Foi tão casual como recompensador. A primeira vez que entrámos no Myanmar coincidiu com o dia da libertação de Aung San Suu Kyi, The Lady, como gostam de chamar os birmaneses à sua salvadora.
O povo deste país agrilhoado, já de si, gentil e caloroso, vivia então uma esperança renovada e concedia longos sorrisos que a urgência de vender os serviços de guias, o artesanato, os souvenirs, seja o que for, não pareciam afectar.
Como a população do Myanmar, Suu Kyi fora mantida, na maior parte dos últimos vinte e um anos da sua vida, sob os espartilhos do regime militar.
Nem a pressão internacional, nem o estatuto de Prémio Nobel entretanto adquirido abreviaram as penas a que havia sido condenada.
Ao fim da tarde de 13 de Novembro de 2010, passamos, de táxi, mesmo em frente à avenida que conduz à sua casa. A entrada estava bloqueada pelo exército mas depressa ficámos a saber como correra a libertação.
O motorista do táxi não conseguia disfarçar a alegria e recorria a um inglês aceitável para a expressar: “a senhora parece mais nova que nunca. Não pode ter sido apenas impressão minha.
Quando vi as imagens na TV, fiquei comovido com a beleza dela, com aquela dignidade sofredora a que sempre nos habituou…”
Naypyidaw: a Emergência da Capital Fantasma da Velha Birmânia
Oito anos antes, o governo militar tinha transtornado uma vez mais o povo que oprimia com outra das suas decisões tresloucadas.
Cerca de 25 empresas de construção foram contratadas para erguer uma nova capital do zero.
Entre os birmaneses, popularizou-se a crença de que, tal como acontecera com várias outras decisões dos ditadores militares, um astrólogo teria alertado Than Shwe – o antigo líder da Junta – de que estaria iminente um ataque estrangeiro.
O aviso despoletou o processo de mudança para longe de Yangon e do mar.
Duas gigantescas caravanas militares asseguraram o transporte dos ministérios governamentais e batalhões do exército para a nova capital. A mudança precipitada provocou falta de escolas e várias outras infraestruturas essenciais.
Por isto, enquanto os trabalhadores do governo já laboravam em Naypyidaw, as suas famílias permaneceram um tempo sem fim em Yangon.
A nova capital assumiu-se como a maior aberração urbanística do Sudeste asiático. Na exótica e decadente Yangon, daí para cá, pouco ou nada mudou.
Yangon (ou Rangoon): em Deambulação pela Verdadeira Velha Capital
Fugimos das garras de um terrível jet lag.
Do cimo de um dos edifícios mais altos da cidade, admiramos o seu casario sortido.
Feito de prédios envelhecidos, acastanhados pelo tempo e pela ferrugem dos telhados de zinco, do estilo dos de Havana ou de Calcutá mas de que se destacam, aqui e ali, novos exemplares coloridos.
Descemos ao nível térreo da rua Sule Paya.
Em plena baixa, esforçamo-nos para trocar dólares ao melhor câmbio possível, nunca aquele que surge nas tabelas internacionais e oficiais.
Logo em seguida, cedemos à ansiedade e vamos de imediato até coração espiritual da cidade e um dos templos budistas mais impressionantes do Mundo.
O táxi deixa-nos numa das várias entradas do grande pagode Shwedagon.
Estamos em terreno sagrado e, como todos os visitantes na quase totalidade crentes locais ou peregrinos birmaneses, temos que entrar descalços.
Pagode Shwedagon: o Cerne Budista de Yangon
No interior, o piso de mosaico branco irradia a luz forte própria da latitude tropical e o brilho dourado da enorme estupa em forma de sino ofusca qualquer outra visão.
Não tardamos a adaptar-nos à nova luminosidade e a admirarmos a espiritualidade do lugar.
Em redor, dezenas de fiéis dirigem as suas preces ao símbolo majestoso, sós ou sincronizados em grandes grupos.
Monges meditam ou convivem entre si e com crentes junto a mini-estupas ou conjuntos harmoniosos de estátuas de buda.
Mais para o fim do dia, fiéis femininas voluntariam-se como varredoras.
Formam brigadas de limpeza populares, dão a volta à estupa alinhadas de vassouras de palha em riste e deixam o templo imaculado para os devotos do dia seguinte.
Deixamos o templo entregue à sua religiosidade e exploramos outras partes da cidade. Depressa compreendemos que o que o torna ainda mais especial é a forma como se integra num cenário urbano denso e contrastante como o de Yangon.
Quando o sol começa a pôr-se estamos a passear nas margens do lago Kandawgyi.
Surpreende-nos, ali, a arquitectura birmanesa do restaurante flutuante Karaweik, inspirado e com a forma de uma ave mitológica com um nome similar e um pio melodioso.
