As Três Cidades do leste de Malta instalaram-se, há vários séculos, em pequenas penínsulas bem destacadas no mapa.
Estes recortes caprichosos fazem com que tenhamos a cidade vizinha quase sempre à distância de um estreito braço de mar mas com que sejamos obrigamos a voltas, de início incompreensíveis, para a alcançar.
Deixamos Vittoriosa e a penumbra do seu Palácio do Inquisidor. Metemo-nos no carro. Apontamos a Senglea.
Avançamos ao longo da marina repleta de veleiros que as separa até alcançarmos o seu término. Cortamos à direita numa rotunda simbólica e, logo, para uma nova estrada de sentido único.
Assola-nos, de imediato, a sensação de termos entrado noutro domínio.
A Curta Viagem entre Vittoriosa e Senglea
Damos com a Cottonera – a margem contrária da mesma marina – agora com Vittoriosa pela frente. O fim desta marginal desemboca no Senglea Point.
Revela, do lado de lá, o canal principal do Grande Porto e o casario sumptuoso de Valleta. Cedemos à ambição de o admirar de mais alto. Sabíamos o nome do lugar de onde era possível, só nos faltava lá chegar.
Perguntamos direcções a um pescador. O homem não está com meias medidas: “Ora aí está um sítio especial. Venham atrás de mim, eu deixo-vos à entrada”.
La Guardiola, um Recanto Fortemente Panorâmico de Senglea
Subimos a vertente oposta do promontório, vencemos um gancho à segunda tentativa, e pelo sinal do guia, percebemos que tínhamos encontrado La Guardiola.
Atravessamos o jardim local e encontramos, numa posição central e protuberante, uma guarita elegante de arenito como a maior parte dos edifícios históricos das Três Cidades e de Malta.
O ocaso alaranja Valleta, Vittoriosa e Cospicua enquanto pequenos barcos dghajsa Tal-Midalji transportam os últimos passageiros do dia.
Acompanhamos a sucessão gradual dos derradeiros tons do crepúsculo.
E um torneio amigável de futebol que tem lugar numa espécie de ringue com relva sintética, ajustado com mestria geométrica no entre o sopé das muralhas e o mar.
“Amigos, desculpem mas têm que sair. Vamos encerrar o jardim.” informa-nos um ancião na companhia da sua neta. “Senão fechamos isto à noite, vêm para cá os miúdos beber e drogar-se.”
Mestre Claude de La Senglea e a Resiliência de Senglea, a Civitas Invicta
Mesmo algo contrariados, rendemo-nos à sinceridade e ao instinto protector secular dos moradores daquelas paragens.
A ponta da ilha em que nos encontrávamos já era urbanizada havia algum tempo quando, em 1552, acolheu a construção do Bastião de São Miguel.
A cidade muralhada de Senglea – assim baptizada em honra do grande mestre Claude de La Sengle – desenvolveu-se nos anos seguintes.
Tornar-se-ia na única a resistir ao cerco de Malta imposto pelo Império Otomano aos Cavaleiros Hospitalários.
Jean Parisot de Valette, o mestre que deu origem ao nome La Valetta, fez questão de homenagear a bravura da nova povoação. Atribuiu-lhe o cognome Civitas Invicta.
Com o tempo, a cidade desenvolveu a sua própria versão da arquitectura pitoresca de La Valletta.
A fortificação de La Guardiola, essa, só foi instalada em 1692, com o fim de assegurar a vigia e a destruição de embarcações inimigas vindas do Mediterrâneo e comunicar com outros postos de sentinela do Grande Porto.
Detectamos, na sua guarita, a inscrição latina condizente de pluribus arcibus adstans (“oposta a muitas fortalezas”). Igualmente, em cada uma das faces recolhidas do hexágono, os relevos de um olho, de um ouvido e um pelicano.
Os dois primeiros sinalizam a função da vigia.
O pelicano – símbolo da Paixão de Jesus Cristo – identifica a fé dos defensores e o cuidado que aquele posto dedicaria aos habitantes da península e das restantes povoações de Malta.
