Chegamos à frente ocidental da fortaleza de Acre.
Deparamo-nos com uma frota de pequenas embarcações em doca seca ou ancoradas e, para lá destas, com o Mar Mediterrâneo liso, batido apenas pelo vento que aliviava o forno estival em que, por aqueles dias, se havia tornado o Médio Oriente.
Andamos algum tempo em busca do barco em que era suposto subirmos a bordo até que alguém pega num altifalante e começa a apregoar em árabe.
Não é que percebêssemos a mensagem mas identificamos de imediato que dali partiam as voltas marítimas à Acre muralhada. Que alguns visitantes preferiam fazer a pedalar em gaivotas garridas.
Antes que a lotação esgotasse, fizemo-nos passageiros.
Instalados sobre a popa mas em constante movimento, compreendemos que se verificava naquela barca de madeira uma extensão da discrepância política que vigorava dentro da fortaleza e no território em frente: o dono e capitão do barco era árabe.
O seu auxiliar e a maioria dos passageiros eram árabes.
Ainda assim, uma bandeira branca e azul com a estrela de David deixava bem claro quem dominava naquelas terras e mares.
Esvoaçavam bandeiras iguais em todos os barcos e também em pontos proeminentes da fortaleza como a torre turca do relógio.
À medida que nos afastamos, temos uma visão cada vez mais ampla da velha cidade, disposta numa língua de terra estreita que dificultava a sua conquista.
Em tempos, protegia-a uma muralha adicional que se erguia a partir do fundo do mar.
Resta, dela, um retalho em ruínas.
Já a fortaleza principal, em si, mantém-se preservada e genuína como poucos historiadores pensaram possível tendo em conta a sua existência atribulada.
São João de Acre e o Longo Vaivém de Árabes e Cruzados
Em 636 d.C., Acre foi tomada pelos Árabes ao império Bizantino. Os novos ocupantes usufruíram da cidade sem grandes problemas até à chegada dos exércitos Cristãos. O Papa Urbano apelou às Cruzadas no ano 1095.
Cinco anos depois, Acre estava sob ataque e cercada.
Este cerco durou até 1104, quando foi derrotada pelas forças de Balduíno I de Jerusalém. Os Cruzados fizeram dela o seu ponto de partida para a tomada do alvo primordial, Jerusalém.
Transformaram-na num entreposto comercial que lhes permitiu prosperar com o comércio intenso do Levante, em especial das especiarias asiáticas.
Em 1170, nove anos antes do Papa Alexandre III ter reconhecido a independência de Portugal, Acre era o porto mais importante do Leste do Mediterrâneo e a riqueza do reino de Jerusalém que impressionava os reinos do Ocidente devia-se-lhe.
Acre e Jerusalém não tardaram a capitular perante as forças do poderoso sultão Saladino.
Na Terceira Cruzada, a investida inexorável de Ricardo Coração de Leão e do Rei Filipe de Espanha permitiu-lhes retomar a Terra Santa.
Em Acre, em particular, Ricardo Coração de Leão castigou Saladino por não ter cumprido o que prometera quando se rendeu. Ficou para a história que Ricardo e o exército inglês massacraram quase três mil sarracenos.
Já em 1291, deu-se nova conquista infiel. Os Mamelucos (casta e sultanato poderoso com origem em escravos e militares há muito empregues pelos árabes) surgiram com um exército dez vezes superior ao dos Cristãos.
Após um cerco de dez meses durante o qual a maior parte dos habitantes de Acre fugiram para Chipre, a cidade capitulou e foi significativamente danificada.
Sob o domínio dos Mamelucos, Acre entrou num período de relativa marginalização, até 1517.
A Fortaleza que Resistiu ao Tempo e às Sucessivas Conquistas
Algo que surpreende qualquer visitante é que à imagem da fortaleza de Massada e, ao contrário de outros lugares de Israel, como a mística Tsfat ou Jaffa, a Acre muralhada pouco mudou desde estes tempos das Cruzadas.
As casas são ocupadas por famílias locais e não por artistas.
O seu souq pertence aos pescadores e não a vendedores ambulantes ou artesãos.
Para isto e, para a atribuição do estatuto de Património Mundial da UNESCO contribuiu o facto bem mais recente de, após a captura da cidade pelas forças sionistas, em 1948, os Judeus terem optado por deixar a Velha Acre entre muralhas para os árabes e desenvolvido a sua própria nova cidade a leste.
Visitantes que, como nós, vagueiam descomprometidos com o tempo e a direcção pelas suas ruelas, becos e mercados, apreciam de imediato a sua pureza arquitectónica e histórica
Uma riqueza herdada dos tempos em que acolhia embarcações de Amalfi, de Pisa, de Veneza e de todo o Levante.