O pagode de Shwedagon não tarda a recuperar toda a nossa atenção. A bola do sol aumenta de tamanho e precipita-se sobre o horizonte. Depois, desfaz-se num crepúsculo ainda mais exuberante.
Aos poucos, o lusco-fusco concede ao lago um reflexo esplendoroso do templo supremo e do restaurante Karaweik, ambos dourados, ambos iluminados num fundo ligeiramente tropical sob um céu quente salpicado de pequenas nuvens magentas.
E nem quando anoitece, a estupa descomunal deixa de resplandecer no quase-escuro de Yangon.
Uma Cidade Cosmopolita em que a Ásia se Encontra
Na manhã seguinte, saímos de novo à descoberta da cidade que abençoa. Yangon surge numa região fértil do delta do rio homónimo, no centro do Myanmar.
Quanto mais caminhamos pelas suas ruas húmidas, mais temos as sensações de estar nas imediações da Índia – o que é verdade – e perante uma obra daquelas que ficou a meio.
Edifícios decrépitos sucedem-se enquanto residências particulares ou sedes de ministérios. Por vezes, intercalam com torres de escritórios recentes e com templos hindus com gopurams (torres ornamentadas) mais excêntricos que tudo o resto nas imediações.
Em conjunto com as dezenas de estupas douradas, formam uma fascinante desordem urbanística que abriga a vida intensa de mais de cinco milhões de pessoas, entre birmaneses, da Índia, chineses e de outras nações do sul da Ásia.
Em redor do grande edifício do mercado coberto de Bogyoke Aung San onde tudo se vende e se compra ao abrigo do sol abrasivo, os negócios paralelos são tão ou mais espontâneos e abundantes que em Nova Deli ou Bombaim.
Um jovem quiromante lê a mão de uma senhora, instalado na sua banca móvel, não mais que a caixa de uma carrinha sinalizada com grandes posters que explicam o significado de cada linha da palma.
Mercados e Negócios para Todos os Gostos
Nas imediações e um pouco por toda a parte, vendedores de noz de bétele mantêm o stock a par dos muitos consumidores que frequentam as suas bancas, paredes meias com outras de revistas, posters de modelos e estrelas de cinema birmanesas.
Outra de tantas ruas, esta com sombras perdidas entre mangueiras seculares e as portadas de janelas cada qual de sua cor, acolhe estendais recolhidos, uma floresta de cabos telefónicos e sobre o asfalto um deslumbrante mercado de rua.
Expõem-se móveis e grilos fritos prontos a trincar, vegetais e frutas de todos os tipos e ovinhos estrelados numa grande forma repleta de orifícios para os receber.
Caminhamos neste mercado frenético por grande parte da baixa de Yangon, com passagem pelo pagode Botataung, pelos muitos mosteiros em redor, com tempo ainda para espreitarmos alguns edifícios governamentais coloniais majestosos.
Detemo-nos apenas no cais do rio Yangon lodoso em que uma parte da população apanha barcos para Sirião e outras povoações na outra margem, e outra descontrai a praticar desporto ou conviver junto ao cenário ribeirinho.
Chauk Htat Gyi: Novo Pagode, Outra Visão do Budismo Birmanês
Novo dia em Rangoon – como preferiam chamar os colonos britânicos à cidade. Dedicamo-nos uma vez mais ao budismo, em paragens mais interiores da cidade. Passamos pelo terminal da velha estação de comboio.
Apanhamos um táxi que nos deixa à porta do Chauk Htat Gyi Pagoda.
Mais que o interesse do pagode em si, habita aqui um Buda reclinado com 65 metros de comprimento e 16 metros de altura.
“Eu vou convosco e mostro-vos tudo e levo-vos de volta ao centro. Tudo junto faço um preço irrecusável!
A promoção do taxista Nyi Nyi Win deixa-nos desarmados pelo que aceitamos de bom grado. Acabamos por admirar o Buda superlativo.
Por especial favor do recém-contratado guia, também visitamos o interior mosteiro adjacente em que ele próprio viveu quando era pequeno e confraternizamos com o líder espiritual da comunidade e com vários outros monges.
Incluindo um a quem é pacientemente rapado o cabelo no exterior com uma máquina de barbear das clássicas.
Só Nyi Nyi fala inglês. “os monges deste mosteiro tiveram um papel muito importante numa das revoltas religiosas contra o regime” informa-nos com indisfarçável orgulho.
Em Abril de 2012, Aung Suu Kyi foi eleita para a câmara baixa do parlamento birmanês. Foi escolhida para presidente do Myanmar em 2015.
Seis anos depois, (2021), os homens fortes do Myanmar voltaram a apoderar-se do país e enfrentam, com gás lacrimogéneo e balas a fúria do povo birmanês.
O odiado regime militar mantém sede na capital oficial mas surreal de Naypyidaw.