Estamos no pico do Inverno. Não há um pingo de nuvem no céu azulão sobre Lhasa ou sobre a maior parte do Planalto Tibetano.
Lobsang, o anfitrião tibetano destacado pela agência de viagens chinesa diz-nos que chegámos na época mais genuína possível, que não devem estar sequer vinte estrangeiros em todo o Tibete.
Depressa percebemos que se sente contrariado por ter que trabalhar para o invasor. Desde que chegámos que faz questão de atalhar ao mínimo possível o tempo que nos dedica.
Essa manhã, solarenga mas gélida, como se provaria cada uma das seguintes, não seria excepção.
“Mas querem mesmo ir ao Sera?”, tenta enrolar-nos, ainda atordoado do convívio alcoolizado da noite anterior. “Já visitaram tantos mosteiros aqui em Lhasa. O Sera é só mais um. A arquitectura é igual à dos outros. O que lá vão ver pouca diferença vai fazer face ao que encontraram nos anteriores, garanto-vos.”
Por sorte, tínhamos lido sobre o lugar. Sabíamos o que o tornava distinto. Não cedemos. Lobsang opta, então, por uma estratégia de não confrontação: “Bom, eu hoje de manhã tenho que ir tratar dos papéis de uns alemães que vêm em Maio. Se querem mesmo lá ir, chamo-vos táxis e ligo a um camarada que vos pode acompanhar”.
A Curta Viagem de Lhasa para Sera. Em Modo de Sino-Rali
Fá-lo sem apelo. Alguns minutos depois, aparecem dois carros modernos com matrículas e condutores chineses.
O tal colega já segue num deles. Metemo-nos no da frente. Ryan, um “valet” (encarregado de estacionar veículos em hotéis, casinos etc.) norte-americano.
E de Jacob, adolescente sueco estudante de mais de 1 metro e 90 que atraía em redor de si grupos de tibetanos fascinados com a sua altura eram os parceiros de viagem que tínhamos conhecido ainda em Chengdu (a capital da província chinesa de Sichuan). Entraram os dois no táxi de trás.
O mosteiro distava menos de 2 km. Mesmo assim, o motorista surgiu equipado a rigor para a condução, de luvas e óculos escuros. Decidiu que era uma distância mais que suficiente para desafiar o colega.
Percorreram, assim, o trajecto como se de uma competição de rali se tratasse, com arranques chiados e saltos precipitados pelo declive rebaixado de condutas de água.
Ainda nos debatíamos com uma mal das alturas horripilante provocado por termos viajado, numa hora e meia apenas, dos 500 metros de altitude de Chengdu, para os 3650 de Lhasa.
Quando saímos dos táxis, já com a montanha ressequida de Pubuchok como fundo e nas imediações do mosteiro, a conversa manteve-se centrada neste tema: “Realmente estes chineses dão cabo de tudo! queixa-se Ryan, o único que se tinha furtado ao voo de Chengdu:
”Vim eu três dias apertado no comboio para me safar da dor de cabeça e bastou uns minutos naquele carro infernal para me sentir a rebentar tão ou mais que vocês!”
O Périplo Amanteigado pelo Interior do Mosteiro de Sera
O amigo de Lobsang convida-nos a caminharmos ao longo de uma alameda delimitada por árvores desfolhadas e edifícios tibetanos brancos. No cimo, damos com a entrada principal do mosteiro, construído, em 1419, por Jamchen Chojey, discípulo de um dos principais mestres budistas de então.
Para não variar, é proibido fotografar ou filmar no interior e tresanda a manteiga de iaque, o combustível eleito pelos tibetanos para assegurarem a iluminação e a manutenção da chama nas velas oferecidas pelos crentes.
Fazemos o circuito integral das várias salas do templo. E seguimos as explicações exaustivas do recém-empossado novo guia do grupo. A determinada altura, sentimos a justiça de darmos uma razão pelo menos parcial ao que Lobsang nos transmitido: a dissertação do guia substituto soa-nos bastante repetitiva.
