Com mais de 20 milhões de habitantes numa vasta área metropolitana, esta megalópole marca, a partir do seu cerne de zócalo, o pulsar espiritual de uma nação desde sempre vulnerável e dramática.
Em plena hora de ponta, a viagem de metro do aeroporto para o centro depressa se revela uma aventura. As carruagens seguem demasiado cheias e as autoridades presentes nos corredores subterrâneos também sobrelotados seguem à letra a instrução de separarem homens para as primeiras e as senhoras para as últimas, com o propósito de as defenderem de carteiristas e contactos indesejados. Desconhecemos o metropolitano da Cidade do México e os seus perigos mas parece-nos que uma separação forçada só nos pode tornar mais vulneráveis. Relembramos aos policias que acabamos de chegar, convencemo-los a deixar-nos seguir juntos para uma das carruagens dianteiras e resistimos juntos e incólumes à praga de carteiristas que, percebemos entretanto, quase sempre ataca os estrangeiros em estações centrais como Hidalgo, Cuauhtémoc e Alameda Central.
Estamos de rastos e a noite começa a cair quando passamos finalmente para o exterior da cidade através de uma das muitas saídas do Zócalo e nos deslumbramos com a dimensão (240 por 240 metros) e o dramatismo da enorme Plaza de la Constitución. Enquanto procuramos o sítio em que é suposto nos instalarmos, sentimos o peso histórico das arcadas longas porque nos movemos. E começamos a absorver o protagonismo da D.F. (distrito federal) – assim a preferem tratar os mexicanos – e a perceber melhor porque se tornou numa das maiores e mais desejadas cidades do mundo.
Depois de conquistada pelos espanhóis, a antiga capital asteca Tenochtitlán, na altura com 200.000 habitantes, foi sendo arrasada para dar lugar a uma nova cidade. Em apenas cinco séculos, a Cidade do México – como passou a chamar-se – transformou-se numa megalópole em permanente expansão que ocupa mais de 2000 quilómetros do leito seco do lago de Texcoco.
Com 20 milhões de pessoas, é a terceira maior cidade à face da Terra – e acolhe, todos os dias, 1100 novos recém-chegados. Os paracaidistas, como os residentes lhes chamam, vêm de todos os cantos do país atraídos pela concentração de oportunidades quase sempre já aproveitadas e instalam-se nos subúrbios, alguns situados a muitas dezenas de quilómetros do centro. Graças a este influxo, a capital conquistou os atributos de dimensão, pobreza e insegurança que lhe reconhecemos mas, que por si só, se provam injustos. A cidade até pode ser, no geral, descontrolada, violenta e poluída, mas as suas zonas nobres têm o poder de deslumbrar.
De todas, a que mais se destaca é sem dúvida o Zócalo, uma enorme praça delimitada por edifícios grandiosos: a Norte, a Catedral Metropolitana, a maior do continente americano e uma das maiores do mundo; a Sul e a Oeste palacetes erguidos sobre arcadas que albergam gabinetes governamentais e hotéis e a Leste, o Palácio Nacional, onde tem início, todos os fins de tarde, a cerimónia do recolher da bandeira, um ritual militarista que emociona até à lágrima os mexicanos mais patriotas.
Por volta das 17h e 30, os portões abrem-se e, do interior, sai um grupo de soldados que força a paragem do trânsito. Com o caminho desimpedido, duas enormes colunas de militares dirigem-se paralelamente para o centro da praça e formam um quadrado à volta do mastro da gigantesca bandeira nacional. À volta desta barreira humana, centenas de pessoas aguardam o momento alto do protocolo.
Ao som do hino, a bandeira é então descida, cuidadosamente dobrada e levada pelas mãos de vários oficiais para o palácio.
Quem dera às autoridades que tudo, por aqui, fosse assim tão ordeiro. Durante o dia, os passeios à volta da praça estão repletos de vendedores que se instalam à frente de estabelecimentos requintados, alguns deles pertencentes a poderosas cadeias multinacionais. Esta feira torna-se ainda mais densa na área que se estende para trás do Palácio Nacional, um autêntico domínio ambulante onde a população se vem abastecer.
Apesar da paisagem caótica, o Zócalo e redondezas são das zonas mais seguras da cidade. Até há algum tempo atrás, os assaltos a estabelecimentos eram frequentes, mas com o surgimento dos centros joyeros e de outras lojas sofisticadas, além do reforço da polícia pública, foram criadas várias empresas de segurança privada.
De um momento para o outro, a baixa da cidade viu-se protegida por inúmeros Robocops à mexicana. Ao mesmo tempo, reboques de fabrico americano passaram a varrer as ruas. Qualquer carro indevidamente parado é brindado com sirenes estridentes e ordens para avançar enviadas via megafone: “Adelante…! Adelante…! ”
Chegamos a Sábado à tarde. O Zócalo fervilha de vida. Um grupo de índios dança ao som de tambores, envolto por uma pequena multidão. Estão pintados e trajados a rigor, com máscaras, peles e penas, joias e outros artefactos de ouro e prata. Subitamente interrompem o espectáculo. Um deles, pede às pessoas em redor para se aproximarem e começa a discursar. São palavras de apelo e protesto. Fala da forma de vida das tribos originais, tão diferente da que os mexicanos agora levam. De como só bebiam água de nascente, de como, para precaver problemas de saúde, cozinhavam e comiam nopal (uma espécie de cacto) e de como dormiam no chão duro para preservar uma postura recta. Durante algum tempo, descreve estes e muitos outros comportamentos perdidos. Pelo meio profere frases em Nahuatl, uma língua também votada à extinção.
Os Nahuas – descendentes directos dos Astecas – não estão satisfeitos com o rumo que a nação tomou: como se não bastasse a conquista dos espanhóis, assistem, cada vez mais, à “invasão” dos gringos. Esta é apenas uma manifestação do conflito interno em que vive a alma mexicana. Quinhentos anos depois, o país continua dividido entre o passado e o presente e, se em quase todos os rostos se detecta uma mistura de feições índias e europeias, nos corações há paixão pelo imperador mártir Cuauhtémoc e ódio pelo vilão Hernán Cortés.
Neste país demasiado próximo do vizinho americano, a independência financeira, política e cultural está sempre sob pressão. E se a forma de vida indígena continua oprimida e à margem, os costumes mestiços também estão agora sob ameaça. Depois de os E.U.A. terem ficado, no século XIX, com vários estados que compunham o México original: Califórnia, Texas, Utah, Colorado, a maior parte do Novo México e do Arizona, a poderosa cultura ianque parece estar pronta para conquistar o resto.
O antigo presidente, Vicente Fox, rancheiro e ex-chefe de operações da Coca-Cola no México é, talvez, o melhor exemplo disso. Todos os dias surge sob um chapéu de cowboy, em canais de televisão tão americanizados como a cadeia Fox, de que é dono e grande parte dos investimentos feitos no país partem de empresas suas. Não há forma de escapar. O que quer que se faça, compre ou use na Cidade do México e no país em geral, tem directa ou indirectamente, influência dos Estados Unidos.
Mas, apesar de todas as adversidades, os Nahuas não desistem. No próximo fim-de-semana ou feriado, assim que o Zócalo se encher de gente, vão, de novo, dar início à sua pequena manifestação. Por entre o público que se reunir à volta e a população em geral, haverá sempre quem se mostre revoltado mas, à imagem do que aconteceu durante a conquista espanhola, os mexicanos estão demasiado ocupados a viver para resistirem à perda da sua identidade.