Sobre a 1h30 da tarde, vencemos o derradeiro meandro da estrada Muktinath Sadak.
Por muito que nos tentássemos abstrair, voltarmos a carregar as mochilas com o seu peso máximo sobre as costas.
O facto de termos cumprido boa parte do caminho a descer e sobre asfalto, gera um desgaste inesperado que parecia redobrar uma fome já intensa.
Entre nós, alguém tinha retido a informação de uma boa pousada, em Kagbeni.
Encontramo-la acima da povoação, com vista privilegiada sobre uma vastidão de arrozais verdejantes, o casario secular e o vale fluvial adiante. Chamava-se “Dragon Hotel”.
O Acolhimento Providencial do “Dragon Hotel”
Os quartos parecem-nos bem, não que alguma vez tivéssemos sido exigentes, como, até então, o tínhamos sido com os banhos. O casal ao serviço promete-nos que os duches funcionam com água quente e bem.
Afiança-nos que, esses, eram problemas lá das terras mais altas dos Annapurnas. Kagbeni era maior, menos elevada e, sobretudo naquela altura do ano, as canalizações não gelavam, como até poderia acontecer no Inverno. Por si só, a explicação soa-nos a alívio.
Falham, no entanto, em perceber a urgência do almoço. Em vez de o apressarem, contam-nos mais sobre o alojamento. “… este hotel foi construído por um nepalês de cá que trabalhou quinze anos no Japão, na Toyota de Nagoya. Quando voltou, aplicou quase tudo o que tinha ganho na sua construção, em pedra e cimento, nada de madeira!”
Nós, a Sara, o Manel e o Josh partilhávamos o mesmo tipo de apetite voraz. Sem sequer o combinarmos, sentamo-nos à mesa sem que os donos nos tivessem chamado.
Tagarelamos a forte ritmo, sobre tudo um pouco, incluindo a partida da Sara e do Manel que tinham voo internacional de Kathmandu daí a dois dias e que, como tal, deviam chegar a Jomson o quanto antes, para, de lá, apanharem o autocarro para Pokhara.
Mais de uma hora de cavaqueira após termos feito o pedido, por fim, o casal do “Dragon Hotel” traz a comida para a mesa. Pelo que víamos, tinha valido a espera.
Noutra situação, os hambúrgueres vegetarianos com batatas caseiras fritas poderiam provar-se coisa pouca. Ali, depois de quase quinze dias a comermos os mesmos pratos elementares, souberam-nos a recompensa.
Findo o repasto, despedimo-nos da Sara e do Manel, já sob uma chuvada e trovoada que lhes atormentou a viagem para Jomson e com que não estávamos a contar.
A tormenta também furta a Kagbeni o seu abastecimento de electricidade. Pelas quatro da tarde, confrontados com uma bátega e um escurecer antecipado pelas nuvens carregadas, decidimos adiarmos a descoberta de Kagbeni.
Beneficiava-nos o facto de podermos estender o Circuito dos Annapurnas tanto quanto quiséssemos.
Deitamo-nos cedo.
Périplo pof Kagbeni, com Veneração da Sua Gompa Secular
Despertamos às seis e meia. Três quartos de hora depois, já descíamos para o centro da povoação.
Kagbeni revela-se diminuta, mas labiríntica.
Desenvolveu-se em volta do cerne religioso da gompa (mosteiro tibetano) Kag Chode Thupten Samphel Ling, fundado, em 1429, por Tenpai Gyaltsen, um erudito do clã Xáquia a que pertenceu também Siddharta Gautama, o “grande sábio dos xáquias”, mais conhecido por Buda.
Encontramos o edifício original da gompa num quase cubo de tom de tijolo, imposto ao sopé de uma encosta íngreme e terrosa, com a companhia de uma edificação mais moderna.
Segundo explica uma publicação local, o longo nome Kag Chode Thupten Samphel Ling tem como significado “mosteiro do lugar para parar e desenvolver concentração nos ensinamentos do senhor Buda.”
Ora, até meio do século XVIII, o mosteiro acolhia cerca de cem monges budistas provenientes de doze aldeias circundantes.
Cruzamo-nos com uns poucos, cinco ou seis, em vaivéns entre um edifício e o outro, sendo que, no secundário, mantinham tarefas de responsabilidade.
Começamos por espreitar a gompa.
Sumptuosa, de atmosfera lúgubre apenas iluminada pela janela solitária na sua fachada e por uma série de velas.
Desse breu, sobre o altar do templo, destacam-se as estátuas de bronze de Buda, ladeado pelos seus discípulos Sariputra, Maudgalanya e por outras divindades.
Depressa descobrimos dezenas de jovens alunos submetidos à tarefa aturada em que se traduz o nome do mosteiro.
A maior parte, numa sala de aula com janelas abertas ao exterior.
Uns poucos, a estudarem num terraço solarengo, sobre tapetes, com uma vista desafogada em redor culminada pelo pico da montanha Sangdachhe Himal (6.403m), uma das intermédias do Nepal.
