Aos 935 metros de altitude, mesmo em pleno Verão do Hemisfério Sul, voltamos a despertar numa Curitiba nublada e fresca.
É com esse clima que chegamos à estação de partida. Se em termos históricos, o comboio ficou conhecido como Serra do Mar, a empresa que o explora denominou-o Trem Serra Verde, de acordo com o tom predominante da viagem.
Quando a locomotiva retrocede em direcção à segunda carruagem, percebemos o quanto ambas destoavam.
Uns poucos funcionários ferroviários acoplam a máquina ao vagão, decorado com uma pintura promocional da bebida mais famosa do Mundo. São ambas vermelhas.
A terceira revela-se azul. As seguintes, por fim, têm o tom clorofilino em que, entretanto, nos embrenharíamos.
Termina o embarque. Uma anfitriã munida de microfone inaugura uma apresentação e locução que se prolongaria percurso fora. A locomotiva puxa pela composição.
Em pouco tempo, deixamos os arredores meio rurais, algo incaracterísticos da capital paranaense. Noutro tanto, entramos em desfiladeiros apertados, conquistados pela engenharia a encostas, mas que a vegetação abundante reclamou e dissimulou.
Um matagal de que se destacam grandes fetos e até bromélias roça as carruagens.
Serra do Mar Abaixo, na Direcção do Atlântico do Sul
O trem inicia a sua descida abrupta. Enfia-se numa névoa baixa com densidade intermitente, leva-nos por um desfiladeiro vertiginoso e ao cerne silvestre da Serra do Mar.
Como a víamos, forrada de vegetação tropical, sulcada por umas poucas cascatas e até lagoas que a sarapintavam de branco, aquela serrania era uma ínfima secção.
Um trecho do todo montanhoso e vegetal que se estendia há quase 1500km, com início no longínquo estado do Rio de Janeiro e passagem pelos de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O zénite paranaense da Serra do Mar, de quase 1878m, ficava algures por ali. Dificilmente a neblina o iria revelar, muito menos o túnel em que nos metemos, escavado numa rocha tingida por líquenes e musgo.
Era o primeiro de uma sequência de catorze e trinta pontes e viadutos essenciais ao fluxo das composições nos 110km do caminho-de-ferro original e integral.
Devido ao seu arrojo, um viaduto em particular, o do Presidente Carvalho (presidente do estado do Paraná durante a construção), acrescentado acima de um precipício e que dá para outro túnel inesperado, tornou-se a imagem de marca do comboio.
Em breve, por lá passamos, abismados pela vastidão do vale à direita, intrigados quanto ao que nos reservava o lado de lá da escuridão.
Mesmo se não tão vertiginosa, o que encontramos é mais Serra do Mar, íngreme, caprichosa, em que o comboio homónimo serpenteava apontado ao Atlântico.
A intervalos, a composição abrandava, quase se imobilizava.
Cordilheira Marumbi. Uma Secção da Imensa Serra do Mar
Deteve-se por completo na base do Pico e cordilheira Marumbi. Ali, vemos desembarcar um grupo de caminheiros carregados com mochilas.
Iam inaugurar uma caminhada exigente ao cimo da serrania, feito de sete picos rochosos, mas repletos de vegetação: o Boa Vista, o Gigante, o Ponta do Tigre, o Esfinge, a Torre dos Sinos, o Abrolhos e o Facãozinho.
Nós, e os restantes passageiros, aproximávamo-nos das quatro horas de trajecto e da estação final de Morretes.
Estas quatro horas que passámos em modo recreativo e panorâmico são resultado de uma empreitada ambiciosa e esforçada que se arrastou por cinco anos.
Antes do Trem do Serra do Mar, a Sinuosa Estrada da Graciosa
Em função da reportagem que realizámos na região, chegamos a percorrer a Estrada da Graciosa, concluída em 1873 (12 anos antes do Trem Serra do Mar) e que, nesse tempo, foi a única ligação entre o Planalto Paranaense a Morretes e à beira-mar.
Tão histórica como elegante, a estrada mantem boa parte do calçadão original, sobreposto aos trilhos antes usados pelos indígenas e aos caminhos alargados pelos tropeiros que conduziam gado do interior elevado para o litoral.
Nessa dúzia de anos, a Estrada da Graciosa ajudou os fazendeiros e criadores de gado a transportarem as suas mercancias até Paranaguá.
Revelou-se, todavia, demasiado íngreme, sinuosa e complicada para as despachar em grande quantidade e de forma rápida.
Como tal, uma série de personalidades influentes e com interesses comerciais do recém-independentizado Brasil requereram concessões imperiais para construírem um caminho-de-ferro complementar.
