A caminho da Guatemala, constatamos como a existência proscrita do povo garifuna, descendente de escravos africanos e de índios arawaks, contrasta com a de vários redutos balneares bem mais airosos.
Os importadores do veículo não se tinham sequer dado ao trabalho de o repintar, à imagem do que acontecia um pouco por toda a América Central. O velho ex-autocarro escolar dos Estados Unidos zumbia ao longo da Hummingbird Highway que ligava a misteriosa capital belizense Belmopan, a Dandriga, esta, uma cidade não menos peculiar já debruçada sobre o Mar das Caraíbas. O motorista conversou com passageiros toda a viagem e parecia manter a velocidade estonteante a partir de uma espécie de piloto-automático cerebral que só desligava para recolher passageiros. Mesmo assim, chegámos pouco depois do pôr-do-sol, já atrasados para apanhar uma ligação para sul. “Here’s our Dandriga, fellas”, anunciou o chofer com a inevitável voz cavernosa de ragga quando abriu as portas do bus amarelo-torrado. “Love it or Leave it!”
Foi sob a precipitação do crepúsculo que conseguimos apreciar a sua rua principal, repleta de lojinhas de famílias chinesas aventureiras e oportunistas, enfeitada pelas sedes dos dois principais partidos políticos do Belize, entre vários outros negócios e instituições. Em redor do centro, um domínio mal amanhado de casas térreas coloridas pré-fabricadas e entre coqueiros, dão lugar, de forma centrífuga, a mais e mais palafitas abarracadas.
Idosos e crianças a seu guardo escutam a telefonia nos alpendres gastos dos domicílios. Sob estacas que sustentam outros, grupos de homens e adolescentes negros mantêm convívios, jogos ou negócios tão intrigantes como a Centro-América africana improvável em redor.
Quando nos aproximamos da pousada humilde em que nos íamos alojar, aumentam de volume acordes tropicais de música garifuna que mais parecem saídos da Guiné-Bissau ou até de Cabo Verde. A origem histórica de muitos dos moradores – também eles curiosos pela nossa incursão naquelas paragens nada turísticas – não andava muito longe mas perdeu-se no tempo e na complexidade das diásporas sofridas por aquele povo.
Em pleno século XVII, caribes vindos do delta do rio Orinoco dominavam Saint Vincent e várias outras pequenas Antilhas. A primeira confluência genética que gerou os garifunas deu-se quando um barco negreiro alegadamente proveniente da Nigéria naufragou. Os nativos resgataram muitos dos sobreviventes, levaram-nos para Saint Vincent e concederam-lhes mulheres, já que era tabu, nas suas tribos, que homens não tivessem parceiras. Entretanto, os franceses e os ingleses disputaram Saint Vincent e as Antilhas. Inúmeros conflitos depois, na mó de cima, os britânicos acabaram por separar os caribes “puros” dos já misturados com ex-escravos africanos. Determinaram que os últimos, mais independentistas, eram perigosos e exilaram cerca de 2500 dos recém-denominados caribes negros sobreviventes na ilha actualmente hondurenha de Roatan. Roatan provou-se demasiado exígua para os novos habitantes.
Estes, não tardaram a rogar às autoridades hispânicas que os acolhessem no continente. Os espanhóis agradeceram a mão-de-obra gratuita e os garifunas foram-se instalando nas terras hoje belizenses, hondurenhas, nicaraguenses e guatemaltecas por que viajávamos.
Na manhã seguinte, partilhámos Dandriga com várias centenas dos 7% de belizenses garifuna identificáveis pelos seus visuais mais africanos que índios e pela sua linguagem corrente muito mais índia que africana que usam caso outros compatriotas ou forasteiros não os obriguem a recorrer ao espanhol ou ao inglês crioulo.
“Só têm que ir até ao fim desta rua e cortar à direita!” achamos que nos explica, num crioulo quase imperceptível e zangado, o nativo de um negro algo avermelhado a quem, por volta do meio-dia do dia seguinte, perguntamos de onde saíam os autocarros para Placência.
