São três as novidades que constata quem, como nós, chega pela primeira vez a terras de Rotorua:
um aroma sulfuroso disseminado e intenso, a grande concentração de habitantes nativos e uma inesperada profusão de espectáculos culturais maori.
As duas últimas, mais que a primeira, atraíram-nos à cidade mas, ainda estávamos a quilómetros da sua entrada quando as partículas de enxofre na atmosfera nos invadem as narinas.
Quilómetro após quilómetro, embrenhamo-nos na zona termal mais dinâmica da Nova Zelândia, salpicada de géiseres, nascentes termais e poças de lama explosivas.
O odor pestilento apodera-se do interior do carro, das nossas roupas, bagagens, também das ruas e do quarto em que nos alojamos.
Esse mesmo abrigo de beira de estrada estabelece um limite para a idiotice em que nos víamos há meses, a carregarmos uma tenda de campismo comprada, em Perth, no distante extremo ocidental da Oceânia.
A tenda já nos tinha feito sofrer a bom sofrer para evitarmos pagar multas por excesso de peso das companhias aéreas. Decidimos livrar-nos dela. O Cash Converter que encontramos parece-nos perfeito.
“Dá-me a ideia que não lhe deram grande uso!” atira Jonas, o jovem empregado de balcão maori, após o inevitável kia ora de boas-vindas, com boa-disposição e forte brilho no olhar.“ Desculpem mas, mesmo assim, vou ter que a examinar.”
Enquanto o faz, o funcionário dá um seguimento frenético à conversa.
Ao abrigo da famosa paixão maori pelo korero (tagarelice), fala de si e da família, sem qualquer cerimónia ou complexos. Questiona-nos, de forma inocente e interessada, quanto a nós e às nossas.
Perdemos quase 70 dólares no negócio. Lucramos com a confirmação da afabilidade e vivacidade do povo maori, noção que tínhamos começado a formar, em Hobart, na Tasmânia, em convívio com Helena Gill uma anfitriã imigrada nas portas dos fundos da Austrália.
E, noutros contactos na vasta Ilha do Sul, onde tanto a população geral como a maori são muito menores que as da vizinha do Norte.
Só conhecíamos os maoris desses primeiros contactos, como a maior parte das pessoas que põem pela primeira vez os pés na Nova Zelândia, de “Piano” de Jane Campion.
Com Harvey Keitel a fazer de Baines, um marinheiro retirado e guarda-florestal que adaptara muitos dos costumes indígenas incluindo a excêntrica tatuagem facial ainda usada por muitos maoris.
Estava na altura de descobrirmos mais.
Rotorua, um Cerne Vulcânico e Pestilento da Nação
Mesmo se em jeito de negócio, em nenhum outro lugar do país os maoris exibem tanto os seus costumes e rituais como em Rotorua. Confrontados com a inexistência de um verdadeiro festival ou evento étnico por aqueles dias, conformamo-nos com um dos seus espectáculos locais.
À entrada da aldeia temática, guerreiros munidos de bastões confrontam-nos com os movimentos bélicos e esgares assustadores, usados ao longo do tempo para manterem ao largo os visitantes indesejados.
Finda a ameaça, um chefe da aldeia sauda o recém-nomeado representante dos visitantes, com um roçar de narizes acolhedor.
A Colonização Maori e Europeia de Aoteraoa
Uma vez validada a nossa presença, deambulamos de casa em casa da pretensa povoação. Admiramos diversos costumes, artes e ofícios, alguns narrados e explicados pelos seus protagonistas.
Segue-se um espectáculo musical e de dança que inclui a mais desejada das actuações, um haka levado a cabo por homens e mulheres.
Hoje, menos de 40% dos quase 70 mil habitantes de Rotorua são maoris, uma percentagem bem superior aos 15% do total da Nova Zelândia.
Crê-se a Nova Zelândia foi a última paragem de uma diáspora de mais de dois mil anos a bordo de grandes canoas waka que levou os polinésios do Sudeste Asiático até Fiji, Samoa, Tonga, ilhas da Polinésia Francesa e Cook, Havai e Ilha da Páscoa.
Nos séculos posteriores à chegada a Aoteraoa – assim chamam os maoris ao seu arquipélago – forjaram a sua própria cultura, diferenciada do resto da Polinésia pelo isolamento, o clima temperado em vez de tropical, e a natureza condizente.