O Sefardita Oded e o Predomínio Actual dos Árabes na Cidade Velha de Acre
Oded, o judeu quase septuagenário que nos guia não é, claro está, dessa era mas a sua família foi expulsa do Egipto ainda antes da Guerra da Independência de Israel, onde se refugiou.
Oded, viu-se envolvido nos conflitos israelo-árabes que se seguiram, na Guerra dos Seis Dias e na de Yom Kippur, também noutras escaramuças. Nem por isso desenvolveu uma atitude sionista cega ou extrema.
“Bom, se calhar almoçávamos entretanto, não? Que vos parece?” questiona-nos “Conheço aqui uma família que, para mim, tem o melhor húmus de Israel. Vamos lá?” Concordamos, agradecidos pela pausa e pela sugestão.
Pouco depois, estamos sentados à mesa a partilhar especialidades gastronómicas da região, seguidas de uma sobremesa improvisada de nougat tradicional.
A conversa flui.
Intriga-nos sobremaneira a concessão judaica da velha Acre aos Árabes. Oded não se furta a opinar. “Não foi o único lugar em que isso se passou. Há que ver que a fortaleza já era deles desde o século XVI.
Logo depois de os vencermos, em 1948-49, eles fugiram mas, depois de os combates terem esmorecido, muitos refugiados Palestinianos chegaram de outras partes e instalaram-se.
Desmobilizá-los só ia criar mais problemas. Em termos habitacionais, aquelas casas não são propriamente agradáveis.
De qualquer maneira, na municipalidade toda de Acre, eles perfazem uns 30%”
A Debandada Judaica de Acre que Continua
Pelo que compreendemos, a cedência habitacional da cidade muralhada fez parte de um status quo entre árabes e judeus com que, de ambos os lados, nem todos concordam. Não é suposto, por exemplo, serem erguidas mesquitas em bairros judeus.
Nem sinagogas em bairros árabes.
Seja como for, vários judeus queixam-se de que os minoritários árabes se tentam apoderar da cidade: “Antes, só existiam mesquitas na Velha Akko” queixa-se uma moradora judaica mais radical “agora estão em cima de nós.
Os judeus estão cada vez mais a vender as casas e a sair de cá. Vamos à sinagoga ao Sábado e os árabes fazem churrascos mesmo à nossa frente. Nos últimos 10 anos, mais de 20 mil judeus abandonaram Akko.
Os árabes das aldeias mais próximas substituem-nos. Se isto continua assim, não tarda, Akko vai ter um mayor árabe!”.
Como continuámos a aprender ruela acima, ruela abaixo, num passado recente, algumas disputas já se provaram menos verbais mas não assumiram nem de perto a dimensão ou a violência do conflito medieval Cristão-Muçulmano.
Após a conquista dos Mamelucos, Acre perdeu grande parte da sua importância.
Mas, no século XVIII, um mercenário otomano bósnio de nome Al-Jazzar devolveu a dignidade e a influência regional ao porto.
O Complexo Legado Histórico de São João de Acre
Em 1799, Napoleão sentiu-se aliciado. Al-Jazzar, teve que requerer o auxílio da armada inglesa para repelir o imperador francês quando este se sentiu aliciado e o tentou capturar.
Das mesquitas que detectamos dentro das muralhas, a que mais se destaca é, de longe, a erguida, em 1781, em honra do otomano. Foi construída sobre uma antiga catedral dos Cruzados.
Aliás, com o passar dos séculos, várias estruturas cristãs seriam cobertas por muçulmanas.
Não tardámos a refugiar-nos do calor vespertino opressivo.
A verificar que o mesmo tinha acontecido, por exemplo com os Salões dos Cavaleiros.
Estas estruturas surgem oito metros abaixo do nível das ruas.
Em tempos, foram usadas como quartel-general pelos Cavaleiros-Hospitalários ou da Ordem de São João que combateram e prestaram auxílio aos peregrinos doentes, pobres ou feridos – lado a lado com os Cavaleiros Templários e os Teutónicos.
Mas, quando os Mamelucos conquistaram Acre, cobriram aquelas salas abobadadas de entulho.
Também um túnel usado pelos templários para se deslocarem secretamente entre o Palácio e o porto foi encontrado há alguns anos por um canalizador após uma moradora se ter queixado de uma conduta entupida.
De volta à superfície, vagueamos pelo souq frenético e apreciamos a diversidade de produtos – ainda com destaque para as especiarias – que em tempos fez a delícia de mercadores de todas as partes – identificados em árabe, em judaico e em inglês.
Não vemos sinal de excursões ou grandes grupos de estrangeiros.
Acre parece ter também resistido ao pior do turismo e preserva a sua integridade secular.