Vinda do Mar das Caraíbas, a frente fria que havia visitado aquela estranha protuberância mexicana começava a dar parte fraca.
O dono de uma loja de recuerdos da Plaza Grande sabia bem que quando o sol começava a entrar pelos retalhos de azul celeste não tardaria a reclamar o seu domínio tropical.
De acordo, inconformado com alguns sinais de envelhecimento precoce do boneco mariachi à porta do seu negócio, armou-se de pequenas latas de tinta e de pincéis e retoca-o de volta à perfeição.
Gerada e enraizada no centro-oeste do país, a tradição mariachi pouco ou nada tem que ver com Mérida ou a isolada Península do Iucatão em geral, para lá de, em termos oficiais, também estarmos no México.
Cancun e a Riviera Maia distam meras quatro horas por estrada.
A maior parte dos gringos que aterram nos seus aeroportos e nas espreguiçadeiras dos inúmeros resorts não conhece o suficiente do México para detectar a incongruência.
São raros os que deixam o requinte balnear plástico dos hotéis e estâncias iucatecas do caribe determinados a chegar tão longe como Mérida.
Por norma, o limite da sua exploração pelo interior do Iucatão fica no famoso complexo arqueológico de Chichén Itzá, antigo centro político e económico da civilização Maia, uma das várias etnias indígenas que integram a nação mexicana.
Tal como Chichén Itzá, o local em que hoje se espraia Mérida já era uma importante cidade Maia séculos antes da chegada do conquistador espanhol Francisco de Montejo y León (El Mozo) e dos seus homens.
A Sobreposição dos Conquistadores Espanhóis ao Povoado Indígena
Foi em 1542 que estes conquistaram T’Hó, um povoado repleto de pirâmides de que os colonos removeram as pedras criteriosamente esculpidas pelos nativos e com elas ergueram os seus próprios edifícios.
Alguns historiadores consideram a Mérida mexicana a cidade das Américas há mais tempo ocupada em contínuo, há bem mais anos que o povoado homónimo da vizinha Venezuela, e há muitos mais que o das Filipinas.
Preocupados com as revoltas frequentes dos indígenas maias, os residentes peninsulares e mestiços mantiveram a Mérida da península do Iucatão muralhada.
Os paredões de pedra calcária, os defensores e as epidemias de varíola e outras trazidas do Velho Mundo aniquilaram as pretensões de reconquista dos nativos.
Muitos dos edifícios coloniais erguidos até ao século XIX permanecem intactos no centro histórico, em redor do parque frondoso e rectangular da Plaza Grande.
Em hora de ponta, demasiado infernal para o que o encanto deste cientro merecia, um trânsito repleto de velhos fuscas barulhentos, contorna-a.
À hora do pico do calor, só uns poucos veículos a percorrem.
A Presença e Vida Maia na Cidade Colonial de Mérida
“Señores, no quieren acaso hamacas? “pergunta-nos uma mulher maia, de muito baixa estatura – como quase todas – que traja um vestido branco com limites bordados, à sombra de uma árvore secular e na companhia de algumas moradoras mestiças.
Passamos os olhos pela sua pilha multicolor de redes de repouso enoveladas. O produto não nos seduz. A vendedora aposta em protelar a venda: “Quizás más tarde?”
Tal como as congéneres espanhola, venezuelana e filipina, esta Mérida tem uma forte génese hispânica mas, passados os confrontos históricos, nenhuma outra grande cidade mexicana acolhe, hoje, tantos habitantes maias como a capital do estado de Iucatão (cerca de 60% da sua população).
Claro está que, fruto da longa supremacia dos colonos, os negócios estabelecidos nos principais edifícios da cidade estão entregues aos criollos (habitantes já nascidos no México mas com ascendência hispânica).
À maior parte das mulheres Maias, restam algumas bancas do enorme mercado local ou patrulhar os recantos turísticos da cidade de olho nas autoridades que nem sempre lhes perdoam as multas devidas pela ilegalidade da venda ambulante.
O Cabildo Monumental de Mérida e a Vista Desafogada das suas Varandas
Essas e outras leis emanam do cabildo, instalado noutro edifício secular elegante sustentado por arcadas abobadadas e de que se projecta uma torre de relógio suprema.
Saímos da sombra do jardim, atravessamos uma passadeira amarela e subimos uma escadaria interior que nos revela diversas salas com decorações faustosas de antiquário.
Ninguém questiona a nossa incursão, razão porque só nos detemos sobre o parapeito do longo varandim do edifício.
Dali, apreciamos a Plaza de la Independência (nome oficial da Plaza Grande).
Vêmo-la acima do tecto formado pelas copas de grandes loureiros, perfurado pela bandeira mexicana no seu centro, pelo frontão e pelas torres da Catedral e cimos de outros edifícios quase tão altivos.
Enquanto o fazemos, uma troupe em vestes artísticas atravessa a mesma passadeira que havíamos cruzado e sobe ao cabildo.
O Orgulho Meridenho do Agente Policial J. Mian
Antes de regressarmos à realidade térrea da cidade, o agente policial J. Mian aparece do interior do edifício com a missão de controlar a legitimidade do inesperado ajuntamento.
Conversa puxa, conversa, acabamos por o incluir na nossa própria sessão fotográfica.