Por dificuldades financeiras e operacionais, as duas primeiras tentativas falharam.
O Projecto Megalómano da Ferrovia Serra do Mar
A terceira, partiu de uma empresa francesa, a Compagnie Generalle des Chemins de Fer Bresiliens, liderada no Brasil pelo italiano Antonio Ferrucci que tinha como principal credencial a sua participação no projecto do Canal do Suez.
Esta empresa, por fim, conseguiu a necessária concessão imperial.
Em 1880, com a presença do Imperador Dom Pedro II, inaugurou as obras, executados por cerca de 9000 mil trabalhadores livres.
Apesar de, por essa altura, a escravatura perdurar no Brasil.
As obras depressa se provaram desafiantes. Como veio a concluir António Ferrucci, demasiado arriscadas. Davam-se desabamentos sobre as estruturas erguidas.
O mais notório terá sido o do trecho do Rochedinho, substituído pelo tal arrojado e emblemático Viaduto Presidente Carvalho.
Descontente com este e outros revezes, em 1882, António Ferrucci acabou por abandonar o projecto. Ocupou o seu lugar João Teixeira Soares, um engenheiro ferroviário brasileiro, sócio da Compagnie Generalle des Chemins de Fer Bresiliens.
Sob a sua liderança, o caminho de ferro integral foi inaugurado em 1885, com a devida pompa e circunstância.
E, para estragar a festa, protestos dos carroceiros e trabalhadores que, até então, asseguravam o transporte de carga sobre carroças pela Estrada da Graciosa.
Enfim, Terras planas e a Estação Terminal de Morretes
A composição faz-se a terras aplanadas entre a Serra do Mar e o Atlântico do Sul.
Abranda.
Detém-se na estação de Morretes, já a meros oito metros de altitude. Desembarcados, percebemos o provável sentido do nome.
A povoação tem vista privilegiada para a cordilheira Marumbi e essa vista dos montes terá sido popularizada como Morretes.
O título da cidade foi, não obstante alvo de disputa, ora sendo considerada Nhundiaquara (peixe + buraco) – o termo tupi-guarani que define o rio local – ora passando a Morretes.
Morretes prevaleceu como o baptismo do povoado fundado por mineradores paulistas que se estabeleceram, no seculo XVII, em busca de ouro. Seguiram-nos outros colonos e famílias.
E, logo, a Igreja que lá ergueu um seu templo, por estes dias, alvo, com molduras azuis condizentes com o céu de que se destacam os sete morros na distância.
Em Morretes, desvendamos o casario secular pitoresco, alinhado com a margem do rio.
Barreado, sabor de Morretes, com Origem nos Açores
Instalamo-nos no mais famoso restaurante, refrescados pelo caudal escuro, de que temos vista por entre arcadas de um dos vários casarões coloniais da povoação.
Lá nos deliciamos com o prato típico da agora cidade, o barreado, diminutivo de carne barreada, da forma como era lentamente cozinhada em panelas resistentes, de barro que aguentam cozeduras de vinte horas ou mais.
Como seria de esperar, à imagem da feijoada brasileira em geral, também o barreado tem a sua génese em Portugal.
Levaram-no para o sul do Brasil, durante o século XVIII, emigrantes açorianos que se diz terem começado a disseminar aquela forma única de cozinhar a carne de vaca, acompanhada de arroz, farinha de mandioca, banana, com o sabor enriquecido por tudo o mais que integra a receita.
O Barreado provou-se, sempre, uma refeição pesada, mas revigorante.
Os tropeiros habituaram-se a pedi-lo, à chegada das suas jornadas das terras altas do Paraná.
À era do Tropeirismo, Morretes mantinha-se prolífica, repleta de comércios que serviam as gentes do litoral e as que, como os Tropeiros, chegavam do Planalto Paranaense.
Reforçou a sua riqueza o facto de empresários radicados em volta do porto de Paranaguá lá terem instalado engenhos de beneficiamento da cada vez mais procurada erva-mate, estruturas de moagem que separavam os ramos e o pó das valiosas folhas da planta.
Ora, por mais irónico que possa soar, a chegada do Trem da Serra do Mar a Morretes acabou com este processo lucrativo e com o protagonismo da vila.
Uma ponte ferroviária sobre o rio Nhundiaquara subsiste como testemunho férreo desse declínio.
Hoje, a Morretes, cabe sobretudo a fama e o proveito turístico. Paranaguá, a sua baía ampla e o porto ficaram com tudo o mais. Paranaguá é, todavia, toda uma outra história.