É Domingo.
Pouco passa das 8h30. Em plena época seca, Manaus e o Amazonas despertam levemente polvilhado de nuvens, no que dizia respeito a chuva, apenas e só decorativas. Uma boa parte dos seus habitantes estão longe de despertar.
Não é o caso do Sr. Francisco, o guia que nos acolhe e aos restantes passageiros no barco e inaugura uma intensa narração multilingue. Zarpamos da doca logo em frente à velha Alfândega e Guardamoria, com o rio tão raso quanto, em Setembro e Outubro, o estio enxuto da região o costuma tornar.
Navegamos rio Negro acima. Passamos sob a enorme Ponte Jornalista Phelippe Daou que cruza o Negro e permite à via AM-070 fluir da grande cidade para o interior ocidente da Amazónia e no sentido contrário. A ponte foi inaugurada em Outubro de 2011, pela Presidente de então da República Brasileira, Dilma Roussef, que prometeu aos políticos locais que a Zona Franca de Manaus se prolongaria por mais meio século com todos os benefícios fiscais e comerciais de que tem beneficiado.
A conurbação de quatro municípios próximos e a intensificação do progresso destas paragens em tempos remotas e temidas do Brasil, depressa se fez sentir, contra a essência natural e luxuriante da Amazónia. Por mais que disso nos quiséssemos abstrair, a verdade era que o tour em que participávamos navegava no mesmo rumo.
Rio Negro acima à Procura dos golfinhos da Amazónia
O primeiro dos objectivos da digressão embarcada era encontrar botos-cor-de-rosa, os golfinhos do Amazonas, algo que a massificação do turismo em redor de Manaus tornou quase garantido. Os botos continuam à solta nas águas do Negro e afluentes.
Só que agora, para facilitar a vida aos empresários do turismo e aos seus clientes, os nativos operam pequenas plataformas de acolhimento dos mamíferos: tanto os cetáceos como os humanos que lá afluem para com eles conviverem.
Desembarcamos numa delas. Um caboclo desce uma escadaria curta para cima de um tabuado submerso. Ali, pega num pequeno peixe e agita-o debaixo de água. Para espanto do Sr. Francisco, os botos ignoram o repto. Não porque se tivessem afastado de forma autónoma. O chamariz de uma plataforma concorrente desviava-os.
Com o tempo, estes golfinhos habituaram-se que, àquelas horas, conseguiam alimento sem esforço. Bastava, para isso, que se aproximassem das plataformas e cirandassem entre as pernas dos visitantes, vulneráveis às carícias e contactos que quase todos lhes dedicam para sentirem a incrível textura da sua pele.
“Cuidado com ele mininas, vocês não querem surpresas, pois não?” Atira uma das passageiras a outras e assim gera uma risada comunal quase histérica. “Oi, ele tá aí bem junto de você, foge já daí, garota”, riposta uma segunda.
O contacto com os botos pode ser uma novidade excitante para quem chega de outras partes do Brasil e do mundo. Mas é comum entre os brasileiros – principalmente os do norte do país – uma lenda dedicada a estas criaturas.
Reza esta lenda que os botos-rosados se transformam em jovens elegantes vestidos de branco e que usam chapéu, de maneira a disfarçarem a narina que, ainda segundo a lenda, tal metamorfose não costuma mudar. Pois, acontece que, durante a época das Festas Juninas, esse rapaz seduz as moças sem par.
Leva-as ao fundo do rio e, com frequência, engravida-as. A velha lenda justificou até que, quando jovens aparecem em festas, de chapéu, lhes seja dito para o tirarem para assim provarem que não são botos. É também a razão de ser da expressão “é filho (a) do boto”, aplicada a filhos com pai desconhecido.
Mais uma Espécie Ameaçada
No plano da realidade, à imagem do que acontece com tantas outras espécies, são os humanos que vetam os botos a uma aflitiva fragilidade existencial. Bem mais grave que a intrusão dos visitantes da Amazónia, têm-se provado os costumes dos seus habitantes.
Malgrado o estatuto de espécie protegida, a inacessibilidade da Amazónia viabiliza que, todos os anos, sejam abatidos milhares de espécimes. As autoridades ambientais apuraram que os pescadores os capturam porque a sua carne é ideal para servir de isco do piracatinga (Calophysus macropterus), uma espécie de peixe-gato com grande valor comercial.
Sobretudo por este motivo, estimou-se que a cada dez anos, os botos-cor-de-rosa diminuem para metade. Ainda que resistam em boa parte da Amazónia incluindo no rio Araguaia – mas aquém do vasto Pantanal -, como as fêmeas tem uma única cria de quatro em quatro ou cinco em cinco anos, as perspectivas de recuperação da espécie são pouco animadoras.
Mesmo que a invasão turística dos humanos aos seu habitat se tenha provado um mal menor, agentes do Ibama destacados para Manaus marcam presença nas plataformas, encarregues de controlar o tempo que cada grupo passa com os botos-cor-de-rosa e de limitar a sua interacção com os animais.
De início, a agente presente sobre a nossa plataforma limita-se a tirar notas num qualquer caderno mas, quando algumas das donzelas insistem em prolongar o namoro com os botos, a oficial não se furta a cortar-lhes as vazas e a forçar a sua saída de água.
Visita à Comunidade Indígena Dessana-Tukana
Regressamos a bordo. Sr. Francisco anuncia novo trecho. Navegamos do meio do Negro até uma praia fluvial recolhida e ressequida. Ainda do barco, detectamos várias malocas e outros edifícios de menores dimensões, todos eles erguidos com troncos e revestidos de palhota seca.