As câmaras não só não o intimidam ou preocupam – algo raro quanto se trata de um braço da lei – como o deixam visivelmente orgulhoso, a posar de braços atrás das costas e feições endurecidas.
“A ver, a ver….” roga-nos para poder espreitar o pequeno monitor com a avidez de um Narciso fardado e fora de si. ”Muy bién, muy bién, soy el agente Mian.”
A Azáfama Comercial de Mérida e um Núcleo Gastronómico Providencial
A determinada altura, o sol estava a pique, o calor e a humidade intensificavam-se e agravavam a poluição residente nas ruas entupidas por vendedores de tudo um pouco.
Passámos por uma sucessão de sapatarias e lojas de roupa, legados distantes da bonança económica dos anos 80 e 90, quando inúmeras maquiladoras (fábricas de confecção têxtil) da zona produziam e vendiam, com enormes lucros, uma panóplia de peças de roupa.
Contornámos várias lojas repletas de bugigangas chinesas e a fachada do Mercado Municipal Lucas de Galvez.
Na sequência, subimos uma escadaria e, nas traseiras, demos com um terraço intermédio ocupado pelos incontornáveis comedores (pequenos restaurantes) que quase sempre complementam os mercados. Era o que procurávamos.
Num ápice, nove ou dez donas de pequenos restaurantes inauguraram uma disputa frenética pela nossa atenção e pelos pesos mexicanos, e obrigaram-nos a escolher as oito ou nove que iríamos rejeitar. Não estávamos com paciência ou sequer com energia para comparar menus.
Numa das paredes, um painel com uma pirâmide e outros motivos maias pintados num kitsch manchado pelo tempo publicitava o negócio de Carmita La Mesticita!
É lá que nos sentamos, instigados pela suavidade do apelo da proprietária: “Bienvenidos señores. Que les puedo servir?” e saboreamos um revigorante almoço tradicional mestiço, enquanto aguardamos que o calor dê de si.
Um motorista de taxi que connosco mete conversa interessa-se por comida e saúde. Testemunha sem qualquer receio que os repastos tradicionais iucatecas são meio caminho para uma vida longa: “desde que não se coma a porcaria que os gringos para cá trouxeram, tem-se tudo para viver muito e bem.
O meu pai já conta 90 anos. A minha mãe vai com 80. E dois dos meus avós estão vivos com mais de 100.”
Estará cheio de razão.
A Grande Catedral de Mérida e a Vida Mestiça de Mérida em Redor
Com o entardecer, caminhamos em direcção à Praça de Santa Lucia, palco de espectáculos musicais e de dança que não queríamos perder.
Pelo caminho, espreitamos com atenção redobrada a Catedral de Mérida.
À direita da sua porta sul, há uma pintura de Tutul Xiú, um cacique maia aliado de Francisco de Montejo. Juntos, Montejo e Xiú derrotaram os maias Cocomes.
Em seguida, Xiú converteu-se ao Cristianismo.
Os seus descendentes ainda vivem em Mérida.
Do lado oposto da rua, descortinamos uma outra cena digna dos tempos dos senhores e seus vassalos, se bem que passada nos nossos dias.
O dono de uma pequena frota de calesas turísticas fala ao telemóvel refastelado no banco de uma delas.
Cinco condutores e auxiliares todos igualmente sob chapéus de vaqueros fazem-lhe uma óbvia companhia subalterna sentados nos restantes assentos e em redor.
Aguardam por instruções ou por passageiros que tardam em chegar e sorriem deleitados quando nos mostramos obcecados pela pitoresca cena.
A Vaqueria Iucateca
Continuamos a afastar-nos da Plaza Grande em direcção à de Santa Lucia, entre mais e mais fachadas de grandes casas senhoriais adaptadas a museus, instituições estatais ou privadas ou negócios elegantes.
Quando chegamos, constatamos o laxismo da pontualidade mexicana.
Não vemos sinal do espectáculo que era suposto estar prestes a começar. Um vendedor ambulante ainda instala uma banca de snacks.
Dois jovens irmãos impingem-nos pulseiritas e colheritas de artesanato. Pouco depois, chegam os técnicos encarregues de afinar o som e os primeiros aficionados da vaquería Yucateca – assim se chama a exibição regular – determinados em conseguir lugar na primeira fila.
Passada uma hora, a plateia está composta.
Um apresentador octogenário mas em grande forma surge em trajes típicos, numa guayabera, calças e alpergatas iucatecas brancas.
Inaugura o show e uma série de piadas no intervalo de cada actuação que, popularuchas e deveras machistas, arrancam gargalhadas histéricas entre o público feminino. “Las mujeres son como la yerbabuena. Arriba tienen la yerba y abajo la cosa buena”…
Entram com grande destaque os artistas argentinos com que nos tínhamos encontrado no cabildo e nas ruas da cidade. Pelo meio, há declamação de poesia.
Antes do encerramento têm lugar os actos a que os espectadores estão mais que fartos de assistir mas que, ainda assim, preferem.
Ficamos a conhecer o folclore regional do estado de Iucatão acelerado e diversificado a que se convencionou chamar vaquería iucateca.
Moda que teve origem nas festas populares que os grandes criadores de gado daquelas partes das Américas organizavam, especialmente antes da ferragem dos animais.
A tarefa que implicava um enorme esforço. Merecia uma recompensa à altura.