Tal como Lobsang, também este amigo se furtava a abordar a melindrosa integração à força do Tibete na China, quanto mais a contribuição dramática de Sera para a revolta de 1959.
Os Danos da Invasão Chinesa Também no Mosteiro de Sera
Nesse ano, o exército chinês danificou vários dos colégios do mosteiro e assassinou centenas dos mais de 5000 monges residentes. Depois de o Dalai Lama se ter asilado na Índia, muitos dos sobreviventes refugiaram-se em Bylakuppe, próximo da cidade indiana de Mysore, estado de Karnataka.
Estabeleceram, ali, um mosteiro de Sera paralelo, com os seus próprios colégios budistas e um Grande Salão de Assembleia com as mesmas linhas arquitectónicas do original.
A assistência do governo indiano permitiu que neles se estabelecessem mais de 3.000 monges tibetanos que desenvolvem actividades missionárias budistas na Índia e em diversos outros países.
Além da arquitectura budista e compaixão professada por Buda, os monges também levaram do Tibete o hábito de se reunirem dia após dia com o fim de debaterem, da forma o mais dialéctica possível, os ensinamentos do seu mestre iluminado.
A partir do final do século XVI, a seita Gelupga (Chapéu Amarelo) do Budismo Tibetano a que pertencem os 600 monges aprendizes que ainda resistem em Sera tornou-se predominante no Tibete. Habituou-se a estudar as doutrinas budistas através de um processo passo-a-passo.
Durante a sua aprendizagem, até os lamas devem participar nestes debates por forma a aperfeiçoarem a sua capacidade de compreensão e evoluírem para níveis mais avançados de estudo.
As Sessões de Debate Budista ao Ar Livre
Por norma, as sessões têm lugar às três da tarde, de 2ª a 6ª. Duram uma hora e meia. Só são suspensas em virtude de uma celebração ou cerimónia religiosa coincidente ou de extremo mau tempo.
Quando deixamos o interior lúgubre do mosteiro budista, damos de caras com uma porta que anuncia “Debating Courtyard”. Nesse recreio amplo, entre árvores despidas pelo longo Inverno do planalto, sobre uma brita farinhenta, as múltiplas disputas já se faziam ouvir.
Dispersos pelo pátio, vários núcleos de monges trajados apenas com os seus hábitos vermelhos e que seguram “juzus” (rosários budistas) nas mãos, trocam argumentos atrás de argumentos.
Em certos grupos, um ou dois dos religiosos apoderaram-se do protagonismo. São atentamente seguidos ou desafiados por pequenas plateias amontoadas com relativa intimidade. Para melhor expressarem os seus argumentos, estes profetas da ocasião puxam pelos interlocutores e fazem soar os seus juzus.
Ou, mais frequentemente, repetem um mesmo movimento de recuo, avanço e projecção do corpo para a frente que termina com um batimento de palmas exuberante.
Os “claps” sucessivos ressoam por todo o pátio. Fazem as mãos dos autores tão vermelhas como os seus trajes. Parecem ajudar a convencer os adversários. Quando se vêm forçados a reconhecer a razão, estes, soltam “oooooohhhhhs” prolongados em coro.
Então, voltam a analisar as falhas e virtudes das suas alegações perante o exame pouco criterioso do público, então, na sua maioria, tibetano.
Passa a hora e meia. Os lamas recolhem ao conforto quase espartano dos edifícios do mosteiro de Sera. A assistência debanda alameda abaixo.
De acordo com instruções telefónicas de Lobsang, regressamos ao centro de Lhasa de autocarro.
Aquele a que subimos segue lotado.
Entre os passageiros intrigados pela presença dos forasteiros e já vestidos para mais um fim de tarde enregelante, reencontramos os sorrisos incondicionais dos tibetanos e o seu aroma familiar a manteiga de iaque.