Nenhuma acolheu tantas almas Cristãs como Senglea.
Senglea, a Cidade Sobrelotada das Três Cidades
Nos primeiros anos do século XX, eram mais de 8.000 as que viviam em menos de 20 hectares.
Por essa altura, Senglea e Cospicua concentravam a elite financeira e os intelectuais de Malta.
Mas, durante a 2ª Guerra Mundial, foram devastadas por bombardeamentos do Eixo que mataram e afugentaram muitos dos habitantes e causaram a alteração radical da sua estrutura social.
Findo o conflito, Senglea foi sendo reconstruída e reabitada. Em 2013, já tinha quase 3.000 habitantes, longe da anterior densidade populacional recordista mas, ainda assim, a maior de Malta.
Dois dias de evasão mais longínqua depois, regressamos.
À medida que percorremos as ruelas estreitas na sombra do casario avassalador, apercebemo-nos que, mesmo durante a tarde, os lugares de estacionamento eram multiplicados e disputados com argúcia.
Venda de Gelados com a Banda Sonora Mágica de “Lily Marlene”
Durante esse périplo, intriga-nos a melodia enigmática, distante e intermitente de um “Lily Marlene” instrumental.
Quando menos esperamos, esbarramos com o veículo responsável, uma carrinha de gelados com visual Playmobil, conduzida por um vendedor pouco importunado com o historial de inclemência germânica para com a sua cidade.
Entramos no Senglea Bocci Club e espreitamos, por momentos, uma partida animada de Bocci, uma curiosa versão maltesa da petanca.
À saída, detemo-nos dentro de um dos pórticos sombrios do Bastião de São Miguel de onde observamos que todos os pedestres e até condutores se benziam antes de os atravessarem.
Não tardamos a vislumbrar o motivo, instalado junto ao cimo da abobada: um altar tão inesperado quanto composto, decorado com pinturas de Cristo e da Virgem Maria e outros dos usuais motivos católicos.
Cercados e atacados vezes sem conta, os malteses habituaram-se a recorrer à fé mas, como é óbvio por toda a ilha, tiveram eles próprios que operar os seus milagres.
É, de alguma forma inspirados na sua determinação, que ultrapassamos obstáculos com que não contávamos.
O Gatil Histórico de Il Macina
Um portão castanho barra-nos o acesso a uma zona elevada da marginal que suspeitávamos ter vistas privilegiadas. Quando uma senhora nos abre a porta, explicamos-lhe as nossas intenções.
“Não se preocupem!” sossega-nos Doris. “Já estamos habituados.
Há uns tempos, houve um fogo de artifício e ficamos a abarrotar de gente que apareceu assim como vocês. Caso não saibam, estão neste momento sobre o terraço da Il Macina.
É uma velha grua que o engenheiro militar do La Sengle instalou quando fortificaram a cidade, para permitir o carregamento rápido de navios. Chegou a colapsar e foi renovada algumas vezes. Agora é um monumento ignorado.”
“Era uma vez um gato maltês. Tocava piano e falava francês …” Preferíamos ouvir de novo a lengalenga à desmistificação com que nos vimos confrontados.
Ao avançarmos pelo terraço muralhado, observam-nos dezenas de felinos domésticos de inúmeras raças e cores, muitos deles com problemas que saltavam à vista.
“Estes são os nossos meninos”, explica-nos ainda Doris, agora secundada por três auxiliares. Temos uma instituição que recupera gatos abandonados e vadios para os darmos para adopção.
Mas não sabemos até quando aqui vamos ficar. As autoridades perceberam finalmente o potencial deste lugar. Parece que planeiam fazer aqui um bar-restaurante com esplanada, ou coisa assim.
Andamos à procura de outra base mas Senglea é meio apertada, como por certo repararam.” Não tínhamos como discordar.
Em dois meros dias, parecia-nos óbvio que já chegava à maior parte dos sengleanos terem que lutar pelos espaços ínfimos da sua amostra de cidade.