Ainda há fumo nos arredores de San Cristobal de Las Casas quando nos preparamos para deixar a cidade em direcção a Palenque.
Durante dois dias, a região foi palco de um reacendimento da aversão que a população maia e mestiça local tem pelas igrejas evangélicas cristãs e seus convertidos, que vêem como ameaças à uniformidade cultural e religiosa porque se regem.
Os maias nativos expulsaram uma comunidade por eles antes banida de terras próximas à cidade. A intervenção conciliatória da polícia degenerou uma vez mais em violência mas tudo indicava que os intransigentes Chamulas voltavam a levar a sua à avante.
De início reticentes em aceitar os ensinamentos dos missionários hispânicos, os maias desta zona de Chiapas acabaram por os acolher mas só em parte. Geraram cultos católicos independentes a que acrescentaram elementos da sua mitologia pré-colombina.
A comunidade de San Juan Chamula foi mais longe.
Conseguiu do governo a concessão de uma autonomia administrativa. Da mesma maneira, apesar de a Igreja Católica mexicana ser das mais conservadoras da América Latina, nenhum padre interfere na fé dos indígenas ou participa nas cerimónias realizadas no enigmático templo da aldeia, que proíbe aos visitantes qualquer captura de imagens.
Edgardo Coello, mexicano por mestiçar de provável origem galega, conhece os caprichos dos Chamulas melhor que as estradas secundárias da região.
Ainda assim, com recurso a uma calma e cortesia irrepreensíveis, informa-se com os residentes sobre a melhor maneira de evitar as barreiras policiais, de nos levar por caminhos alternativos à então cercada San Juan. E, dali, descer até às terras baixas de Chiapas.
Visões da Nossa Senhora de Guadalupe, no Caminho para Palenque
A via de montanha em que nos metemos é a mais sinuosa desde há vários dias de viagem pelo México.
Edgardo percorre-a a velocidade de cruzeiro. Durante muitos quilómetros, quase não vemos vivalma. Uma hora depois, surgem as primeiras povoações indígenas no sopé da serra.
Vislumbramos uma Nossa Senhora de Guadalupe sobre a caixa de uma carrinha. Enfeitada com panos e balões, repleta de passageiros vestidos com as cores da nação, a carripana segue devagar, encostada à berma estreita.
Persegue-a um jovem crente com os mesmos trajes alusivos à Santíssima usados pelo resto do grupo. Este jovem crente empunha uma tocha acesa.
Já a visão original da Nossa Senhora de Guadalupe teve-a um nativo, em 1531, sobre uma colina nos arredores da Cidade do México. Desde então, a Nossa Senhora de Guadalupe tornou-se um elo crucial entre a espiritualidade indígena e a católica, a propalada pelos missionários.
À medida que a nação se mestiçou, foi também promovida ao seu símbolo católico mais forte, a Patrona do México e das Américas.
Durante o percurso, passamos por muitos outros destes cortejos auto-religiosos. Quase todos obrigavam os carros atrás a ultrapassagens arriscadas.
Edgardo acabava de nos alertar para o drama rodoviário que aquela época do ano representava, apesar de o governo nunca se dignar a apresentar números. Não demoramos a constatá-lo.
Um jipe evitava peregrinos sobre uma curva quando foi surpreendido por um veículo no sentido oposto. O acidente causou danos físicos e materiais sérios.
Palenque, Rumo a Campeche, sempre no Caminho da Virgem de Guadalupe
Entretanto caíra a noite. Durante a descida através da selva Lacandona – a mesma que abrigou os rebeldes zapatistas – só encontramos uns poucos participantes atrasados ou em descanso à beira da estrada, pouco ou nada sinalizados ao trânsito.
A alvorada brinda-nos com novo dia prazenteiro. Quando chegamos à entrada dos templos maias de Palenque, os funcionários ainda abrem as portas do complexo.
Mesmo assim, dezenas de carros, carrinhas e carripanas decoradas com pinturas e motivos da Virgem estão já estacionadas no parque contíguo. Assim que entram no complexo, os seus grupos de passageiros partilham o êxtase daquela rara evasão espiritual, trepam as escadarias dos templos e trocam chiste atrás de chiste.