O Labirinto de Pedra e Barro de Kagbeni
Contada mais de uma hora no mosteiro, partimos para as ruas e ruelas em que se multiplicou Kagbeni, na sua zona mais antiga, entre lares antigos feitos de madeira e barro seco, reforçado por secções fulcrais de pedra.
Dos cimos de muitos destes lares ondulam ao vento estandartes budistas, alguns brancos, outros, multicolores.
Quase todos, junto a pilhas de lenha providenciais.
Cruzamo-nos com alguns dos cerca de seiscentos moradores da povoação, entregues ao seu dia-a-dia.
Uma mulher prestes a entrar num curral, carrega um fardo de erva seca.
Outra, lava algo num chafariz próximo da sua casa.
Um grupo menos atarefado põe a conversa em dia, com a bênção do totem local da fertilidade feminina, moldada em barro, de olhos e seios bem esbugalhados.
Cruzamo-nos com ovelhas deambulantes.
Umas ruelas depois, com uma mulher que fala ao telefone junto ao totem oposto, o da fertilidade masculina, representado por um guerreiro de espada e pénis hirtos.
Nos arredores, sem surpresa, deambulam iaques.
Kagbeni tem, inclusive, um tal de hotel Yac Donalds tornado famoso pela colagem não só ao nome, como à identidade gráfica da marca de fast junk food.
Há Séculos na Confluência do rio Gandaki com o Kali
Na região, Kagbeni também é tratada por “ghaak”, o termo para uma junção apertada.
Na sua íntegra, o nome oficial de Kagbeni resume a confluência do rio Kali (ka) com o Gandaki (g..a), ambos provenientes de terras mais altas e sagrados, tanto para Budistas como para Hindus.
Kagbeni ter-se-á desenvolvido, de início, assente na sua função primordial de taxação monárquica das caravanas de sal que circulavam entre o Tibete, a Índia, Manang e Dolpa, no oeste do Nepal.
Mais tarde, também como escala do caminho peregrino para o templo de Muktinath por que tínhamos passado no dia anterior.
Os habitantes da povoação original, bem mais antiga, mudaram-se já por duas vezes, dizem os anciãos que, em ambos os casos, devido a acontecimentos e actividades paranormais que só tiveram término quando, por fim, se instalaram no lugar actual.
Monções Descontroladas e Enxurradas Devastadoras
Distintos fenómenos, desta feita naturais, voltaram a apoquentar as suas gentes.
Em Agosto de 2023, em plena época de monção, o afluente Kag do rio Gandaki transbordou das chuvas copiosas que caíram dias a fio.
A enxurrada fez desaparecerem oito edifícios.
No total, dezanove ficaram seriamente destruídos, num dano para Kagbeni que se considera irreparável.
E, no entanto, quando por lá andámos, em Março, até mesmo o grande Gandaki que se agiganta durante o degelo e as monções, parecia um qualquer riacho a sulcar um mar de seixos e brita.
A determinada altura, resolvemos descer para o leito do rio nas traseiras da povoação.
Uma ponte mal-arranjada de sacos de areia, troncos e tábuas permitia vencer os dois braços por que o caudal principal se dividia.
Cruzamo-los, para cá e para lá.
O suficiente para admirarmos o casario e o mosteiro que o encerrava no fundo do desfiladeiro, agora, com muito mais da montanha Sangdachhe Himal visível.
A espaços, um ou outro morador da região passava por nós, apontado a Kagbeni.
O Limiar Proibitivo (pelo preço) do ex-Reino do Alto Mustang
Satisfeitos com o panorama, mudamo-nos para a margem esquerda do rio, aquela em que instalou o povoado.
Damos com um novo caminho no limiar de Kagbeni e com um sinal negro, com letras amarelas que sustentava um “aviso importante”.
Dali em diante, estaríamos a entrar numa área restrita do Alto Mustang.
As autoridades concediam excepção e passagem a três lugares, todos pouco distantes.
O acesso para além destes pontos, carecia de uma autorização especial. Segundo havíamos apurado, com um custo de 500 usd, por pessoa, para dez dias.
Exorbitante, se comparado com os permits do Circuito Annapurna, é módico se tivermos em conta o histórico de absoluta interdição desta região, em tempos conhecida por Reino de Lo e que tém capital na cidade murada de Lo Manthang.
O Alto Mustang manteve-se como reino até 2008, o ano em que o suserano Nepal passou de monarquia a república e obrigou a monarquia subalterna a ajustar-se.
Os seus muitos séculos de clausura fazem com que a região a norte de Kagbeni preserve as tradições e dialectos tibetanos ancestrais.
Com a China a impor os modos da civilização Han ao vasto Tibete, também o Alto Mustang muda. Ao mesmo tempo, a fama de mistério do antigo reino tem atraído mais e mais visitantes, sobretudo ocidentais.
Naquele momento, com o sinal pela frente, seduz-nos a ideia de adicionarmos ao périplo pelos Annapurnas uma embaixada a Lo Manthang.
Só que estávamos a viajar pela Índia e Nepal havia quatro meses.
Os mil dólares e os dez dias extra iam condicionar outros planos e lugares imperdíveis.
Mantemos esse ensejo.