dawn dá-nos capacetes, grampos para o calçado, arneses e martelos de gelo. Equipamo-nos com vista privilegiada sobre o lago, os icebergs que nele flutuavam e o glaciar protagonista que os libertava.
O encaixe do glaciar na margem terrosa permite-nos passar sem dificuldade para cima do gelo. Andamos por longos sulcos na superfície que o fluxo de água abre e aprofunda.
Ascendemos a montes gelados, com vista para infindáveis picos, cristas e outras esculturas naturais, frias e azuladas.
Algumas, próximas, mais pareciam máquinas dentadas, prontas a devorarem os grandes blocos de rocha que os sustinham.
Do seu interior, brotavam torrentes de água com urgência de aumentarem o lago.
Frequentadora do glaciar, conhecedora dos seus segredos, Dawn lidera o caminho para algo diferente.
E a Descida a uma Caverna de Gelo Deslumbrante
Um qualquer desajuste entre o gelo e o solo, tinha criado uma gruta azul-gelada que conduzia às profundezas do colosso, com aspecto sólido que bastasse para nela nos podermos enfiar.
Descemos tanto quanto podíamos, até quase nos transformarmos em hologramas subsumidos no azul-gelo.
Fotografamo-nos naqueles visuais místicos. Bebemos da água que caía do tecto, da mais pura e fresca que o Alasca nos poderia oferecer.
Dawn avança um pouco mais, a sondar se poderíamos continuar a descer. “Não… mais para abaixo não me parece boa ideia.” informa-nos.
“Fica demasiado escuro. Nem consigo perceber bem os contornos. Além de que, mesmo se é imperceptível, o glaciar está em movimento e pode espoletar uma qualquer surpresa. Já chegámos aqui e devem concordar que foi fabuloso.
Vamos regressar lá acima.”
Dito e feito. Não tínhamos intenções de nos sacrificar ao glaciar Mendenhall.
O Predomínio de Thomas Corwin Mendenhall na Nomenclatura Local
Já Mendenhall, Thomas Corwin (1841-1924), um físico e meteorologista, dedicou uma boa parte da sua vida à definição de fronteiras exactas na panhandle do Alasca, entre os Estados Unidos e o Canadá.
Como já vimos, o vale, o glaciar, o lago e umas torres rochosas emblemáticas nas montanhas acima, foram baptizadas em sua honra, em 1892.
Como seria de esperar, aos nativos Tlingit destas paragens, o baptismo dos colonos norte-americanos de pouco serviu.
Pelo menos, entre eles, continuam a tratá-lo por Sitaantaago – o glaciar atrás da cidade – ou ainda por Aak’wtaaksit – o glaciar por detrás do pequeno lago.
Em tempos subsequentes à sua formação de 1929, terá feito outro sentido considerar o lago pequeno. Desde o seu comprimento máximo registado a meio do século XVIII, o glaciar encolheu mais de 4km.
Por altura do maior glaciar Aak’wtaaksit, o território em redor era Tlingit com uma presença russa permanente de colonos que estabeleceram entrepostos de captura de peles, sobretudo de lontras do mar.
Panhadle do Alasca: da Presença Russa à Loucura de Seward
A partir de 1804, malgrado frequentes conflitos e batalhas contra os Tlingit, os russos fizeram de Sitka a sua capital alasquense, submeteram os Tlingit a trabalharem para eles e causaram uma ruptura drástica no estilo de vida dos nativos.
No entanto, os russos nunca fundaram uma colónia em Juneau ou em volta.
Em 1867, já o negócio das peles se começava a extinguir, os russos acederam a vender o Alasca aos Estados Unidos. O negócio ficou conhecido como “A Loucura de Seward” de tal maneira os americanos achavam insano o valor que o político oferecia aos Russos.
Ainda assim, concretizou-se.
Alguns anos depois, dois americanos – Richard Harris e Joe Juneau – guiados por um chefe Tlingit de seu nome Kowee – acharam um filão de ouro no que ficaria conhecido por Gold Creek, em redor da actual Juneau.
Seria o primeiro de vários. Nuns poucos anos de exploração da região, os americanos recuperaram a verba que tinham pago aos russos e passaram ao lucro.
Um fluxo migratório de americanos e estrangeiros inundou Juneau de forasteiros em busca de mais ouro. A própria zona do glaciar Mendenhall foi vasculhada.
De tal forma que um dos seus riachos recebeu e mantém o nome Nugget Creek (riacho das pepitas). É mais um dos que desagua no glaciar Mendenhall.
Glaciar Mendenhall e o Recuo Secular para mais longe de Juneau
O glaciar Mendenhall tem, na actualidade, quase 22km de extensão.
No recuo potenciado pelos efeitos do aquecimento global também do noroeste dos Estados Unidos, fez o lago aumentar.
Como, aos poucos, fez enriquecer o ecossistema dele dependente, de que se destacam vários tipos de salmão, salvelino, truta arco-íris e outras espécies de peixes.
Em simultâneo, em 2012, o retrocesso substancial do glaciar colocou a descoberto uma antiga floresta que o avanço ancestral havia destroçado, coberto e congelado.
Os cientistas espantaram-se quando, ao avaliarem a antiguidade dos troncos, cepos e ramos revelados, concluíram que teriam entre 1200 e 2000 anos.
Estimam ainda que, nesta era de temperaturas cada vez mais quentes, o recuo do glaciar Mendenhall se irá intensificar. Salvo reversão drástica no padrão de aquecimento, o rio de gelo vai separar-se do lago que irriga.
Vai distanciar-se ainda mais da enseada de Fritz.
E ficar cada vez mais para trás da Juneau que inspirou o curioso nome tlingit.