Após o desembarque de James Cook de 1769 – 127 anos depois da chegada pioneira do holandês Abel Tasman -, dependendo das zonas e das alturas, as relações entre os maoris e os europeus oscilaram entre uma cordialidade conveniente e as Guerras da Terra da Nova Zelândia.
Este conflito, em particular ficou mal resolvido, em 1840, pelo polémico Tratado de Waitangi.
Nele se estabeleceu que os colonos reconheciam os maoris como verdadeiros donos dos seus domínios e propriedades e que beneficiariam dos mesmos direitos dos súbditos britânicos.
Os nativos mantinham-se nos redutos ainda rurais das suas tribos. Em 1930, o trabalho no campo já escasseava. Muitos indígenas migraram para as cidades fundadas pelos europeus.
Essa confluência suscitou o abandono das estruturas tribais e a assimilação maori dos modos de vida ocidentais.
E a Intrincada Coexistência Étnica entre Maori e Descendentes de Europeus
Mesmo se de forma menos óbvia que nas grandes urbes de Auckland e da capital Wellington, quando conduzimos pelos arredores de Rotorua e Taupo – onde damos pequenos passos para a humanidade sumidos na névoa sulfurosa das Crateras da Lua – constatamos desequílibrio em que a coexistência de maoris e descendentes dos colonos evoluiu.
Malgrado o acordado em Waitangi, os colonos já se tinham apoderado das melhores terras, com óbvia vantagem na vida moderna que impuseram à nação.
Essa supremacia deixou os maoris em apuros sociais e económicos, a começar pela dificuldade em aceder ao ensino superior, a ter empregos qualificados e bem pagos.
De acordo, a maioria das famílias nativas concentra-se em bairros periféricos com condições de vida bem mais precárias do que as da classe média de ascendência britânica ou de muitos emigrantes asiáticos ou de outras paragens.
Em demasiados casos, dependem do cheque da segurança social. São mais propensos a doenças e a violência doméstica e constituem mais de metade da população prisional.
O Respeito Crescente pelos Territórios e Direitos dos Nativos
Mas, desde 1960, que a situação não pára de melhorar. Nessa década, um tribunal deu por ilegais as confiscações coloniais de terras.
Pouco depois, o governo devolveu ao povo maori os seus lugares sagrados e recursos naturais.
Para muitos maoris que se consideram hóspedes dos brancos, só então terminaram as longas Guerras da Terra.
O número de representantes maoris no parlamento aumentou. O valor da cultura maori e do dialecto Te Reo – que já surge nos sinais de trânsito, mapas etc. etc. – dispararam com o aumento abrupto de visitantes estrangeiros às ilhas kiwi.
Uma rede recente de jardins de infância, escolas e universidades garantem, agora, a educação na língua maori complementada por uma cadeia nacional de estações de rádio e canais de TV detidos e geridos pelos próprios maoris que ganham mais e mais notoriedade.
A Notoriedade Mundial do Povo Maori, pelo seu Poderoso Râguebi
Enquanto escrevíamos este mesmo texto, decorria o campeonato do mundo de râguebi por terras dos velhos colonos ingleses. Como quase sempre acontece, a Nova Zelândia era a selecção que mais se destacava e atraía.
Faz-nos mesmo interromper a sua criação para assistirmos ao massacre da França aos braços dos All Blacks (62-13) nos quartos de final. Sete dos jogadores All Blacks presentes na competição são maoris.
Todos os jogos da selecção kiwi têm início após hakas exuberantes que os maoris concederam que fossem dançados também por jogadores pakeha e que até a nós intimidam.
Aliás, há alguns anos, quando os maoris decidiram introduzir um novo haka, toda a comunidade pakeha do râguebi se envolveu no debate.
É algo que ajuda a exemplificar a seriedade do compromisso interétnico que presenciámos dia após dia, por toda a Nova Zelândia, isto quando as próprias identidades maori e pakeha se diluem sob a fusão da genética.
À saída de uns duches de praia de Whangarei, conhecemos Renee Lee. No meio do palavreado, a jovem surfista tatuada devolve-nos a complexa questão: “Maori..?
Eu nunca sei muito bem se sou maori ou pakeha. O meu pai é maori e a minha mãe holandesa.
A minha filha é loura… Digam-me lá vocês: o que acham que sou?”