Cumprida a viagem de rickshaw desde Mandalay, o condutor apresenta-nos o destino final já conformado com nova longa espera. “Calculo que queiram ficar até depois do pôr-do-sol, certo?, pergunta-nos só como descargo de consciência.
Ainda o vemos a instalar-se numa esplanada gerida por conhecidos mas depressa nos perdemos na profusão de restaurantes abarracados à beira do lago.
Fazia já dois meses que as monções tinham dado paz ao Myanmar. Sujeito aos caprichos da meteorologia, o lago Taungthaman encolhia de dia para dia.
Avistamos uma linha de embarcações artesanais coloridas, com quilhas curvas que pareciam apontar a responsabilidade do céu sempre limpo.
“Passeio de barco ?”, “Uma volta de barco?” perguntam-nos distintos anfitriões vezes sem conta com a persistência gentil porque se regem os birmaneses.
Para variar, tínhamos preparado a visita. Sabíamos que ainda não era hora para ceder. Calculamos o prolongamento da ponte e damos com a sua extremidade imediata escondida detrás de outros estabelecimentos.
Já ia longo o prefácio daquela incursão a Amarapura. Sem paciência para o prolongamos, fazemo-nos à travessia. Por volta de 1859, U Bein, uma espécie de magistrado do reino de Inwa responsável pela empreitada da ponte não teve tempo a perder.
A Empreitada Desenrascada da Ponte de Madeira Mais Longa do Mundo
Nessa altura, a capital de Inwa oscilava entre uma povoação homónima e Amarapura. Um rei de nome Tharrawaddy resolveu devolvê-la à última. Declarou ainda que se devia facilitar o acesso dos súbditos aos extremos opostos do lago.
Com o tesouro do reino diminuído pelas guerras Anglo-Birmanesas, U Bein teve que recorrer ao pragmatismo. Recorreu às sobras do palácio real abandonado.
Estimam-se em 10.000 os homens que transportaram a madeira ao longo do rio Ayeyarwady. Metro atrás de metro, avançamos pelos quase 1100 troncos empregues e vemos a vida a desenrolar-se sobre aquela estrutura improvável.
Lado a lado, os pescadores insistem em lançar as linhas, apesar de já terem os seus cestos de vime semi-cheios e de segurarem à cintura grandes cachos de peixes.
Cruzamo-nos com grupos de monges e monjas budistas.
Damos prioridade a sucessivos ciclistas desmontados e a camponeses aflitos com o peso das suas cargas agrícolas e até pecuárias.
Um Século e Meio Depois. A Ponte U Bein Resplandece de Vida
A ponte U Bein é secular. A condizer, durante muitas centenas dos seus pilares base, não detectamos qualquer sinal de modernidade. Homens e mulheres trajam longyis típicos e coloridos, combinados com camisas ou casacos simples.
Outros transeuntes surgem protegidos do sol tropical com chapéus tradicionais ou por tabuleiros pesados em que equilibram tachos e panelas com refeições aromáticas. A própria ponte poupa os habitantes ao cansaço, ao calor e às chuvadas da monção que fazem o lago transbordar.
Foi dotada de alpendres laterais erguidos em pontos intermédios e equipados com assentos. Jovens já livres da escola usam-nas para convívios e namoricos de ocasião. Um ou outro vendedor também lá se instalou e trata de despachar a sua mercadoria.
Paramos numa dessas extensões. A salvo de incomodar o trânsito, examinamos as redondezas e detectamos uma colónia de caricatos seres lacustres, pescadores enfiados na água até meio-tronco ou, nalguns casos, até ao pescoço com as suas canas de bambu em riste.
Cultivos e Pescarias Para Todos os Gostos no Lago Taungthaman
Confirmamos cada vez mais a dependência dos birmaneses destas paragens tanto da ponte como do lago. E o seu engenho para os aproveitarem consoantes as estações do ano. Um agricultor conduz uma parelha de búfalos. Lavra, assim, para cá e para lá, um istmo de terra recentemente dispensado pela época seca.
Em áreas anfíbias, outros empreendedores mantêm instalados viveiros de peixes e granjas repletas de patos.
Vizinhos incomodados e, nos últimos tempos, também as autoridades crêem que a primeira actividade é responsável pela degradação da água do lago e também pelo agravar do estado da ponte.
U Nyein Win, dono de um dos restaurantes da margem de que vínhamos, o Zegyo Thu, estava tão certo disso que não se coibiu recentemente de se queixar ao Myanmar Times: “nas últimas décadas, a criação de peixes em viveiro causou o declínio da diversidade das espécies aquáticas, da vegetação e da beleza do lago.
Antes existiam muitas espécies de peixes, não eram só tilápias vorazes como agora. Além disso, a água está cada vez mais estagnada e os pilares apodrecem. Muitos já perderam as bases.
Só se mantêm na estrutura por estarem ligados a outros por barras laterais. A ponte ainda é segura mas isso pode não durar.”
A Nova Era da Ponte U Bein: os Viveiros, da Poluição e o Turismo de Massas
Em Fevereiro passado, o Mayor de Mandalay contradeclarou, sem cerimónias, aos jornalistas que não tinha intenção de tratar da limpeza da água pelo que restou aos moradores e à maior parte dos trabalhadores do lago esperar que o Ministério da Cultura interviesse de forma mais assertiva.
Enquanto isso, dedicam-se a amealhar o máximo de kyats possível. Praticamente já no limite oposto da ponte, alguns deles contavam com a nossa contribuição.
A terra firme desta margem também se revela ocupada com pequenos restaurantes-esplanada. Uma vez que o sol tinha descido de forma drástica só tivemos tempo de neles nos refrescarmos com água de cocos frescos e seguirmos o primeiro barqueiro que nos abordara.
Por azar, os remos da sua embarcação chiam sem apelo e corrompem o quase-silêncio mágico em redor.
O Crepúsculo A Remos do Lado de Cá da Ponte U Bein
Mas o grande astro tinha pintado o céu a Oeste de um laranja garrido que se ainda avermelhava e a ponte U bein e todos os transeuntes que a atravessavam destacavam-se num negro forte contra o firmamento em fogo. Damos indicações ao barqueiro para a ir percorrendo a jeito dos enquadramentos que perseguimos.
Além do chiar, ouvem-se agora os cliques das câmaras em jeito de metralhadora, o recurso técnico a que nos vemos obrigados a recorrer para conseguirmos que os monges e restantes peões fiquem destacados nos pequenos intervalos entre pilares.
O barqueiro que nos propulsionava quase não falava inglês, limitava-se a interpretar os nossos desejos. Na iminência da margem oposta, excursões de turistas chegadas em cima da hora tinham fretado todos os barcos e as águas nas imediações da ponte eram mais disputadas que nunca.
Coagido pelos patronos a esquecer-se das boas maneiras, um outro remador aproxima-se demais da ponte. Enfurece parte dos barqueiros e visitantes que se mantinham à distância.
Para nosso espanto, o nosso pacato remador exalta-se. Desanca o rival em birmanês, até que aquele se rende finalmente às evidências.
Alheia a estas contendas mundanas, a bola do Sol encaixa-se entre os pilares. Logo desaparece para o outro lado do Mundo. Entretanto, as dezenas de barqueiros que se evitavam no lago já haviam transladado os seus passageiros para os autocarros que os esperavam.
Com a complacência do nosso, ficamos sós sobre o Taungthaman a ver a estrutura de madeira sumir na penumbra. Até que o nativo resolve encurtar a sua pena e a do condutor de rickshaw desesperado de Mandalay.
Apressa o desembarque e a despedida de Amarapura e da ponte U Bein.