Deambulávamos pelo passado amarelado de Malta. Uma inesperada incursão à praça Misrah ir Rbha, em Vittoriosa, revela-nos uma deliciosa fusão das dimensões temporais da ilha.
Três miúdos vestidos com equipamentos de clubes malteses de futebol aparecem de recantos distintos.
À hora que tinham combinada ou a que estavam habituados, cumprimentam-se, conversam um pouco.
Acabam por se sentar, aconchegados contra uma das portas cor-de-vinho de um dos edifícios seculares.
Acima deles, a imagem de uma jovem parece contemplar o porvir de Malta.
Surge destacada, num cartaz, sobre o letreiro da sede local do Partit Laburista e da tocha acesa que lhe serve de símbolo.
Mais para o meio da praça, uma estátua branca, diminuta, se comparada com o pedestal que a suporta, empunha uma cruz.
A figura homenageia São Lourenço, patrono de Birgu e também da ilha de Gozo.
Uma sequência de rampas e escadarias conduz-nos para mais perto da Birgu Waterfront, ainda antes, à igreja de São Lourenço, um dos principais templos católicos da península.
A par com a da Anunciação que se projecta do seu meio, sobranceira face ao todo do casario.
À medida que percorremos os becos e ruelas que as separam, testemunhamos a fusão do dia-a-dia da cidade com o intruso dos visitantes turistas.
Um casal de trajes claros e leves, ideais para o calor estival de Malta estuda, num qualquer livro ou guia, o contexto do cenário que os deslumbra.
Enquanto o fazem, um padre ainda enfiado na sua batina, passa de um recanto na penumbra para a via solarenga que leva à praça.
Pouco depois, um outro, de hábito escuro, surge do sol. Some-se na sombra crescente e nos meandros sinuosos da história, entre Birgu e Vittoriosa.
Os Cenários Amarelados e Sagrados dos Cavaleiros Hospitalários
Não fossem os turistas e a limpeza quase imaculada da cidade, este jogo de luz e de trevas quase se podia passar na Idade Medieval e nos séculos seguintes em que os Cavaleiros Hospitalários tomaram conta da ilha.
O Palácio do Inquisidor continua apenas duas ruas acima da igreja de São Lourenço, outras tanto abaixo da Armaria dos Cavaleiros de Malta. É um dos poucos palácios usados pela Inquisição ainda intactos tanto na Europa como na América do Sul.
Em Malta, foi habitado e usado durante cinco séculos. Desde que, em 1574, Monsignor Pietro Dusina, chegou de Itália, recém-nomeado o delegado apostólico e o primeiro inquisidor de Malta.
Até ao meio do século XVIII, os sucessivos moradores esforçaram-se por aprimorar e tornar o palácio, antes vago, numa residência digna e acolhedora.
Lá encontramos uma área de cozinha desafogada.
E, no primeiro andar, os aposentos e outras áreas privadas sofisticadas. Como era suposto, coexistiam com estes espaços pessoais e humanizados, o Santo Ofício, os calabouços e a sala de tortura.
Vasculhamo-los, curiosos como nunca quanto ao estranho conluio da vida e da morte ou, pelo menos, condenação à morte, bastante mais deslumbrados e entretidos que quando cirandamos pelo Museu Marítimo de Malta, também situado na Birgu Waterfront.
Ali, entusiasmam-nos, sobretudo, os modelos dos barcos de guerra usados pelos Cavaleiros de São João.
De Vittoriosa a Cospicua, e de Volta a Birgu
Se o museu exibe e explica o passado flutuante de Malta, desde as suas batalhas contra os piratas do norte de África, à 2ª Guerra Mundial, o sub-braço de mar em frente acolhe dezenas de vidas embarcadas dos nossos dias.
Malta conta com várias marinas, quatro delas em redor de Valeta e das suas cidades.
As maiores são a de Msida – a noroeste da península em que se desenvolveu a capital. E a de Birgu, situada entre Vittoriosa e a “irmã” Senglea, numa das várias reentrâncias perpendiculares ao Grand Harbour da ilha.
À medida que caminhamos pela marginal Xatt Il-Forn e Xatt ir-Rizq, passamos pelas embarcações ancoradas, desde enormes e multimilionários iates, a pequenas lanchas e veleiros, mais propícios a um Mediterrâneo tranquilo.
Quanto mais avançamos para o fundo do braço de mar secundário e da marina, mais diminui o calado dos barcos.
Por altura da Normal Bridge, o braço de mar volta a estreitar para o canal de Bormla.
Na sua extensão terrestre, uma estátua dourada da Madonna, (Nossa Senhora, não a Louise Ciccone de “Like a Virgin”), abençoa a outra das Três Cidades em que, sem sabermos como, tínhamos já entrado: Cospicua.
Invertemos o rumo, na direcção do extremo oposto da península e de Birgu, o encerrado pelo Forte de St. Angelo.
A Entrada em Malta da Ordem de São João dos Cavaleiros Hospitalários
A Ordem dos Cavaleiros do Hospital de São João de Jerusalém, como eram denominados na íntegra, instalou-se em Malta, em 1530, após o cada vez mais poderoso Império Otomano a ter expulso da ilha de Rodes.