Orgulhosos e algo irascíveis, não faltam aos garifunas do Belize razões para se sentirem revoltados. As suas comunidades estão presentes quase só no sul da nação, por decreto de um governador britânico das que viriam a tornar-se Honduras Britânicas. Esse decreto, do século XIX, determinou que os garifuna teriam que se cingir ao “fundo” do território, na prática para não se misturarem e desestabilizarem os belizenses escravos de origem apenas africana.
Em Setembro passado, a comunidade de Dandriga uniu-se por detrás da representação oficial do seu Mayor Gilbert Swazo. Aproveitaram para acusar o primeiro-ministro do país de mesquinhez e de o lembrar da discriminação de que são há muito vítimas, tudo despoletado por um gerente do First Caribbean International Bank ter proibido o uso da língua garifuna na agência local deste banco.
Outras reacções provaram-se bem mais mediáticas. Pouco depois da estreia mundial da saga “Piratas das Caraíbas”, os garifunas juntaram-se aos caribes de Saint Vincent, de Dominica e de Trinidad em protesto contra a Disney por a sequela os apresentar ao Mundo como canibais, sem que, a seu ver, para tal existam fundamentos históricos.
Ironia das ironias, muitos milionários de Hollywood usam e abusam do Belize como recreio balnear. Por norma, as suas incursões ficavam-se pelo litoral norte mais próximo da segunda maior barreira de recife do mundo. Mas, com o tempo e a concorrência, alastraram-se à longa península de Placência para onde entretanto nos mudámos.
De início, este que é o litoral mais privilegiado do Belize quase só acolhia mochileiros. Até que personalidades famosas como Francis Ford Coppola o descobriram e começaram a ali investir em casas particulares e resorts requintados em que os danos dos muitos furações devastadores que por ali passam foram exigindo reparações de monta.
Percorremos a praia de ponta a ponta e espreitamos o Blancaneaux’ Turtle Inn que o realizador comprou e remodelou para oferecer aos seus seguidores uma alternativa de igual luxo a um outro resort da marca Coppola num cayo (ilhéu) do norte.
Não detectamos garifunas a usufruírem dos areais vastos entre a povoação de Seine Bight e de Placência. Em vez, veraneantes americanos e canadianos passeiam e embarcam servidos por guias e timoneiros locais, em excursões curtas de snorkeling nas águas cristalinas ao largo, ou noutras de mergulho entre tubarões e tubarões-baleia na barreira de recife que, ali, dista uns 30km.
Mas não estamos na época dos tubarões-baleia e, os outros são predadores demasiado imprevisíveis para o nosso gosto. Garantida a dose de descontracção marítima por que ansiávamos, recuperamos as mochilas na sede de uma tal de Ocean Motion e metemo-nos numa lancha repleta de mulheres maias que regressavam a casa de mais um dia de vendas do seu artesanato entre gringos. Durante grande parte da viagem, uma menina acompanha todos os movimentos da nossa, para ela fascinante, acção fotográfica, à frente da mãe que amamenta o filho mais novo. Após o desembarque e quatro horas adicionais de autocarro, chegámos a PG, assim diminuem os belizenses o trabalho de pronunciar a povoação de Punta Gorda.
Tínhamos atingido o limite meridional do Belize e a humidade e a selva eternizavam uma aliança que nenhum investidor conseguira ainda quebrar. Estávamos de novo em território do Caribe Negro mas a localização sobre a fronteira com o vizinho do sul conferiu à povoação uma forte multietnicidade belizense. Coexistem, por estes lados, americanos, britânicos e canadianos que ensinam ou trabalham em organizações humanitárias. Em muito maior número, belizenses crioulos, chineses, indianos, maias Kekchi e Mopan. Ainda dormimos uma noite na paz da cosmopolita PG. Com a alvorada, navegámos primeiro até Livingston, depois rio Dulce, ambas abrigadas num recanto marinho luxuriante já guatemalteco mas, por algum tempo mais, ainda garifuna.