A mais próxima parece meio afundada na areia descoberta pelo recuar do rio. Caminhamos até à sua entrada. Lá nos recebe um nativo da pequena comunidade Tukana que agrupa indígenas originários da zona do Alto Rio Negro de São Gabriel da Cachoeira, a 850 km, junto à fronteira com a Colômbia.
É esse o âmago cultural de um vasto território de selva amazónica em que convivem vinte e seis etnias distintas que partilham uma mesma família linguística, a Tukana. A comunidade que visitamos, integra apenas cinco delas: a Desana, a Tukana, Tuiúca, Bará e Makuna.
Sob um grande cocar feito de penas vermelhas e azuis que nos parecem de arara, Tutuia, o nativo com os traços indígenas mais marcados e perfil de cacique carismático, dá-nos as boas-vindas. Primeiro em Tukano, depois em português, com vários galos a cantarem à desgarrada, em fundo.
Em seguida, encaminha-nos para o interior sombrio da maloca, que os nativos usam como casa de sabedoria ou medicina tradicional. Lá arde um fogo pajé que os anfitriões alimentam a resina, de maneira a protegerem de maleitas e maldades, os seus espíritos e os dos visitantes.
Tutuia termina as boas-vindas e a apresentação da comunidade. Logo, passa o protagonismo a quatro outros nativos, todos homens, já que o ritual que que se segue é proibido a mulheres e crianças.
Jurupari: um Culto Esotérico do Mal
Os nativos inauguram um ritual de Jurupari, tocado com instrumentos de sopro feitos de paxiula, uma palmeira da Amazónia que produz um som característico. Tocam-no para cá e para lá no interior da maloca, de uma porta à outra e para trás. Produzem um movimento e uma reverberação que se provam místicos e nos deixam intrigados.
Tínhamos razões para tal. Jurupari define um complexo culto mitológico dos povos indígenas da Amazónia. É o mal em pessoa, origem de outros demónios secundários com os mais diversos nomes, consoante as diferentes tribos e etnias.
Quando os portugueses e os espanhóis chegaram às terras amazónicas, no século XVI, perceberam que se tratava do principal culto dos nativos. Preocupados com a sua popularidade e com a concorrência às personagens e crenças bíblicas, os missionários tudo fizeram para o associarem ao diabo cristão.
A música misteriosa de Jurupari continua a seduzir-nos. Até que a sua dança obscura dá lugar a outra em tudo contrastante, que segue o som de flautas de madeira amazónicas, se desenrola em circulo em vez de em trajectos rectilíneos e conta já com mulheres e crianças.
O tempo precioso entre a comunidade Tukana extinguiu-se. Reeembarcarmos. Desta feita, viajamos Negro abaixo, na direcção de Manaus. Voltamos a passar debaixo da Ponte Jornalista Phelippe Daou e deixamos para trás a área vasta de casario ribeirinho da cidade.
Rio Negro abaixo, ao Encontro do Encontro das Águas
Aproximamo-nos de uma grande língua de rio que ali dissimulava uma fronteira. Do nosso lado, continuava a fluir o rio Negro. Do lado de lá, deslizava um outro.
A determinada altura, à água de visual Coca-Cola do Negro, com muito pouco sedimento mas imensa matéria-prima vegetal dissolvida, ganha a companhia da do Solimões, assim baptizaram os exploradores ibéricos o trecho superior do rio Amazonas.
Esta última, surge com um tom caramelo conferido pela quantidade e diversidade de sedimentos (areia, lama e lodo) que o Solimões acumula na sua descida desde as longínquas encostas da cordilheira dos Andes.
Por cerca de 6km, os dois caudais fluem lado a lado, num enigmático orgulho fluvial que a ciência não teve problema em deslindar.
Entre ambos, quase tudo é diferente: o rio Negro desliza a apenas 2km/h. O Solimões flui entre 4 e 6km/h. A água do Negro tem uma temperatura de 28ºC. Já a do Solimões mede apenas 22ºC.
Como tal, a densidade de ambos os caudais prova-se bastante distinta. A peculiaridade físico-química de cada qual faz com que demorem a aceitar-se e a misturar-se no caudal único do Baixo Amazonas – o grande Rio Mar que, até desaguar no verdadeiro mar do Atlântico, para leste de Belém, ainda acolhe “encontros” similares.
Junto a Manaus, a resistência de ambos é ilustrada pelos tons concorrentes da água mas não só. Instalados sobre o convés superior do barco, vulneráveis ao sol tropical tórrido que sempre que se liberta reforça o fenómeno, apreciamos as formas curvilíneas e da fronteira do Encontro das Águas. E também os remoinhos cor-de-café que, de quando em quando, o combate entre ambas as forças gerava.
Um manto mais denso de nebulosidade volta a ocultar o sol. O Sr. Francisco e a tripulação do barco já estavam connosco há quase oito horas. A um Domingo, ansiavam mais que nunca o seu próprio reencontro com as famílias. De acordo, invertemos mais uma vez o rumo.
Contra a nossa vontade e a do Negro, regressamos a Manaus.
A TAP – flytap.pt voa directamente de Lisboa para várias cidades brasileiras. Em termos de horas de voo, as mais convenientes para chegar a Manaus são, por esta ordem: a) Fortaleza ou Brasília b) São Paulo e Rio de Janeiro. c) via Miami, Estados Unidos.