A boa disposição parece também subsistir à falta de fôlego e ao deslumbre causado pelos monumentos históricos opostos e pela floresta elevada em redor.
De Palenque, retrocedemos no mapa. Anima-nos a perspectiva de nos refrescarmos nas Águas Azules de Chiapas, um trecho do rio Tulijá com quedas de água e represas naturais cor de esmeralda que também tinha atraído inúmeros crentes.
Uma Vez Mais os Chamulas, agora em Versão Peregrina
Cruzamo-nos com várias das suas camionetas. Uma delas chama a atenção de Edgardo: “Vêem aqueles trajes brancos felpudos? São os Chamulas!” Numa espécie de juízo instantâneo, concluímos que a imagem era demasiado impressionante para a deixarmos escapar. Pedimos ao guia que invertesse caminho, que os ultrapassasse e nos deixasse bem posicionados.
Saímos do carro junto a uma banca e preparamo-nos. Edgardo, aproveita para comprar bananas.
Quando a camioneta surge na subida, o guia estica-se para oferecer a fruta aos peregrinos de San Juan. Nós, premimos os botões das câmaras e registamos o estafeta da comitiva destacado e a restante acção em hi-speed.
Reina a animação a bordo da caixa da furgoneta. Os indígenas parecem divertir-se inclusive com aquela espera descarada. O que nos surpreende. De um momento para o outro, um deles, mais rigoroso, restabelece a ordem chamula das coisas das coisas e grita-nos: “Se vos apanhamos, vão pagar bem por essas fotos!”.
A Entrada Abençoada em Campeche
Já nas terras planas da Península de Iucatão, intensifica-se a versão ciclista da peregrinação, desta feita, rumo a Campeche. É a cidade a que chegamos em pleno lusco-fusco.
Instalamo-nos no hotel em contra-relógio. Saímos para as esplanadas do Portal de San Francisco onde devoramos quatro das horchatas mais deliciosas do México.
Por Fim, o Acolhimento da Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe
Com as energias repostas, não demoramos a encontrar a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe. Este templo amarelo de Campeche acolhia os peregrinos fazia já algum tempo.
Do topo do santuário e em todas as direcções, projectam-se cordas com bandeirolas esvoaçantes, verdes, vermelhas e brancas.
Centenas de bicicletas com estandartes, mini-santuários e outros artefactos foram encostadas à fachada sul da nave e umas às outras.
A maior parte dos fiéis conserva uma derradeira energia e convive. Apesar de tocar música evangélica em altos berros e das luzes potentes das barraquinhas de comes, bebes e de recuerdos religiosos, alguns outros que chegaram derreados, cochilam sobre a relva em redor.
Do lado oposto, de frente para um Golfo do México iminente, dois negócios concorrentes disputam a fé e a carteira dos crentes.
Ambos instalaram cenários coloridos em painéis luminosos que reconstituem a aparição da Virgem Morena. Tanto um como o outro procuram atrair as famílias e grupos de crentes a fotografarem-se na companhia da santa. “Duzentos pesos, amigos. É uma verdadeira bênção!” promove um dos empresários.
O pároco de serviço trata da diligência oficial. De cada vez que novo grupo de romeiros ciclistas ou pedestres chega à porta da igreja, borrifa-os com água benta e acolhe-os no rebanho.
Ainda guarda tempo para, num dos intervalos do rito, se mudar para a beira da estrada de onde, em modalidade Drive Through, salpica os capôs a dezenas de carros tuning da cidade e concede a graça aos seus proprietários.
O dia aproxima-se do fim. Os crentes provindos de paragens mais longínquas perdem o embalo.
Estamos de regresso ao hotel a padecer dessa mesma fraqueza quando entramos numa praceta organizada em redor de um coreto. Ali, centenas de peregrinos ciclistas improvisaram um albergue partilhado.
Muitos já dormem. Outros partilham refeições, remendam pneus ou compõem pequenas tendas apoiadas em árvores ou nos guiadores dos velocípedes.
Todos tinham completado mais uma prova de fé.