Malta foi um dos territórios que o Imperador Espanhol Carlos V concedeu aos Hospitalários, a par da ilha de Gozo e da cidade, hoje Líbia, de Tripoli.
Ainda antes de assumirem o controle da ilha, em 1526, os Hospitalários enviaram uma delegação de oito cavaleiros representativos de cada uma das suas divisões administrativas, identificadas como Línguas.
Quando chegaram, apesar de a povoação local ser básica e difícil de defender, decidiram erguer, ali, a capital de Malta.
Mdina, a de então, tinha fortificações satisfatórias. No entanto, estava situada no interior da ilha, o que anulava o poderio naval que os Cavaleiros Hospitalários cada vez mais requeriam.
Por outro lado, os Hospitalários sabiam que os Otomanos não desistiriam de os aniquilar.
Fortificaram Birgu à altura dessa noção.
No lugar do antigo Castrum Maris, fizeram erguer o Castelo Saint Angelo. Separaram-no da povoação com um canal exíguo que só podia ser cruzado por uma ponte levadiça.
Uma vez terminado, deliberaram que o castelo seria o aposento fortificado do Grã-Mestre de Malta, o primeiro com domicílio na ilha, já na ordem do 40º, se contados desde a génese da Ordem.
O 49º Grã-Mestre a lá residir, Jean Parisot de Valette, teve pouco sossego. Obcecados por dominarem o Mediterrâneo, os Otomanos voltaram à carga. Em 1551, falharam a conquista de Malta.
O Grande Cerco de Malta e a Resistência de Birgu
Tomaram Tripoli.
Em 1565, numa segunda tentativa mais bem preparada, cercaram a ilha. O cerco durou quase quatro meses, de Maio a Setembro desse ano. A localização de Birgu no âmago do Grand Harbour fez com que os principais confrontos lá se tivessem dado.
A defesa de Birgu e de Malta estiveram periclitantes. Contudo, a destreza militar de Valette e reforços providenciais chegados da Sicília ditaram a retirada dos Otomanos.
Os Cavaleiros Hospitalários e os Malteses saíram triunfantes, mas por pouco.
Valette ansiava por uma inexpugnabilidade quase total para Malta. Fez aprovar que a capital fosse passada para o cimo do Monte Sceberras, sobre a península a norte de Birgu. Veio a chamar-se Valeta.
Hoje, assim se mantém.
Em 1571, os Cavaleiros Hospitalários transferiram-se em peso para Valeta. Até então, a igreja a que chamavam sua era a de São Lourenço. Quando, em 1577, a Co-Catedral de São João de Valeta ficou pronta, passaram a usá-la.
Devido ao papel determinante que desempenhou na resistência aos Otomanos, Birgu recebeu o título de Città Vittoriosa. Por outro lado, perdeu o protagonismo político que mantinha. Dedicou-se sobretudo ao comércio e a serviços náuticos.
A tranquilidade que viveu durante quase dois séculos foi quebrada, uma vez mais, pelas piores razões bélicas.
Da Expulsão de Napoleão à Reconstrução do Pós-Guerra
Chegamos a 1798. Napoleão colocou a invencibilidade de Valeta à prova. E ganhou. Só dois anos depois, com o auxílio precioso da Grã-Bretanha, de Nápoles e até de forças portuguesas, os franceses retiraram.
Malta tornou-se um protectorado Britânico. Birgu, acolheu a Frota Mediterrânica da Royal Navy, uma espécie de preâmbulo para a função de grande marina que continua a desempenhar, todos estes anos após os Britânicos terem deixado a ilha (1979).
Não seria o único preâmbulo ou prenúncio digno de registo. Em 1806, o grande paiol que lá era guardado explodiu e o acidente tirou a vida a mais duas centenas de pessoas.
Durante a 2ª Guerra Mundial, devido à proximidade face aos Estaleiros Navais, Vittoriosa foi bombardeada vezes sem conta. Vários dos seus edifícios históricos mais emblemáticos ficaram arrasados.
Foi o caso da Torre do Relógio, uma torre de vigia erguida ainda no período medieval, com vistas desobstruídas sobre o Grand Harbour em que se esperavam as embarcações e frotas inimigas.
Foi também arrasado o Albergue d’Allemagne, um dos edifícios em que os Cavaleiros Hospitalários se alojavam.
O Forte Saint Angelo recém-devolvido aos Hospitalários
Por fim, ficamos de frente para o Fort Saint Angelo. Tínhamos a intenção de o visitar. Mas vemo-nos barrados pelo destino que a história de Malta lhe reservou. Recentemente, o Governo de Malta chegou a um acordo com a Ordem dos Cavaleiros de São João, regressados à ilha.
Uma parte do forte foi cedida, por 99 anos, para uso exclusivo dos Hospitalários. Integra, assim, uma espécie de estado independente sobre o qual Malta não possui jurisdição.
Outras secções do forte pertencem à Heritage Malta, uma organização encarregada do património histórico da ilha. Estará prevista uma recuperação com fins turísticos.
Sem solução, nem vista, deixamos para uma próxima vez.
Acabamos por o admirar mais tarde, a partir do Miradouro dos Upper Barraka Gardens, de onde a sofrida mas triunfante Vittoriosa se volta a insinuar.